Debate Eleitoral ocultou contradições da Economia e da Sociedade
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- Valéria Nader, da Redação
- 03/10/2014
A política econômica do país, tema sempre indigesto e complicado para abordar com o público, adquiriu dimensão relevante nos atuais debates eleitorais. A defesa insistente, quase retórica, da independência do Banco Central pela candidata Marina Silva levantou a bola para discussões acirradas entre os candidatos. Ao mesmo tempo, com a economia do país derretendo, houve até demissão e contratação de novos ministros da Fazenda por alguns dos pleiteantes do cargo à presidência, atitude inusitada para um cenário pré-eleitoral.
Face a esse espetáculo e ilusionismo armados em torno à economia do país, o Correio conversou com o economista Luiz Filgueiras, em mais uma das entrevistas sobre temas chave para o Brasil. O professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia - autor do livro “História do Plano Real” e coautor, juntamente com o professor Reinaldo Gonçalves, do livro “A Economia Política do Governo Lula” – é enfático em afirmar que “a discussão sobre a economia tem se concentrado na política (fiscal, monetária e cambial) e na dinâmica macroeconômica de curto prazo - comportamento do PIB, emprego, inflação, câmbio, balanço de pagamentos e situação fiscal (...) Na verdade, o debate fica na superfície dos problemas estruturais do capitalismo brasileiro”.
Filgueiras traça minuciosa explicação quanto à condução da economia do país sob o governo Dilma, à luz das administrações anteriores de Lula e FHC. O reforço da inserção subordinada do Brasil na divisão internacional do trabalho, levado a cabo pelos três mandatos, ajuda a entender a semelhança atual dos programas econômicos das três maiores candidaturas: todas elas circunscritas “ao atual padrão de desenvolvimento (o Modelo Liberal-Periférico) e ao tripé macroeconômico: metas de inflação, superávit primário e câmbio flutuante”.
A despeito da preferência do grande capital financeiro por Aécio e Marina (a última como Plano B, fiadora que é da criação de um “bunker para o capital financeiro garantir seus interesses, independentemente da disputa e negociação cotidiana que ocorre, no interior do governo, entre as distintas frações do capital”), o economista situa o programa de Dilma, tal como o de Lula, na linha do “conformismo ‘desenvolvimentista’”. O que, para Filgueiras, significa “uma adaptação das políticas de crescimento e distribuição à ‘camisa de força’ estabelecida pelo Modelo Liberal-Periférico. Portanto, um desenvolvimentismo limitadíssimo, subordinado à lógica mais geral do capital financeiro e que tem fôlego curtíssimo, como bem demonstra o desempenho da economia no governo Dilma”.
A entrevista completa pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como você viu a abordagem da economia do país nos debates eleitorais dos candidatos à presidência da República nesse primeiro turno?
Luiz Filgueiras: A discussão sobre a economia tem se concentrado na política (fiscal, monetária e cambial) e na dinâmica macroeconômica de curto prazo - comportamento do PIB, emprego, inflação, câmbio, balaço de pagamentos e situação fiscal. E, secundariamente, tem abordado temas mais estruturais, como a política industrial de elevação do conteúdo nacional das cadeias produtivas, a política de financiamento do BNDES de fortalecimento e internacionalização dos grupos econômicos nacionais e o processo de desindustrialização da economia. Em ambos os casos, opõem-se duas visões: uma dita desenvolvimentista e outra neoliberal, apresentada como “austera e responsável”.
Na verdade, o debate fica na superfície dos problemas estruturais do capitalismo brasileiro - que têm sérias repercussões para a classe trabalhadora. O país tem historicamente uma economia dependente, cuja dinâmica expressa, de forma subordinada, a dinâmica dos países imperialistas. A partir dos anos 1990, com a abertura comercial e financeira, as reformas neoliberais e o processo de privatização, essa dependência se radicalizou – expressando-se, sobretudo, na dimensão tecnológica (maior distanciamento da estrutura produtiva do país da fronteira tecnológica) e financeira (maiores restrições para a dinâmica da economia derivadas do comportamento do balanço de pagamentos). Isso significou uma maior vulnerabilidade externa estrutural do país e uma menor capacidade de decidir sobre suas políticas econômicas e sociais; em suma, sobre o seu próprio destino.
O debate macroeconômico se restringe à forma, mais ou menos dura, de operacionalização do tripé macroeconômico - metas de inflação, superávit fiscal primário e câmbio flutuante -, que, juntamente com o atual padrão de desenvolvimento, é aceito pelas três maiores candidaturas (Dilma, Aécio e Marina) sem questionamento.
Correio da Cidadania: O que diria sobre a dimensão que tomou o tema da independência do Banco Central? Qual o sentido da polêmica que se instaurou em torno ao tema e o que significaria, na prática, um Banco Central independente?
