Adeus às ilusões!
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- Maria Orlanda Pinassi
- 05/01/2015
Quem não se lembra da festa em que se anunciava a vitória de Dilma Rousseff, lado a lado com Lula, Ruy Falcão e as eminências pardas dos partidos coligados (1), e dos abutres prontos para cobrar os interesses do grande capital ali envolvido (2)? Nenhum movimento social, nenhum partido de esquerda, nenhum sindicato presente, apenas os “novos companheiros”, que mostravam que a brincadeira acabava ali. Ou seja, que a próxima gestão Dilma será antipopular e bem mais austera em termos econômicos e políticos.
Anos duros para a classe trabalhadora
Pois bem, o ante e o post festum do pleito presidencial obrigam a reflexão. Afinal, os apelos que provocaram debates acalorados e polarizados entre uma suposta esquerda e uma suposta direita, sobretudo no segundo turno, resultam num quadro ministerial que tanto poderia ter sido convocado por um como por outro dos candidatos em contenda. Além disso, a declaração subsequente da candidata eleita, de que não representa o PT, mas a presidência da República, justamente num momento em que o partido parecia pedir uma aproximação maior com o Planalto, é uma firme demonstração de que o grande vencedor das eleições foi, de fato, o grande capital, representado nas alianças de sua chapa e na chapa do seu adversário. E é o grande capital que agora exige o recolhimento da forma petista de governar sob “consenso” e do lulismo, esse genial recurso ideológico tão funcional durante a campanha para assimilar e atrair as massas para o inferno que as aguarda.
Será que Lula, o PT etc. voltarão para as hostes da oposição, propondo um retorno triunfal ao Planalto em 2018, para novamente cumprir aquela sua antiga função regeneradora da reprodução do sociometabolismo do capital? Haverá ainda condição material para o êxito desse tipo de política “band aid”, que já comprovou ao longo de sua história talento especial para o desmonte das lutas populares?
Enquanto aguardamos as próximas movimentações do setor, é bem provável que precisemos dizer au revoir “nova classe média”, au revoir consumismo popular, au revoir políticas compensatórias. Frente a uma economia tendente à estagnação, a uma pressão inflacionária que bateu a casa dos 6,75% nos últimos 12 meses, o capital parece exigir mudanças na política econômica para que novos saltos de desenvolvimento, eufemisticamente chamados de neodesenvolvimentistas, sejam dados no Brasil. Para isso, é necessário um governo que destrave os investimentos e dê novos rumos à política fiscal, a fim de diminuir a dívida pública e ainda passar credibilidade aos investidores.
Acima de tudo, é preciso que o governo implante uma política de sacrifícios “de curto prazo”, conforme as palavras de Bresser Pereira, fundador do PSDB que migrou para as hostes de Dilma ainda durante a campanha. Esse importante intelectual da burguesia afirma que, “para tornar a taxa de câmbio competitiva, neutralizando sua tendência à sobre-apreciação cíclica e crônica, é necessário que o governo rejeite tais populismos. Se a inflação não tiver um componente inercial importante, a solução é a redução da demanda (3)”.
Resumo da ópera: os anos vindouros serão ainda mais duros para as classes trabalhadoras e a tendência absolutamente destrutiva de qualquer forma de “desenvolvimentismo” na atualidade encontrará, neste próximo governo, maiores facilidades para seguir sua investida predatória sobre os recursos naturais e as populações que estiverem na rota dos seus interesses. Sobre isso, foi bastante promissora para o setor da mineração, do agro e do hidronegócio, a recusa de Dilma Rousseff, ainda na fase de campanha, em assinar documento que propõe a redução da derrubada das florestas do mundo pela metade até 2020, até chegar ao desmatamento zero em 2030 (4). Naquele momento, a candidata acenava positivamente para essa política de desenvolvimento sem limites que deverá ser implantada por aqui.
A falsa polarização maniqueísta
Enquanto se urdia toda essa real intencionalidade do processo eleitoral nos bastidores do interesse privado – que, aliás, é onde se decidem os destinos da nação –, a cena pública era conduzida por uma maniqueísta polarização entre o PSDB e o PT. A “grande questão” trazida para as massas que não conseguem ir além do ideário burguês se dava em torno da corrupção e qual o melhor programa de implementação da ética na política parlamentar. Uma contradição dos termos. De um lado, denuncismo espetaculoso nos debates e nas mídias, de outro, uma acanhada campanha pela reforma eleitoral.
