A esquerda socialista e o segundo turno: reiterando a necessidade de um posicionamento ativo
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- Roberto Leher
- 21/10/2014
O presente texto incorpora as reflexões realizadas por Marcelo Badaró Mattos em “A necessidade de uma política: as eleições brasileiras de 2014 e os dilemas da esquerda socialista no segundo turno”
(http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=10143:submanchete141014&catid=25:politica&Itemid=47 ), e sustenta a insuficiência da declaração do voto em Dilma, em nome do “menos pior”, e do voto nulo, porém sem apontar uma agenda para o futuro da esquerda socialista.
Em que difere o debate atual dos anteriores? Desde as eleições de 2002, a polarização final do processo eleitoral para presidente da República se deu entre o PT e o PSDB. Nas eleições de 2002, o voto crítico em Lula da Silva foi relativamente consensual. A experiência do governo Lula, entretanto, frustrou esse voto pelos motivos já longamente expostos: a manutenção dos fundamentos da política econômica (juros elevados, cambio flutuante, superavit primário, metas de inflação ...), o aprofundamento da privatização da educação (por meio do repasse de recursos públicos – FIES, ProUni – para os grupos econômicos liderados pelos fundos de investimento), a contrarreforma da previdência abrindo caminho para o regime de capitalização em benefício do setor financeiro (FUNPRESP), a tentativa de quebrar o caráter público das universidades com a imposição da EBSERH e a adoção do modelo gerencial bresseriano no REUNI e, objetivamente, a regressão na reforma agrária, o adensamento do uso do aparato repressivo contra os movimentos sociais, a opção pelo neoextrativismo e pelo recrudescimento das expropriações, as reformas trabalhistas em etapas, a intervenção militar no Haiti - em suma, creio não ser necessário seguir exemplificando que o governo Lula e, ainda mais, o governo Dilma, seguiram um rumo congruente e consistente com os anseios do grande capital.
Essa avaliação parte dos próprios senhores do mundo. Foram as opções de política econômica e a política de alívio à pobreza para manter a governabilidade que levaram o país a ter a chancela do “grau de investimento” da banca internacional. Não menos simbólica foi a escolha de Lula da Silva como personagem exemplar pela cúpula mundial do capital em Davos (Fórum Econômico Mundial), concedendo-lhe o reconhecimento de “Estadista Global" em 2010. Diante das incertezas de uma crise tectônica, o capital celebrava o desempenho “pró-sistêmico” de Lula da Silva. Na mesma toada, o jornal francês Le Monde o escolheu como "Homem do Ano" de 2009; o diário espanhol El País o homenageou com o título de "Personagem Ibero-Americano de 2009"; e o vetusto Financial Times o elegeu como uma das 50 personalidades que moldaram a década. Não seria um exagero afirmar que essas avaliações, em curso desde 2005, impediram o impeachment de Lula da Silva na crise do chamado “mensalão”.
O que mudou, então? Obviamente, nem Lula da Silva, nem Dilma Rousseff abandonaram os seus compromissos com o grande capital, girando os seus governos para a esquerda. Longe disso. O modelo econômico e social pró-capital não foi alterado em seus fundamentos. O recente pronunciamento de The Economist (1), contudo, indica claramente que importantes centros de pensamento da alta burguesia anseiam pelo fim do governo Dilma, em prol de Aécio Neves. Confirmando seu compromisso com a banca internacional, o candidato já indicou previamente o braço direito de George Soros no Brasil, Armínio Fraga, como seu ministro da Fazenda. Esse não é um dado irrelevante da conjuntura.