Luiz Filgueiras: Um Banco Central “independente” é a legitimação político-jurídica e ideológica dos interesses do capital financeiro no interior do Estado, através do controle de um de seus aparelhos mais importantes no que concerne ao controle da política econômica e seus efeitos sobre a luta econômica entre as classes e frações de classes. É a criação de um bunker para o capital financeiro isolar (e garantir) seus interesses, independentemente da disputa e negociação cotidiana que ocorre, no interior do governo, entre as distintas frações do capital.
Deste ponto de vista, é a obtenção de um privilégio que as demais frações do capital não teriam. Portanto, a “independência” do Banco Central é, de fato, a sua total e inquestionável dependência aos ditames do capital financeiro. Além disso, é um golpe político, pois esses interesses se colocariam acima e à margem do governo eleito pela sociedade, em nome de uma inexistente neutralidade da austeridade fiscal e da “defesa da moeda”, tidos como valores universais inquestionáveis.
É lógico que, na prática, com ou sem Banco Central independente, o capital financeiro tem o poder de influenciar, direta e indiretamente, as políticas econômicas dos governos, em especial de seus Bancos Centrais, inclusive ameaçando com retaliações – como, por exemplo, a fuga de capitais e a ameaça ou desencadeamento de uma crise cambial. Mas a sua maior ou menor influência depende, em cada conjuntura, das frações de classes que ocupam o bloco no poder e da correlação de força política no conjunto da sociedade.
Por isso, a independência jurídica e formal do Banco Central não é uma condição necessária nem suficiente para o capital financeiro garantir seus interesses no interior do Estado, mas reforça e legitima a sua influência, dificultando o questionamento desses interesses pelas demais forças político-sociais, do próprio bloco no poder e de fora dele. Daí a importância desse tema no processo eleitoral, nos debates e na propaganda dos candidatos.
Aécio e Marina, claramente, defendem a dependência do Banco Central ao capital financeiro. Isso, contudo, não significa dizer que a sua influência não tenha ocorrido no governo Dilma, nem que não vá continuar ocorrendo num eventual segundo governo - embora esta não defenda a “independência” legal do Banco Central.
Correio da Cidadania: Como definiria, portanto, a condução da economia, bem como a gestão do Banco Central, sob o governo Dilma, inclusive à luz das anteriores gestões de Lula e também de FHC?
Luiz Filgueiras: A “condução” da economia, de ser colocada entre aspas, porque a capacidade das políticas de os governos dos países periféricos induzirem a trajetória de suas respectivas economias é muito limitada. Limitada pela inserção subordinada desses países na divisão internacional do trabalho, caracterizada pela dependência tecnológica e financeira e pela exportação de commodities e, em alguns casos, como o Brasil, pela exportação de produtos manufaturados de menor intensidade tecnológica.
Na verdade, o atual padrão de desenvolvimento brasileiro foi constituído, a partir dos anos 1990, na esteira da crise do modelo de substituição de importações. Esse padrão, de natureza liberal e periférica, decorreu das reformas e políticas neoliberais indicadas por Collor, aprofundadas por FHC e mantidas, em grande medida, por Lula e Dilma. Ele tem cinco características essenciais: 1- aprofundou a assimetria de poder entre o capital e o trabalho, a favor do primeiro; 2- redefiniu as relações entre as distintas frações do capital, dando origem à hegemonia econômica e política do capital financeiro; 3- redefiniu a inserção externa (comercial e financeira) do país, tornando-o mais frágil na divisão internacional do trabalho e aumentando a sua vulnerabilidade externa; 4- reduziu a capacidade de regulação econômica e social do Estado, enfraquecendo a sua capacidade de implementar políticas públicas; e 5- levou à redefinição das forças políticas da sociedade brasileira, provocando o embaralhamento dos campos opostos em disputa e consagrando o reino da “pequena política”.
Esse padrão de desenvolvimento sofreu, ao logo do tempo, duas inflexões importantes, que se expressaram tanto no bloco no poder quanto nos regimes de política macroeconômica adotados. No primeiro governo FHC (1994-1998), com o Plano Real e sua política de âncora cambial, houve uma hegemonia absoluta do capital financeiro nacional e internacional, que deteriorou todas as variáveis macroeconômicas da economia, com exceção da inflação. O resultado final foi o aumento da vulnerabilidade externa estrutural e conjuntural do país, que desembocou em uma crise cambial que estourou no início do segundo governo FHC.
