Correio da Cidadania

‘Questão energética não existiu no debate eleitoral’

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No epílogo da série de entrevistas a respeito dos grandes temas que foram negligenciados ou pouco aprofundados pelos debates e campanhas eleitorais, o Correio da Cidadania entrevistou o arquiteto e ativista Chico Whitaker, para conversar sobre o setor energético brasileiro e as opções políticas e econômicas na condução do setor.

 

“O pior da nossa matriz não é propriamente ela, mas a maneira como o problema é enfrentado, com a produção através de grandes empresas e implantação da lógica das mesmas empresas, como se vê até na energia eólica”, explicou.

 

Whitaker alerta que não basta investir em energias mais limpas e renováveis sem romper com a lógica do lucro, exemplificando comunidades pescadoras que rejeitam as usinas eólicas. Sobre o dilema entre as fontes atualmente mais exploradas e os altos custos das novas, ele diz ser “tudo dependente de tecnologia, que exige pesquisas. Inovações exigem recursos. Se não se dedicam recursos, não vêm nunca”, ponderou.

 

O arquiteto reafirma que os investimentos incessantes nas fontes poluentes de energia serão nefastos no longo prazo e não enxerga perspectiva, seja com Dilma ou Aécio, de se reverter o atual estado de obediência às pressões e acordos dos bastidores políticos. Inclusive em favor da energia nuclear, uma das principais frentes de combate do setorial de energia do Fórum Social Mundial, do qual faz parte.

 

“É absolutamente impressionante a pobreza do debate eleitoral. Mas corresponde também à pobreza geral da consciência coletiva sobre a importância dos temas energéticos. Ainda não entraram na preocupação generalizada da população. Agora, por exemplo, com a falta d´água, a pessoa está acordando para o que significa a ausência de planejamento no setor”, lamentou.

 

A entrevista completa com Chico Whitaker pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: Você poderia comentar um pouco do trabalho desenvolvido pelo setorial de energia do Fórum Social Mundial?

 

Chico Whitaker: O Fórum Social Temático de Energia foi proposto a partir de uma crítica à matriz energética brasileira. Primeiro, a crítica foi pensada na perspectiva de um modelo de desenvolvimento que exige cada vez mais energia, em favor do crescimento econômico e dos grandes consumidores, que são as indústrias e, principalmente, a mineração. Assim, a identificação das fontes locais de energia está muito amarrada à perspectiva do Fórum.

 

Uma das críticas que fazemos, como mostra o próprio enunciado do Fórum, é: energia para que, para quem e como? Essas três questões colocam: para que nós queremos energia? É para, puramente, levar ao desenvolvimento industrial e ao desenvolvimento da mineração? Ou é, basicamente, pela necessidade da população e da indústria, em termos de criação de emprego etc.?

 

Evidentemente, tais investimentos são relativos ao primeiro objetivo, o drama da nossa matriz energética. Por exemplo: as hidrelétricas são um desastre ecológico e ambiental, e uma maneira de obter energia que, no fundo, causa muito mais prejuízo do que benefício. E nem pensemos em tipos de obtenção de energia como as termelétricas e o uso de combustível fóssil que está, principalmente agora, contribuindo enormemente para a produção do dióxido de carbono que vai para a atmosfera, o aquecimento global etc.

 

Entretanto, o pior da nossa matriz não é propriamente ela, mas a maneira como o problema é enfrentado, com a produção através de grandes empresas e implantação da lógica das mesmas empresas, como se vê até na energia eólica. O Brasil tem abertura para se investir na energia eólica e solar, mas entrega tudo para as empresas, que entram e atropelam o que está pela frente.

 

Temos situações de praias no Nordeste em que a população foi simplesmente deslocada e desalojada para dar lugar às grandes torres e hélices eólicas, tirando delas as condições de vida, de trabalho, o próprio acesso ao mar, o que impossibilita o trabalho dos pescadores. Por conta disso, existem muitos movimentos sociais do Nordeste contra as eólicas, porque, apesar de ser uma fonte de energia mais limpa e mais renovável do que, por exemplo, a nuclear, está causando tanto dano para a vida das pessoas que elas acabam se levantando e dizendo “não queremos eólica aqui”.

 

Portanto, a crítica geral é a respeito da maneira como se concebe a necessidade de energia no Brasil, a forma de obtê-la e as reais perspectivas que temos de levar em conta, que não são as de crescimento econômico puro e simples, mas, fundamentalmente, de desenvolvimento, ou seja, de atendimento progressivo das necessidades de toda a população.

 

Correio da Cidadania: Sabemos que, com a atual crise hídrica, as termelétricas, opção energética cara e poluente, estão a todo vapor. Qual é a sua opinião sobre a gestão do setor elétrico hoje no Brasil, no que diz respeito, em primeiro lugar, às fontes que são priorizadas?

 

Chico Whitaker: O que nos pareceu claro na discussão do Fórum foi exatamente a questão da matriz, que é centralizada através de grandes empresas. Implica em grandes sistemas de transmissão, que atravessam territórios e são levados a grandes distâncias, quando o Brasil deveria partir para um esquema de produção descentralizada, algo possível através de outras fontes, principalmente através da solar e da eólica.

