‘Petro-roubalheiras são face de operação do capitalismo sem perspectiva transformadora’
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- Valéria Nader e Gabriel Brito, da Redação
- 20/11/2014
Aumento da taxa de juros e reajuste de tarifas públicas foram as primeiras medidas do governo atual após o segundo turno. O mesmo que tomará posse em janeiro e que, na campanha eleitoral mais acirrada dos últimos anos, parecia ter reacendido uma militância petista que há anos não mostrava suas garras, e cujas bandeiras mais incendiárias se armaram com críticas às medidas ditadas pela ortodoxia monetária e, especialmente, à autonomia do Banco Central.
A esse cenário se entranham agora os escândalos na Petrobras, os torpes oportunismos da direita tradicional em torno aos fatos e a espetacularização da mídia corporativa. Para avaliar o que tantos novos acontecimentos dizem do velho novo governo – ou do novo velho governo - e também dos caminhos e lógica que determinam o capitalismo que se pratica no Brasil, o Correio entrevistou o ex-deputado federal Milton Temer.
Temer evita a desesperança, mas não demonstra traço algum de otimismo gratuito, face a um governo que prosseguiu no ‘lulopragmatismo’ do ‘reformismo fraco’, corroborando um ‘pacto conservador de alta intensidade’. Sua estupefação aparece desde o início da conversa: “preocupou-me muito a entrevista do Aloizio Mercadante à Miriam Leitão, quando garantiu que a política de juros não diz respeito à presidência, porque o aumento da taxa de juros foi consequência da ‘autonomia do Banco Central’. O que é isso?! Este foi um dos principais combates do segundo turno, e agora Mercadante fala que o juro aumentou em razão da ‘autonomia do BC’. Vão mesmo dar autonomia para o BC fazer política monetarista ditada pelo FMI? O que está destruindo a Europa será a nossa salvação?”.
Os escândalos da Petrobras, por sua vez, o ex-deputado os situa e enxerga além do clima policialesco com o qual oposição, direita e mídia tentam atrair as atenções do público e ganhar espaços. Para Temer, “esses fatos são sequelas do ‘lulopragmatismo’. A transformação da Petrobrás num espaço de distribuição de cargos específicos para bancadas paralelas – que sabe-se lá porquê constituem o arco de alianças do NeoPT –, evidentemente, tinha de resultar, em algum momento, nessa bandalheira. E é claro que a direita joga pesado (...) Porém, é evidente que estamos diante de uma tragédia. A despolitização da política, e essa forma petista de operar o capitalismo de maneira ‘diferente’, mas basicamente operando-o, ao invés de enfrentar suas lógicas com perspectiva transformadora - como o PT sempre se propusera -, nos deixam numa situação trágica, de ‘perda de geração’”.
Temer avança ainda em avaliações quanto ao ineditismo do fato de os corruptores estarem pela primeira vez no olho do furacão nacional; às relações históricas que o PT, Lula e Dilma estabeleceram com o poder; às perversas consequências que a degradação de um partido como o PT pode ter sobre as bases sociais que se formaram sob as asas do partido e sobre o futuro político da nação; e ao único caminho, de radical e profunda democratização em várias frentes, que poderia salvar o governo das armadilhas que estão sendo armadas por oposição e direita. A seguir, a entrevista completa com Milton Temer.
Correio da Cidadania: Após o fim do segundo turno, os primeiros acontecimentos foram o aumento da taxa de juros, reajuste de tarifas públicas e escândalos na Petrobras. O que você tem a dizer sobre estes fatos e aquilo que já insinuam para o segundo mandato de Dilma?
Milton Temer: Ainda está tudo muito impreciso. Mas quero registrar uma coisa bizarra: um dos principais combates da campanha da Dilma, que recebeu apoio de outras forças de esquerda no segundo turno (a ponto de integrarem sua candidatura, principalmente o PSOL), foi o ataque à ameaça de autonomia do Banco Central (BC), prevista na campanha da Marina e também subentendida na do Aécio. É um pouco cedo pra dizer o que vai acontecer. A primeira reação foi ao ataque frontal da direita mais reacionária, ainda durante a campanha.
Vivemos as sequelas do “lulopragmatismo”, onde as relações com o dito mercado, o famigerado “crime organizado legalizado”, com toda sua manipulação financeira, manipulação de grandes capitais, manipulação de moedas, faz Dilma se submeter a esse ente. Isso por conta de um “lulopragmatismo” que estabeleceu as condições de um reformismo fraco na política assistencial para avalizar um pacto conservador de alta intensidade, o que lhe permitia se manter no poder pelo poder.