A hegemonia absoluta do capital financeiro e sua política econômica mostraram-se inviáveis, pois implicava o aumento absurdo da instabilidade macroeconômica. Por isso, no segundo governo FHC (1999-2002), implantou-se outro regime de política macroeconômica, o chamado tripé macroeconômico: metas de inflação, superávit fiscal primário e câmbio flutuante. Com isso, a vulnerabilidade externa conjuntural se reduziu (melhora do balanço de pagamentos), assim como a instabilidade macroeconômica; o que implicou uma mudança no interior do bloco no poder, que viria a se mostrar de forma mais explícita no primeiro governo Lula (2003-2006).
A fração do capital exportadora de commodities industriais e agropecuárias (o autodenominado agronegócio) tornou-se importante para o novo padrão de desenvolvimento, obrigando o capital financeiro a compartilhar sua hegemonia. Nesse primeiro governo, o tripé macroeconômico foi mantido, e mesmo radicalizado no primeiro ano. Mas o efeito-China sobre o balanço de pagamentos do país reduziu fortemente a vulnerabilidade externa conjuntural do país; o que permitiu, ainda no final desse primeiro governo, e mais ainda durante o segundo governo Lula (2007-2010), a flexibilização do tripé macroeconômico: menor superávit fiscal primário e mais gasto do governo (o PAC), manutenção das metas de inflação (e não sua redução) e menores taxas de juros, e intervenção no câmbio para acumulação de reservas.
Esse novo regime de política macroeconômica, juntamente com outras políticas públicas e sociais - aumento real do salário mínimo e melhora dos benefícios da Previdência Social, ampliação do alcance do programa Bolsa-Família, forte expansão do crédito e uma política habitacional para as famílias com baixa renda -, criou um mini ciclo de crescimento da produção e do emprego, com uma pequena melhora na distribuição pessoal da renda entre os que vivem do seu trabalho. Essa conjuntura, colada na expansão da produção e do comércio mundiais, comandada pelos EUA e a China, permitiu uma maior autonomia relativa do Estado, possibilitando a Lula uma maior margem na arbitragem dos distintos interesses das classes dominantes, das distintas frações do capital. Com isso, a fração estatal do capital ganhou espaço no interior do bloco no poder, redefinindo-o pela segunda vez.
O governo Dilma seguiu com a mesma política econômica, mas a conjuntura mundial havia se alterado fortemente, a partir da crise mundial do capitalismo que se abateu sobre a periferia no último trimestre de 2008. As suas consequências de longo prazo, em especial a tendência de estagnação, se fizeram sentir em cheio a partir de 2011, início do governo Dilma, em especial agravadas pela crise da dívida soberana dos países da zona do euro. A manutenção do tripé e das demais políticas públicas não foi mais suficiente para dar continuidade ao ciclo iniciado no governo Lula; daí o baixo crescimento do PIB, o aumento da inflação, a deterioração das contas do balanço de pagamentos e o congelamento da distribuição de renda.
Em suma, dentro da condição dependente do Modelo Liberal-Periférico, a capacidade de implementar a política macroeconômica, de forma descolada da conjuntura mundial, é quase nenhuma.
Correio da Cidadania: Tomando as três maiores candidaturas, Dilma, Marina e Aécio, quais são, a seu ver, semelhanças e diferenças entre os programas econômicos que foram apresentados, ou que se vislumbra venham a ser postos em prática?
Luiz Filgueiras: A semelhança fundamental das três candidaturas é de que todas elas aceitam o atual padrão de desenvolvimento (o Modelo Liberal-Periférico) e mesmo o tripé macroeconômico: metas de inflação, superávit primário e câmbio flutuante. Mas, claramente, os programas de Marina e de Aécio são de natureza estritamente neoliberal, divergindo apenas na ênfase pontual de alguns aspectos.
A política do chamado tripé implementada pelo segundo governo FHC (1999-2002), bem como o pífio resultado macroeconômico alcançado nesse período, é uma representação bastante aproximada do que viria a ser um governo de Aécio ou de Marina. Por outro lado, o programa de Dilma, na linha do dito “neodesenvolvimentismo”, tal como o de Lula, é, na verdade, uma espécie de conformismo “desenvolvimentista”, isto é, uma adaptação das políticas de crescimento e distribuição à “camisa de força” estabelecida pelo Modelo Liberal-Periférico. Portanto, um “desenvolvimentismo” limitadíssimo, subordinado à lógica mais geral do capital financeiro e que tem fôlego curtíssimo, como bem demonstra a desempenho da economia no governo Dilma.
Além disso, não se pode descartar que ela venha a fazer uso de medidas ortodoxas (forte ajuste fiscal) no primeiro ano de um eventual segundo mandato. Apesar disso, as implicações imediatas para as condições de vida da classe trabalhadora (emprego, salário e transferência de renda) serão distintas, a depender de qual programa seja implementado. Sem dúvida, mas também sem nenhuma ilusão ou expectativa de grandes mudanças a favor dos trabalhadores em um eventual segundo governo Dilma, o cenário para a classe trabalhadora será pior, caso ocorra a vitória eleitoral do programa neoliberal, seja ele comandado por Marina ou Aécio.