 

A energia solar, por exemplo, tem uma potencialidade enorme de ser produzida em quantidades que atendam as comunidades que estão diretamente embaixo dos painéis. Isso elimina toda a problemática da transmissão e, ao mesmo tempo, fica na dimensão das pessoas e não na dos “grandes painéis”, que são imensas “fazendas solares”, como se diz, e acabam sendo tão grandes como as hidrelétricas e outros territórios por aí afora.

 

Para exemplificar, usamos o caso de Brasília: a cidade poderia ter painéis solares em todos os seus prédios e diminuir a necessidade de energia. Resolveria ali mesmo sua geração, diretamente com o Sol, sem todos os outros danos. Obviamente, diminuiria a imposição de outros tipos de fontes de energia suprirem parques industriais e outras necessidades energéticas.

 

A mudança da matriz energética implica na concepção de produção descentralizada de energia.

 

Correio da Cidadania: Há estudiosos das hidroelétricas no Brasil (figuras que jamais tiveram seus nomes ligados a lobbies de interesse) que as defendem como uma opção necessária para um país com as nossas dimensões e necessidades, ainda que contestem a forma como foram tocadas obras como Belo Monte. O que você tem a dizer a esse respeito?

 

Chico Whitaker: Na realidade, a discussão sobre a matriz energética interfere em outros interesses e um deles é o das grandes empreiteiras de obras públicas. No fundo, há hidrelétricas enormes que são construídas muito mais pelo resultado do lobby e da pressão da empreiteira sobre o governo do que da necessidade objetiva ou de melhor solução para aquele caso.

 

As grandes barragens, as maiores do mundo, ou coisa que o valha, são tipicamente uma concepção da empreiteira, que quer fazer a grande obra e provar que aquela eletricidade é necessária. Mas, na verdade, necessário para ela é auferir lucros maiores através de uma grande obra.

 

O engano está em toda a maneira de abordar a questão. É típico, por exemplo, o caso das hidrelétricas que estão sendo feitas na Amazônia: inundam enormes territórios, exigem sistemas de transmissão de longa distância e causam diversos danos ambientais e sociais. Acima de tudo, são grandes negócios para as empreiteiras, e não para o atendimento de uma necessidade energética.

 

E isso também se vincula ao problema da visão sobre o crescimento econômico; se é preciso crescer a qualquer custo ou se é preciso atender às necessidades da sociedade, ao invés das necessidades de crescimento do capital.

 

Correio da Cidadania: Diria que algum dos atuais postulantes à presidência daria mais força à pauta das energias renováveis?

 

Chico Whitaker: As fontes renováveis aparecem cada vez mais, diante do dilema que se coloca com a energia nuclear. Mas o grande drama é que a Dilma tem uma posição pró-nucelar, a favor das grandes empresas e da produção desse tipo de energia. E o Aécio não difere. Ele nunca se exprimiu sobre o assunto e, por mais que devesse, tal discussão não apareceu na campanha. Só apareceu uma vez, por uma colocação do Eduardo Jorge, em torno, especificamente, do Tratado Nuclear Brasil-Alemanha (assinado em 1975) e da insegurança de Angra 3, que está sendo construída no momento.

 

Correio da Cidadania: Mas as fontes renováveis poderiam de fato suprir de modo considerável as necessidades energéticas do país?


Chico Whitaker: Essas fontes estão em processo de implantação. O problema é: onde situar os investimentos? Porque tudo depende de tecnologia, que exige pesquisas. Inovações exigem recursos. Se não se dedicam recursos, não vêm nunca. As eólicas, por exemplo, precisam de todo um desenvolvimento tecnológico, seja para grandes ou pequenas hélices, pois se usará uma ou outra de acordo com as circunstâncias.

 

O desenvolvimento de um tipo de energia pouquíssimo usada no Brasil, a energia das marés, exigiria muito investimento em pesquisa. E na energia solar, estão sendo construídas cada vez mais formas alternativas - inclusive, na universidade brasileira, já existe pesquisa pra produzir energia fotovoltaica através de outros elementos que não o silício, ou seja, há uma pesquisa a fazer. Somente à medida que houver investimentos do governo para as experiências ganharem espaço, avançar-se-á nessas alternativas.

 

Hoje, objetivamente, a produção de energia eólica no Brasil já ultrapassou, em quantidade, a energia nuclear. Já a energia solar está caminhando muito mais lentamente. Mas, em outros países, como na China, que é impressionante, e na Alemanha, a porcentagem da energia solar na matriz energética já está bem acima do que qualquer outra fonte.

 

Correio da Cidadania: Qual a força do lobby nuclear no Brasil?

 

Chico Whitaker: O lobby nuclear é muito complexo. Porque não se trata somente de tecnologia; tem origem e objetivo militares. Desde o começo, a implantação de usinas de energia elétrica nuclear era uma maneira de dominar uma tecnologia de produção de bombas. Esse era o objetivo. O lobby é muito mais para garantir a chamada soberania nacional nos armamentos do que propriamente atender a uma necessidade energética.