Assim, ela ainda sofre tais sequelas. Acho que erraram na mão, porque a impressão dada pela campanha do segundo turno era de que a mobilização social que há tanto tempo faltava ao NeoPT – ou seja, ao estilo do PT antigo – tinha se reacendido, em função de certa reaglutinação da esquerda para impedir que a direita tradicional – agora se revelando cada vez mais golpista – levasse a vitória no segundo turno.
Porém, preocupou-me muito a entrevista do Aloizio Mercadante à Miriam Leitão, quando garantiu que a política de juros não diz respeito à presidência, porque o aumento da taxa de juros foi consequência da “autonomia do Banco Central”. Ele disse nesta segunda, 17/11: “a presidente não interfere na autonomia do BC na política de juros”.
O que é isso?! Este foi um dos principais combates do segundo turno, e agora Mercadante fala que o juro aumentou em razão da “autonomia do BC”. Vão mesmo dar autonomia para o BC fazer política monetarista ditada pelo FMI? O que está destruindo a Europa será a nossa salvação? Não acredito.
Portanto, os acontecimentos mencionados na pergunta mostram que houve certo grau de covardia, mas quero ter a esperança de ela não ser a marca definitiva, logo de saída, deste segundo mandato.
Correio da Cidadania: A esse cenário se agrega agora, ademais, os escândalos envolvendo a Petrobras. Em entrevista com o engenheiro e ex-diretor de Energia e Gás da Petrobras, Ildo Sauer, a respeito do pacote de concessões da infraestrutura nacional, em 2013, ele dizia que “temos aí a concorrência intercapitalista, disputando, por exemplo, a Petrobras (…) O governo usa a empresa pra tentar reduzir a inflação, o custo da reprodução da força de trabalho, da mobilidade. Em favor de quem? (...) Não em favor dos trabalhadores, mas dos (…) representantes e delegados instalados dentro dos vários órgãos de governo e poder (…). Que muitas vezes são funcionários de carreira, de longa trajetória, de currículo até respeitável, mas que não estão lá pra cumprir uma função de Estado (…), estão lá pra defender seus patrocinadores”. À luz dessa fala, o que você diria sobre os atuais escândalos na Petrobras? O que dizem do capitalismo brasileiro?
Milton Temer: Esses fatos apenas reiteram o que falamos. São sequelas do “lulopragmatismo”. É absolutamente correto, e previsível, o cenário que o Ildo pintou na ocasião. Inclusive, tal cenário foi uma das razões concretas para o PSOL ter lançado candidatura própria. Tratava-se de dizer: “existe alternativa à esquerda”. O que ficou comprovado durante a campanha, quando, de alguma forma, equiparamos as campanhas de Dilma e Aécio, a fim de mostrar que o seis podia ser pior que o meia dúzia, na medida em que existe um caráter de classe colocado de cada lado.
Não há dúvida de que a transformação da Petrobrás num espaço de distribuição de cargos específicos para bancadas paralelas – que sabe-se lá porquê constituem o arco de alianças do NeoPT –, evidentemente, tinha de resultar, em algum momento, nessa bandalheira. E é claro que a direita joga pesado. Tanto o Paulo Roberto como o Youssef insistem em dizer que as articulações eram feitas principalmente em favor do PT. Claro que há quadros do PT envolvidos, não quero negar e nem livrar a cara de ninguém. Até porque acho que o principal interessado em não livrar a cara de ninguém deverá ser a própria cúpula do partido, caso ainda pretenda se manter como protagonista no embate político brasileiro.
Porém, é evidente que estamos diante de uma tragédia. A despolitização da política, e essa forma petista de operar o capitalismo de maneira “diferente”, mas basicamente operando-o, ao invés de enfrentar suas lógicas com perspectiva transformadora - como o PT sempre se propusera -, nos deixam numa situação trágica, de “perda de geração”. Qual a minha falta de confiança agora? Trabalho com a ideia de que não quero o PSDB no poder. Porque representa o pior no mundo: austeridade financeira, o arrocho salarial, corte de investimentos públicos, previdência pública estilhaçada, assim como toda perspectiva de que avanços de direitos e da cidadania seriam tranquilamente jogados no brejo em nome da manutenção do interesse pelo lucro, por sua vez eixo exclusivo do referencial de crescimento.
A situação é complicada, a análise do Ildo é correta, mas é preciso tomar cuidado. Eu faria uma ressalva na questão dos preços e tarifas. A preocupação da Petrobrás não pode se voltar somente aos seus acionistas. Até porque o governo é seu maior acionista, e este tem compromisso com toda a cidadania. Lamentavelmente, por conta do governo FHC, são os fundos, inclusive norte-americanos, que determinam muitos passos da empresa. Grande parte das ações da Petrobrás está em mãos de interesses puramente antinacionais, por conta da semiprivatização promovida pelo governo FHC, quando até mesmo tentou mudar o nome da empresa pra Petrobrax.
Portanto, existe uma lógica evidente de que se deve proteger a empresa, mas tal proteção não pode se sobrepor, de forma alguma, à proteção da nação e do Estado como condutores e orientadores da política pelo ponto de vista universal, do interesse maior. Não quero dizer que essa tenha sido a orientação do governo Dilma. Concordo com o Ildo quando diz que o governo deixou de atender interesses da empresa para atender interesses de delegados de representações parlamentares, que não têm nada a ver com o interesse público. Mas tampouco podemos deixar de levar em conta que a empresa não pode ter como perspectiva apenas atender aos “priviledireitos” dos seus chamados acionistas.
Correio da Cidadania: Como fica, em sua opinião, os grandes mandatários, a exemplo da própria presidente da Petrobras, Graça Foster? O que todos estes escândalos dizem ainda da própria administração da Petrobras nesses anos todos?
Milton Temer: Eu não tenho nenhuma dúvida de que neste momento é impossível tomar uma decisão. Até porque não há muita definição sobre a profundidade das acusações e até onde elas vão. É preciso saber até onde vão para ter a clareza de qual tipo de investida deve ser feito. Vemos que o PMDB, o PT, todos, tentam se escusar e dizem: “não, eu não tenho nada a ver com as indicações”, como se a indicação de um presidente da Transpetro pelo Renan Calheiros não tivesse importância.
Assim, é preciso ter claro até onde vão as acusações. Se elas atingirem o PT no seu eixo fundamental, e chegarem à comprovação, é preciso comprovar que nada poderia ocorrer à revelia de Lula ou de Dilma. Isso precisa ficar claro para que se tome uma posição, que não pode ser a mesma de agora, simplesmente em função do que bandidos como Paulo Roberto, Youssef et caterva estejam falando.
Tenho muito cuidado, apesar de não ter nenhuma ilusão com o partido que gerou figuras como André Vargas e Vacarezza... Tais pessoas se tornarem exponenciais no partido mostra um grau de degradação absolutamente inaceitável. E isso não se fez à revelia de Lula ou de Dilma. Essas figuras não chegaram à vice-presidência da Câmara ou à liderança do governo sem consentimento de Lula e Dilma. Quem está ligado ao assunto chegou à vice-presidência da Câmara dos Deputados. Isso aconteceu à revelia do governo? Certamente que não!
E quem conhece a relação de Lula com o PT sabe perfeitamente que esses são os quadros que ele gosta de operar. Nunca preferiu os quadros da esquerda ou aqueles que viam no PT aquele instrumento de transformação qualitativa, concreta e substantiva da realidade brasileira. Nada disso. O Lula operou o poder, e quer que a Dilma também opere, na lógica do sindicalismo norte-americano, da qual ele se apoderou.
Portanto, neste momento, eu quero esperar a profundidade do que realmente há de concreto na relação dos que estão ligados ao NeoPT com o que é real das acusações. Porque dos aliados não tenho nenhuma surpresa com o que possa ocorrer de negativo. E não creio que o indiciamento deles abale a estrutura do governo.
Correio da Cidadania: Mas sabemos que as empreiteiras cartelizam enorme gama de setores, programas e obras em nosso país. Essa prisão dos executivos de empreiteiras não indica, de todo modo, que peças possam estar começando a se mover no sentido de desmascarar a promiscuidade público-privada do Brasil?
Milton Temer: Sem dúvida. Porque, pela primeira vez, se constata que há corruptores, não só corrompidos. Até a própria cassação de Collor se deu com reconhecimento de corrompidos, sem nunca se procurar saber quem corrompia. É um fato concreto.
O que me preocupa no momento é o seguinte: eu assumo uma posição permanente de esquerda em relação à guinada ideológica do PT para o NeoPT. Denuncio esse transformismo desde 2004. E responsabilizo o Lula (também Dilma, porque deu sequência) pela despolitização da política e pela degradação ideológica em que ambos os governos mergulharam a legenda do PT.
Mas a tragédia maior pra mim é que esta degradação do NeoPT arrasta uma base social que é “nossa”, mas não veio conosco. Primeiro, por acreditar na disputa do espaço interno; e, mais ainda, por não ver na esquerda consequente, principalmente nessa frente de esquerda consolidada por PSOL, PSTU e PCB, algo que realmente pudesse interferir nos caminhos do governo. Preocupa-me porque não quero vê-la arrastada pelo ceticismo e o abandono da política total, coisa que já vem acontecendo.
Tal ceticismo, inclusive, está sendo um caldo de cultura no qual o pensamento da direita mais reacionária começa a se explicitar de uma forma que, em alguns momentos, me parece até pior do que em 1964. Em 1964, falava-se em defender a democracia. Agora, é um combate pela defesa da democracia e, inclusive, com ideias de intervenção militar. Isso me preocupa porque a possível degradação do PT permite a inserção de algo que pode ser muito pior.
Dessa forma, vivo um momento muito difícil de reflexão. Um momento muito difícil de análise de perspectiva. Sou um interessado, por incrível que pareça, porque eu não fui expulso do PT, mas saí espontaneamente. Eu, Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho saímos espontaneamente ao considerar que o PT tinha traído os seus programas, os seus princípios, o seu estatuto e sua razão de ser.
No momento, a minha preocupação maior é que a degradação transforme o PT numa lata de lixo, jogue o governo numa curva de descendência total e abra espaços para forças políticas que não têm nada de transformadoras. Seria a restauração, como houve a restauração após a revolução francesa. No caso, a restauração da grande burguesia. No seu pior aspecto e em cima, principalmente, dos direitos sociais e de cidadania, que de alguma forma sobrevivem.
Correio da Cidadania: Segundo notícia veiculada hoje pela mídia (Estado de S. Paulo, 18 de novembro), o esquema na Petrobras já estaria funcionando há 15 anos. Nesse contexto, você poderia aprofundar um pouco mais a ideia da participação óbvia da direita tradicional nos atuais episódios e os seus discursos recentes de moralização pública?
Milton Temer: Eu sou da geração que viu Shigeaki Ueki na presidência da Petrobrás, hoje um grande empresário nos Estados Unidos, pelo que me parece. A bandalheira da Petrobrás passa por várias gerações. Ela tem exceções, inclusive no governo Lula. O próprio Ildo Sauer e o Guilherme Estrela são grandes exceções de quadros da política energética brasileira, que só quiseram dignificar e honrar os espaços que ocuparam. Esses são exceção. Não tem nada que se possa generalizar contra outros dirigentes, mas é evidente o espaço que se permitiu a marginais, verdadeiros manipuladores, enfim, degradadores da coisa pública, como Youssef e Paulo Roberto.
Repare que o Paulo Roberto está deixando de ser tratado pela direita como um grande bandido para ser tratado como um instrumento de desmonte da Petrobrás. Começou com sua prisão domiciliar nunca contestada e passou a um tratamento da imprensa como fonte de informação, não como bandido e ladrão. Ele passou a ser alguém que funciona como se fosse um corregedor da Petrobrás, e não um dos principais degradadores, dos principais corrompidos, bandidos e marginais que ocuparam a Petrobrás por muito tempo.
Mas o que é duro pra mim? Como vamos achar que tudo ocorreu sem que os quadros superiores, inclusive os proprietários, e os representantes do proprietário maior da Petrobrás, que é o próprio Estado brasileiro, de nada tivessem desconfiado? Eu não quero dizer que eles soubessem, mas nunca desconfiaram? Nunca se deram conta de que estava havendo alguma coisa não muito justa e correta?
A verdade é que o TCU (Tribunal de Contas da União) também apresenta vários problemas. Se olharmos os seus ministros, vários foram deputados, como José Jorge, Augusto Nader... Gente olhada por nós, do PT, digamos assim, com bastante ressalvas durante o governo FHC. Eles não eram só da base do governo, mas eram considerados daquela base que estava à disposição do grande capital para caminhos dos mais diversos.