Correio da Cidadania: A campanha petista acusa mídia, grandes empresários e mercado financeiro de fazerem terrorismo contra a candidatura Dilma - de fato, nota-se um movimento de alta na Bolsa de Valores quando os resultados das pesquisas eleitorais são mais desfavoráveis à candidata e vice-versa. Esta sua última avaliação explicaria este fato, uma vez que, por outro lado, as gestões petistas, Dilma entre elas, caminharam com altos lucros bancários e não inverteram a lógica dominante no modelo econômico implantado por FHC?
Luiz Filgueiras: Sim, essa aparente contradição pode ser explicada a partir do que foi dito anteriormente sobre a natureza do atual padrão de desenvolvimento do país (o Modelo Liberal-Periférico) e seus consecutivos regimes de política macroeconômica, bem como as mudanças ocorridas ao longo do tempo no bloco no poder.
O capital financeiro (nacional e internacional) e a fração do capital produtora-exportadora de commodities industriais e agropecuárias (grandes grupos econômicos nacionais) constituem, desde o segundo governo FHC, as forças políticas hegemônicas no interior do bloco no poder. O governo Lula e Dilma, mais o primeiro do que a segunda, arbitram e legitimam esses interesses no âmbito do Estado, implementando secundariamente, de forma subordinada e limitada, os interesses de algumas frações da classe trabalhadora. Portanto, essas frações do capital são as que mais se beneficiam, de fato, com o atual padrão de desenvolvimento brasileiro.
No entanto, existem disputas e contradições entre essas frações e entre elas e as demais frações do capital. As candidaturas de Dilma, de um lado, e de Aécio e Marina, de outro, apontam modos distintos de arbitragem e representação desses interesses - com o capital financeiro preferindo, claramente, as duas últimas, em que pese financiar todas as três. Entre os grandes grupos econômicos e os distintos segmentos do agronegócio, a situação não é tão clara; o posicionamento político não é homogêneo, depende da forma como cada um se insere na economia brasileira e que tipo de articulação estabelece com o Estado e suas políticas econômicas. A lista dos principais financiadores das candidaturas evidencia isso.
Correio da Cidadania: Finalmente, em sua opinião, o grande capital, produtivo e financeiro faria alguma diferença entre Aécio e Marina? Algum deles não está mais na sua mira?
Luiz Filgueiras: O candidato original do grande capital financeiro (nacional e internacional) é, e sempre foi, sem dúvida, Aécio Neves. A sua eleição representa a volta das forças político-sociais que foram a base de sustentação dos governos FHC, principalmente do segundo governo (1999-2002). É a volta da aplicação restrita da política macroeconômica configurada no chamado “tripé”: elevados superávits primários (ajuste fiscal duríssimo, com forte redução dos gastos públicos), perseguição de metas de inflação cada vez mais baixas (taxas de juros elevadas) e câmbio flutuante (sem intervenção do governo no sentido de acumular reservas cambiais).
A confiança do grande capital financeiro de que Aécio cumprirá essa agenda é total. Além disso, tem a certeza que ele promoverá a volta das famosas “reformas”: outra reforma da previdência social (estímulo à previdência e fundos de pensão privados) e a reforma trabalhista (desregulação do mercado de trabalho, com neutralização e flexibilização da CLT e a retirada dos direitos dos trabalhadores, legalmente e/ou de fato).
No entanto, com a morte de Eduardo Campos, e a dificuldade da candidatura de Aécio deslanchar, Marina Silva tornou-se o Plano B para o grande capital financeiro. No entanto, nos últimos dias, com a recuperação de Aécio nas pesquisas eleitorais, a incerteza cresceu, inclusive porque, no segundo turno contra Dilma, Marina Silva é mais competitiva.
Esta última é o Plano B porque, embora venha acenando, desde as eleições de 2010, para o grande capital financeiro (com um programa econômico de direita, claramente neoliberal) e as forças mais conservadoras e reacionárias da sociedade brasileira (fundamentalistas religiosos e, mais especificamente, evangélicos; além de moralistas de todo tipo), ela é uma espécie de “cristã nova”, uma outsider, que vem de fora do círculo político-econômico e da cultura das classes dominantes. Por isso, um futuro governo dela desperta desconfianças e receios ao grande capital financeiro, que, além do preconceito de classe (tal como ocorreu com relação a Lula), duvida da autenticidade de sua real conversão ao neoliberalismo e de sua capacidade política de implementar o programa neoliberal proposto.
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania.