As eleições e as diferentes faces da crise da política
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- Murilo Gaspardo
- 21/10/2014
No próximo domingo, os brasileiros voltarão às urnas. Supondo-se que o voto seja uma operação absolutamente racional (o que é contestado por inúmeras pesquisas, que atestam o peso do elemento emocional, do carisma etc.), dois critérios fundamentais deveriam pautar a escolha dos eleitores: (1) o compromisso do candidato e de seu grupo político com o princípio republicano; e (2) suas diferenças programáticas.
O princípio republicano exige uma clara distinção entre o interesse público e o interesse privado, com a supremacia do primeiro sobre o segundo na condução do governo e da administração pública, e a não utilização de recursos públicos para benefícios particulares (do candidato, de seu partido, coligação e base no Congresso, financiadores e corporações que o apoiam). Qualquer que seja o programa vencedor, deveria ser implementado para o atendimento do interesse público (ou melhor, da concepção de interesse público defendida por tal programa). Trata-se, pois, de um pressuposto para a passagem para a segunda fase da avaliação: a comparação dos programas e da capacidade de os postulantes concretizá-los.
O oposto mais evidente (porém não o único) do princípio republicano é a corrupção, que tem sido um dos temas prioritários do debate entre os candidatos que disputam o segundo turno das eleições presidenciais. Ocorre que a utilização deste critério para pautar o voto é muito difícil, pois há inúmeros escândalos de corrupção envolvendo os grupos políticos de ambos os candidatos. Além disso, o que se percebe nas campanhas é que o diagnóstico fica na superfície.
Aécio Neves trata do tema como se a corrupção fosse privilégio do PT e, para resolver o problema, bastaria tirar tal partido do poder e colocar em seu lugar o PSDB, que seria composto exclusivamente por pessoas honestas, dignas, honradas etc. Dilma Rousseff responde às acusações que recebe com outras acusações, e avança no diagnóstico ao apontar a necessidade de reformas institucionais, a começar pelo financiamento eleitoral: enquanto as campanhas eleitorais custarem milhões de reais e forem financiadas por grandes empresas com interesses diretos na condução dos negócios públicos, não há como se esperar o fim da corrupção em sentido estrito e da privatização do Estado, ou seja, de seu domínio pelos interesses privados, notadamente dos grupos econômicos mais poderosos.
Porém, entre o discurso e a prática, há grande distância: ambos os candidatos são financiados por tais grupos, inclusive pelas construtoras citadas no “caso da Petrobras”, e não indicam que construirão sua governabilidade a partir de bases diferentes do que Marcos Nobre vem denominando de “pemedebismo”: a formação de super-maiorias parlamentares a fim limitar a ação da oposição, tendo como contrapartida a distribuição de “fatias” e o bloqueio a qualquer tentativa de reforma estrutural, ou seja, aquelas que podem afetar os interesses de diferentes corporações e históricos donos do poder.
Aliás, essa prática esteve presente tanto nos governos do PSDB como nos do PT. Marina Silva ensaiou uma proposta alternativa, com a ideia de “nova política”, mas não deu substância à ideia, não disse como fazer, e perdeu-se em um emaranhado de contradições. Para avançar nesta necessária proposta de “nova política” é preciso, antes, aprofundar o diagnóstico, por exemplo, seguindo o rumo apontado pelas pesquisas de Marcos Nobres, refletindo sobre a histórica cultura política brasileira patrimonialista-clientalista, investigando o caráter estrutural (e não conjuntural) da corrupção no sistema capitalista etc. Mas tal desafio não foi empreendido por nenhum dos dois candidatos/grupos políticos que disputam as eleições.
Se, diante disso, o eleitor que preferir não anular seu voto resolver pautá-lo pela comparação entre os programas dos candidatos, não terá menos dificuldade. Embora ambos apresentem um compromisso com o controle da inflação, o crescimento econômico e a manutenção (e aperfeiçoamento) dos programas sociais, seria incorreto e injusto dizer que os programas são iguais. Há nítida distinção entre as concepções de ambos sobre o papel do Estado, bem como alguma diferença sobre a compreensão dos direitos humanos (veja-se, por exemplo, a ênfase atribuída por Aécio Neves à proposta de redução da maioridade penal em suas propostas para a segurança pública) e quanto à posição que ocupam diante do conjunto de interesses em conflito na sociedade (para apurar isto, basta observar o comportamento da Bolsa de Valores diante dos resultados das pesquisas eleitorais).
Entretanto, quem não se contenta com variações programáticas de grau, de adjetivos e modelos de gestão, e gostaria de pautar seu voto por diferenças substantivas, de modelo de Estado e sociedade, terá dificuldades em encontrar razões para votar em um ou outro candidato. Mas nenhum dos dois ou seus respectivos partidos podem ser responsabilizados exclusivamente por isto, pois estamos diante de uma crise programática global, decorrente da imposição do consenso neoliberal.
Para tanto, como tem insistido Boaventura de Sousa Santos, é preciso não apenas construir alternativas programáticas, mas sim "um pensamento alternativo de alternativas", pois não é possível romper com os projetos políticos hegemônicos se permanecermos presos às formas de conhecimento hegemônicas.
Além disso, a política também padece de uma crise de impotência, vinculada aos fenômenos da globalização e do policentrismo do poder, ou seja: ainda que tivéssemos programas políticos claramente distintos em disputa, uma democracia representativa amadurecida e uma condução do Estado pautada pelo princípio republicano, faltaria um agente político capaz de concretizar tais projetos democraticamente formulados (Bauman, 2000, Nogueira, 2008), pois estamos diante de uma “incapacidade cada vez mais acentuada do sistema político, ancorado no Estado-Nação, de representar os cidadãos na prática efetiva da governança global” (Castells, 2005, p. 99), talvez porque tenha ocorrido a “substituição da política pelo mercado como fator determinante do ‘âmbito público’” (FARIA, 2002, p. 28).
Devemos, pois, tentar compreender o grande índice de abstenções e votos brancos e nulos que veremos no próximo domingo, e, ainda, os muitos votos válidos constrangidos, sem entusiasmo, com pouca esperança e até muita tristeza, não somente olhando para os dois personagens principais desta disputa e seus respectivos partidos e grupos políticos, mas dentro do contexto de uma crise global da democracia e da política que, por sua vez, também exige respostas globais. Mas isto é assunto para outro artigo.
Murilo Gaspardo é professor de Ciência Política e Teoria do Estado da UNESP/Franca e doutor em Direito do Estado pela USP.
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