Vamos ter claro que, se há alguma coisa que politize no judiciário, é o TCU – já que falar assim do judiciário ficou na moda, por causa do STF, à época do julgamento da ação penal 470, a dita ação do mensalão. José Jorge eu conheço de longa data. Ele era liderança e um dos principais apoiadores do PFL ao governo FHC. Por isso foi para Tribunal de Contas.
Correio da Cidadania: Esse quadro tão complexo reforça a dificuldade para as forças políticas alternativas atuarem?
Milton Temer: O caminho de análise fica de fato complexo. E qual é o caminho de análise complexo? É fundamental que se consiga reorganizar a esquerda brasileira. E essa esquerda brasileira só pode se reorganizar em cima de retomada de eixos fundamentais para a mudança da realidade brasileira. Tem de ir pra cima de uma reforma política profunda, como também uma reforma tributária de caráter democratizante, e não puramente tecnocrático.
Não queremos ficar discutindo quanto cada estado e município vão receber na reforma tributária. Queremos que o grande capital passe a ser o principal taxado e o assalariado passe a ser aliviado. Alguém tem de defender isso de maneira clara. Qual é o caráter da reforma tributária? O nosso foco é uma reforma tributária progressiva, que acabe com as grandes isenções ao grande capital, na mesma proporção em que comece a conceder algum tipo de alívio a quem hoje desconta imposto de renda na fonte.
A reforma política tem de servir para garantir a representatividade da cidadania da forma mais correta e impedir as distorções de hoje. Não é só a questão do financiamento de campanha, mas também de representatividade, já que temos um Congresso absolutamente desligado da realidade brasileira. Isso tem de ser dito de forma clara. E tem de ser tocado a partir da cúpula do PT, o que permitirá uma conversa razoável no conjunto das forças de esquerda.
Se não partirmos, urgentemente, para ações concretas, estaremos correndo um risco muito sério.
Correio da Cidadania: Com que clima começará, nesse sentido, o segundo mandato de Dilma? Já começou o cerco da oposição de direita?
Milton Temer: Vamos ter claro: a Dilma pode jogar um papel importante. Mas precisa, de certa forma, recuperar o espírito do segundo turno, ou seja, recuar de tudo que o Ildo Sauer denunciou de forma concreta e optar por implementar um governo que avance pra valer. Abandonar o reformismo de baixa intensidade pra garantir base conservadora de alta intensidade, inverter tal lógica. Ou seja, estabelecer a preocupação de os bancos baixarem seus lucros para a distribuição de renda aumentar. Portanto, não se trata de melhorar a distribuição de renda através de aumento das bolsas assistenciais, pois, longe de criarem cidadãos, criam apenas novos consumidores, que terminam por pensar da mesma maneira que os grandes consumidores e querem disputar a mesma fatia de mercado e o mesmo tipo de comportamento. Não é isso que precisa ser feito.
As mudanças estruturais na distribuição de renda se dão através da reforma tributária. De maneira concreta. Se a Dilma optar por tal lado, é possível que ela e seu governo se salvem. E é possível uma reacomodação que abra espaços para uma pressão, pela esquerda, por governos mais democráticos. A exemplo do que ocorre pela América Latina, com casos de democracia mais concreta em países como Equador, Bolívia, Venezuela (pelo menos até a morte de Chávez), que são criminosamente “denunciados” pela imprensa de direita. Quero que a realidade brasileira se movimente nessa direção.
Caso contrário, acho que a Dilma, ao insistir no mesmo caminho, não vai “apaziguar” o mercado, até porque não se trata mais disso. Basta ler as colunas dos principais porta-vozes do mercado nos grandes jornais, como Merval Pereira e assemelhados. Eles não querem só isso. Querem a derrubada do governo. Portanto, não vejo saída para o governo se insistir no caminho da austeridade.
Mas qual a tragédia (e também o grande paradoxo)? Ao mesmo tempo em que eles, no governo, fazem toda essa porcaria, com toda a leviandade, somos obrigados a torcer. Não podemos nos aliar a quem hoje tem a hegemonia do combate ao PT. A tragédia da esquerda é que não pode engrossar o coro dessa direita. Ela tem de fazer uma pressão pela esquerda sobre o governo para... defender o governo! Olha que coisa maluca! É um governo que tem medo de ir para a esquerda, mas essa é sua única saída e salvação.