A contenda nada tem a ver com direita e esquerda, mas com disputas no bloco no poder considerando as expectativas das frações burguesas dominantes frente à crise. Lula da Silva contava com o apoio do grande capital por conseguir harmonizar os grandes interesses burgueses, possivelmente não com a celeridade e profundidade desejada, mas entregando algo sumamente precioso para o capital: a estabilidade política. Atenuando e mesmo domesticando os sindicatos aliados que restringiram suas ações a pautas estritamente salariais – a despeito de proclamas aqui e ali em prol da redução dos juros e da redução da jornada de trabalho, encaminhamentos simplesmente ignorados pelos governos Lula da Silva e Dilma. Conforme o presidente da CNTE, a atual presidenta, ao longo de 4 anos, não dialogou diretamente com os representantes da Confederação (2). Ainda que o MST tenha seguido em luta em prol da reforma agrária, Lula a travou “em nome dos heróis do século XXI, os agronegociantes do agrocombustível!”, conforme chegou a proclamar, e Dilma retrocedeu os novos assentamentos aos do tempo do general Figueiredo.
Mas a economia brasileira foi profundamente transtornada com o aprofundamento da crise econômica mundial. As locomotivas das exportações brasileiras (setores agro e mineral) foram atingidas pelos sinais de crise também na China, provocando queda acentuada de preços das commodities após o período de bonança. A relativa recuperação estadunidense provocou novas expectativas de negócios neste país, afetando os investimentos estrangeiros que vinham impulsionando febril processo de aquisições e fusões que, grosso modo, desnacionalizou ainda mais a economia brasileira. Cada vez mais, os déficits estão sendo cobertos com a emissão de títulos que, por sua vez, tiveram de embutir taxas de juros crescentemente elevadas e com prazos de vencimento cada vez menores.
Na avaliação do grande capital é hora de impor novo aperto no cinto dos trabalhadores, reduzir impostos para os de cima, cortar gastos públicos em nome do ajuste fiscal pois, sem isso, apregoam os seus porta-vozes, a sangria do pagamento dos juros, as privatizações com verbas públicas, a financeirização da educação, saúde, previdência, a exportação de commodities, tudo isso poderá entrar na zona perigosa da crise com desdobramentos imprevisíveis. Nos estratos inferiores da economia, os sinais de que os negócios estão sob risco são evidentes: queda do preço das commodities, afetando agricultores apensados ao agronegócio, falências de lojas e setores de serviços, ampliação da capacidade ociosa e perda de competitividade da indústria. Estes sinais alimentam o desejo de um governo “puro sangue” por parte desses estratos.
Para piorar a avaliação do Estado Maior do Capital, as Jornadas de Junho de 2013 patentearam que o governo afinal não estava mais cumprindo com o seu diferencial: a manutenção da estabilidade e da ordem desejada pelo capital. O crescimento do número de greves é percebido como uma ameaça ao feroz ajuste da economia, a rigor, uma pauta de Dilma e Aécio que, entretanto, serão encaminhadas por modus operandi distintos, como a pré-nomeação de Armínio Fraga permite antever.
O resultado das eleições para o parlamento expressou essa mudança, em favor dos setores mais reacionários da sociedade, sustentando uma pauta moralista de cunho medieval, explicitamente de direita, mas composta por serviçais do capitalismo monopolista. Assim, a preocupação com a futura governabilidade de um governo Aécio foi mitigada pela avaliação de que uma nova maioria de direita poderia dar sustentação a seu governo.
Isso não quer dizer que o grande capital abandonou o governo gerenciado pelo PT. As doações dos bancos e empreiteiras ainda são majoritariamente para Dilma, mas o Estado Maior do Capital certamente percebeu que existe um descolamento entre as suas próprias expectativas (de que mais um mandato do PT poderia ser uma alternativa racional, ainda que pouco ambiciosa, mas prudente sob o ponto de vista do controle social dos subalternos) e sua base social, crescentemente insatisfeita com o governo Dilma Rousseff. A sinalização de que tal descompasso tem de ser resolvido, optando com determinação por Aécio, foi claramente exposta na matéria da revista The Economist.
A esquerda socialista está diante de um quadro complexo. Sua crítica ao governo Dilma não pode ser confundida com a das frações burguesas dominantes e imperializadas. Isso exigirá da esquerda a capacidade de um diálogo pedagógico com os trabalhadores e suas organizações.