 

A energia nuclear é um pretexto pra outra coisa, a bomba, o que no Brasil começou com os militares. Eles queriam chegar na bomba, pois tinham o projeto do “grande Brasil”, que teria capacidade de se impor no conjunto das nações se também fosse detentor de bombas atômicas, uma autêntica loucura. Por isso foi feito o acordo nuclear com a Alemanha.

 

Na mesma época, o Japão entrava no esquema nuclear fortemente, numa perspectiva armamentista, pois já tinha passado o tempo da ocupação norte-americana após a segunda guerra. Ou seja, o nuclear está muito vinculado a este problema. E vinculado também, de novo, às grandes empresas que ganham dinheiro com tais empreendimentos. E já não são mais empresas nacionais, são empresas internacionais. Nós, atualmente, temos a francesa Areva, a russa Rosatom, além dos japoneses, que até há pouco tempo, antes do acidente da usina de Fukushima, estavam exportando usinas para outros países.

 

A indústria nuclear tem um interesse muito grande de se expandir. Porém, a energia nuclear, além desses aspectos todos vinculados ao militarismo, tem outro aspecto ainda mais dramático: é extremamente perigoso. Um só acidente (entre muitos que podem acontecer, mas apenas um) tem consequências impressionantemente negativas para a população e a vida do país. O lobby nuclear esconde do público exatamente aquilo que se tornou necessário para a vida: o desaparecimento da radioatividade da crosta terrestre, que permitiu o florescimento da vida na Terra.

 

Agora, o ser humano, de novo, através dos testes nucleares e da expansão das usinas, está espalhando elementos radioativos pela crosta terrestre de uma maneira inacreditável.

 

Correio da Cidadania: Qualquer seja o vencedor do pleito presidencial, portanto, a energia solar seria facilmente preterida por essa e outras matrizes mais poluentes?

 

Chico Whitaker: Até agora, a perspectiva que eles deram foi essa. A Dilma já foi presidente quatro anos e, antes, ministra das Minas e Energia. Não tenho dúvida nenhuma de que ela acha o nuclear necessário. A solar e a eólica são intermitentes, pois não há solar à noite e não há eólica sem vento, e deve-se cobrir a insuficiência das duas fontes. Mas nem Dilma nem Aécio veem os riscos, o que é um dado real da vida brasileira.

 

No Japão, ficou claríssima a desinformação geral que temos sobre os reais riscos do nuclear. Mas, na medida em que os candidatos não veem tais riscos, os tecnocratas do setor nuclear (ou nucleocratas) tampouco verão. Estamos falando de pessoas tão inconscientes que seus críticos mais ferrenhos e ferozes os chamam de “tecnopatas” ou “nucleopatas”.

 

É uma autêntica loucura pretender aumentar o parque energético através de energia nuclear. Na Alemanha, o lado anti-nuclear ganhou, mas na França não, porque a França depende em 77% do nuclear em sua matriz energética. No Japão, ainda há uma autêntica batalha no país, pois 75% da população são contra o nuclear e 11% a favor, mas o voto lá é facultativo e uma porcentagem muito pequena da população tem votado.

 

Correio da Cidadania: Você citou que a discussão sobre a questão energética não apareceu na campanha. Como tem visto essa ‘displicência’ com tema tão essencial no debate eleitoral?

 

Chico Whitaker: Não existe debate. O debate eleitoral fica muito mais voltado ao que o governo pode fazer para a população pobre, necessitada, ou para algum serviço que tem de prestar. Assim, não se olha para trás, isto é, para a própria estrutura econômica do país e a maneira como se desenvolve.

 

É absolutamente impressionante a pobreza do debate eleitoral. Mas corresponde também à pobreza geral da consciência coletiva sobre a importância dos temas energéticos. Ainda não entraram na preocupação generalizada da população. Agora, por exemplo, com a falta d´água, a pessoa está acordando para o que significa a ausência de planejamento no setor.

 

Espero que não aconteça no Brasil, mas só vão acordar para o nuclear quando houver algum desastre. Já levamos o maior susto com 19 gramas de césio lá em Goiânia, que matou um montão de gente, mas depois esquecemos. Aquilo foi há trinta anos e hoje ninguém sabe o que aconteceu em Goiânia. Infelizmente, o imaginário coletivo, a maneira como a população vê a coisa e a desinformação geral fazem tudo ser empurrado com a barriga.

 

As pessoas só se preocupam com o plano imediato. É óbvio que saúde, educação, escola, habitação são essenciais, mas se inserem em um contexto que diz respeito à incapacidade do país em satisfazer suas necessidades.

 

Correio da Cidadania: Por que a candidata petista, oriunda do setor elétrico, não toca no assunto, a seu ver?

 

Chico Whitaker: Porque este não é um assunto que interessa à população. É um tema tratado muito tecnicamente. Não é abordado como uma opção de política econômica e energética. Assim, a Dilma não sente necessidade de colocar o problema ao público. Exatamente porque ninguém está exigindo.

 

Foi excepcional o Eduardo Jorge levantar a questão num debate. Mas isso ocorreu uma única vez, em um debate, em uma pergunta. Ou seja, a preocupação geral é mínima.

 

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Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania.

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