Correio da Cidadania: Mas você acredita ainda de fato em uma possível guinada à esquerda do atual governo Dilma?
Milton Temer: Depende do que vai acontecer no NeoPT. Se este adotar e levar a sério a última resolução do partido, que de certa forma o aproxima do “PT histórico”, e não recuar, entender que é preciso pressionar o governo, ao invés de defendê-lo independentemente da obediência, ou não, à resolução do próprio partido, haverá solução. Mas, se o NeoPT se acomodar pela cúpula, a base social se afasta e o governo fica sem nenhuma estrutura de sustentação. É o quadro que pinto.
Se a resolução da executiva do partido valer (e ela não coincidiu com essa “autonomia do BC” que o Mercadante defendeu para a Miriam Leitão), o governo terá condições. Porém, se o governo se acomodar, se acovardar e o NeoPT der cobertura, iremos todos para o brejo, porque a direita irá prevalecer.
Correio da Cidadania: Você enxerga no horizonte um processo de impeachment? Creditaria uma tal possibilidade como uma tentativa golpista, a exemplo até mesmo de recentes ‘golpes brancos’ a la Paraguai e Honduras?
Milton Temer: Não seria golpismo com a cara de 1964, mas com a cara dos dois países citados. Um impeachment congressual, com sustentação social pela direita, e falta de sustentação pela esquerda, diferentemente de 1964. Naquela época, havia base de sustentação, social e militar, da qual o Jango abriu mão, diante das informações que já possuía sobre a presença da IV Frota dos EUA etc.
Hoje, meu medo é que, se o governo se acovardar, a direita vai avançar. Basta ver o Merval. É assustador. Ele deixou de ser analista para ser pauteiro da ordem do dia da oposição de direita, inclusive defendendo a legitimidade de certo golpismo. Diz que pedir impeachment é normal, o que não pode é pedir a volta da ditadura. Não é preciso pedir a volta da ditadura. Existe um novo tipo de ditadura, com censura, autoritarismo e arbitrariedade, porém, de forma selecionada. Não é com tanque na rua. Mas é a ditadura do pensamento único e absoluto. Isso só poderá acontecer se não houver resistência do outro lado.
No entanto, a resistência não pode ficar na mão do PSOL, do PSTU, dos independentes, do movimento social que está desarticulado e não tem relação unificada. Não pode se dar só por aí a resistência. Ela está numa parte fundamental da base social petista, que ainda está dentro do NeoPT. Essa base social tem de ter força pra agir internamente no partido, e também agir sobre o governo, de modo que este tenha coragem cívica para não se acomodar à chamada “pressão do mercado” – o “crime organizado legal”, reitero.
Correio da Cidadania: Diante de todo esse quadro que se desenha complexo, o que acredita que possa ocorrer nas ruas em 2015?
Milton Temer: Pensemos no segundo turno para projetar 2015. A direita encheu-se de gás com a perspectiva de ganhar a eleição. A corja, chusma, que nunca teve coragem de se apresentar, foi para a rua, nos mais diversos segmentos. A direita vai do golpismo militar ao golpismo econômico, congressual etc. Para se contrapor, é necessária uma convicção social, centralizada, mobilizada e organizada numa frente partidária, capaz de entender que “esse passo eles não vão dar”.
Para que isso ocorra, o papel do governo é fundamental. Para 2015, se o governo se acovardar, não há mobilização social que se contraponha ao avanço da direita. No momento, tenho isso claro. Inclusive, o futuro da esquerda no curto prazo (não digo no longo, porque a pauta virá em qualquer época; a revolução francesa sofreu a restauração, depois novas reviravoltas etc.), ou seja, para 2015, 16, 17, 18, depende de uma retomada que só pode se concretizar a partir de uma virada no governo. Se o governo não fizer tal virada, sua sustentação não dependerá da iniciativa da esquerda. Não dependerá, eventualmente, de pontos localizados, a exemplo do Rio, onde o PSOL e o Freixo terão uma campanha polarizada com a direita, e com chance de vencer.
Portanto, em 2015 é preciso retomar o ânimo do segundo turno e oferecer razões concretas para o movimento social ter o que defender nas ruas. E a iniciativa tem de vir do governo, de modo que os movimentos e os partidos de esquerda não sejam só uma base de sustentação, mas uma base de pressão na direção de avanços maiores.
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.