Muitos militantes votarão em Dilma, percebendo as movimentações da direita e do grande capital. O diálogo somente será possível sem esquematismo e consignas congeladas. Não basta se insular no posicionamento de que “tanto faz Dilma ou Aécio”, em favor do voto nulo, pois, desse modo, nada estaria sendo feito para interpelar o proletariado quanto ao significado dessa imensa inflexão à direita que ocorre no Brasil.
Nesse sentido, a agenda proposta por Marcelo Badaró é muito importante. Embora não seja mais exequível um encontro unificado da esquerda socialista objetivando listar as exigências para o voto crítico em Dilma, a tarefa programática segue sendo prioritária para que a esquerda socialista possa cumprir um papel protagônico e educativo. Retomo a síntese de Valério Arcary (3), incorporada no texto de Badaró: “Se Dilma estivesse disposta a fazer uma reforma fiscal com impostos rigorosos sobre as grandes fortunas, manifestasse a intenção de romper com as chantagens do rentismo e, apoiada na mobilização dos trabalhadores, realizar uma auditoria e suspensão do pagamento da dívida pública. Se estivesse comprometida em garantir um aumento de verdade no salário mínimo, ou uma política de combate à privatização da educação, da saúde, do transporte urbano e da segurança. Se houvesse uma mínima possibilidade de que Dilma tomasse a iniciativa pela legalização do aborto, pela criminalização da homofobia, pela legalização do consumo de psicotrópicos. Se Dilma anunciasse a retirada das tropas do Haiti”.
Evidentemente, Arcary elencou pontos a título de exemplos, inclusive para fundamentar seu posicionamento pelo voto nulo e, por isso, outras reivindicações teriam de ser acrescentadas, como por exemplo, o cumprimento do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária, originalmente elaborado por Plínio de Arruda Sampaio por ocasião das eleições em 2002 e nunca implementado. O Encontro Nacional de Educação, realizado em agosto de 2014, esboçou outra agenda para a educação que não a do capital, em curso no país. A previsível recusa e desconsideração dessa agenda poderia tornar o posicionamento dos militantes que já possuem posição partidária a favor do voto nulo um ato pedagógico, abrindo um campo de diálogo/ formação política com os trabalhadores, o mesmo sendo verdade para a discussão do voto crítico, pois desprovido de ilusões pueris de que no quarto mandato a orientação pró capital do governo seria alterada.
Com a discussão do que pode unificar e viabilizar a unidade de ação capaz de materializar a frente de esquerda, o atual posicionamento pelo voto crítico em Dilma, sustentado por setores do PSOL, e em prol do voto nulo (PCB, PSTU e setores do PSOL), teria um referente programático que poderia contribuir para que os trabalhadores estivessem melhor armados teórica e organizativamente para enfrentar os ásperos desdobramentos do processo eleitoral.
Notas:
(1) The Economist, 18 Out. 14, Brazil’s presidential election. Why Brazil needs change http://www.economist.com/news/leaders/21625780-voters-should-ditch-dilma-rousseff-and-elect-cio-neves-why-brazil-needs-change?zid=305&ah=417bd5664dc76da5d98af4f7a640fd8a
(2) Vanilda Oliveira, A Dilma precisa receber e ouvir os trabalhadores em Educação, CUT Nacional, 20/03/14, disponível em:
http://www.cut.org.br/noticias/a-dilma-precisa-receber-e-ouvir-os-trabalhadores-em-educacao-1004/
(3) Valério Arcary. Não declares que as estrelas estão mortas só porque o céu está nublado, Correio da Cidadania, disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=10134:submanchete101014&catid=72:imagens-rolantes
Roberto Leher é professor titular de Políticas Públicas em Educação da Faculdade de Educação da UFRJ e de seu Programa de Pós-Graduação, colaborador da ENFF e pesquisador do CNPQ.
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