Esse plano de sensibilização popular fez tábula rasa dos mais sérios problemas sociais do país, pior, procurou desviar-se deles. Foi outra manobra que reitera o velho e bom princípio liberal de que o “político” se presta a aprimoramentos, desde que devidamente separado das tomadas de decisão econômicas, estas sim preservadas de qualquer contaminação popular e controladas com mão de ferro pelo capital.
A cena descrita manteve-se completamente apartada do Brasil real, o Brasil que vem sendo desenhado nas ruas, nos canteiros de obras, em pátios de fábricas, garagens de ônibus, por uma massa crescente de trabalhadoras e de trabalhadores, empregados, desempregados. Uma massa profundamente insatisfeita com os impactos particularmente duros e negativos que o capital em crise estrutural já vem lhe aplicando há, pelo menos, duas décadas. Refiro-me àqueles que vêm se empenhando em lutas populares e contingentes, sem organização protagônica, lutas que, por absoluta necessidade histórica e por esgotamento das mediações institucionais, se abrem para o enfrentamento direto.
Greves e protestos país afora
Neste quadro, importa compreender o papel desempenhado pela atual explosão de greves deflagradas – das 446 greves, em 2010, saltou-se para mais de 900 em 2013, em alguns casos à revelia dos seus sindicatos pelegos – por trabalhadores dos setores públicos e privados, muitos dos quais terceirizados, precarizados. Ressalto aqui o belo movimento articulado pelos garis e professores da rede pública do Rio de Janeiro, pelos metroviários de São Paulo (neste caso, organizados por um sindicato combativo), por motoristas e cobradores em várias cidades brasileiras, pelos milhares de trabalhadores que frequentemente paralisam obras da magnitude das hidrelétricas de Belo Monte (PA) e de Jirau (RO), do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (COMPERJ), dos estádios construídos para o Mundial de 2014. Relevante ainda o papel do Movimento Passe Livre em luta pelo “transporte gratuito de verdade” e pela mobilidade urbana.
Ressalto também os movimentos de denúncia da violência policial sobre as populações pobres das periferias, com destaque para as Mães de Maio e o Tribunal Popular – o Estado no Banco dos Réus. E certamente os movimentos de luta por moradia e ocupação contra as violentas remoções e os enormes gastos públicos para atender aos interesses das empresas envolvidas com a Copa da FIFA e a especulação imobiliária, dentre os quais ganham relevo no último período o Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST) e a Articulação Nacional dos Comitês Populares da COPA (ANCOP).
Localizados algumas vezes fora das vistas e do controle democrático do Estado, esses movimentos, mais ou menos conscientemente, podem desencadear, através da ação mobilizadora das ruas, um efetivo processo de politização das massas, o que há tempos as formas tradicionais, ao adotarem a linha de menor resistência, abandonaram. A princípio, atuam sem as mediações oferecidas e controladas pelo capital, e costumam remeter-se diretamente aos motes causais (econômicos) de seus infortúnios: salários, condições de trabalho, dos serviços de transporte, saúde, educação, moradia, terras, são alguns dos seus alvos. E por mais fragmentados, pontuais e distanciados de um projeto societal alternativo, podem – por que não? - constituir um salto importante em relação às ações contidas no universo das regras institucionais, não porque prescindam delas absolutamente, mas porque as precedem. Caso mais emblemático dessa ofensiva é o da luta dos indígenas pela autodemarcação de terras.
Em geral, não surgem como movimentos anticapitalistas, mas seu maior trunfo é que dessa maneira pouco ortodoxa vão desnudando os limites cada vez mais estreitos do capital que, na atual quadra histórica, não pode, nem quer, atender às reivindicações mais elementares da classe, como seria de se esperar em épocas mais favoráveis. Por isso mesmo esses movimentos têm sido alvo de repressão policial ostensiva, criminalização, e seus manifestantes submetidos a condenações sumárias. Somente desse modo o Estado se dispõe a controlá-los.
Agravamento social e escalada repressiva
Pelo andar da carruagem, imagina-se que o agravamento social que certamente advirá da nova política econômica intensifique ainda mais a necessidade de ativos militarizados ora em curso no país. Uma movimentação vem se verificando no Planalto neste sentido, pois até o final do ano a presidente deve enviar ao Congresso uma proposta de emenda à Constituição (PEC) para que a União divida com os estados a responsabilidade pelas políticas de segurança, que atualmente é uma atribuição dos estados da nação (5).
Parece, então, que a escolha exitosa no pleito, tanto quanto seria a outra, vai nos oferecer as pedras que irão pavimentar o caminho do inferno, ou seja, vai consolidar um padrão de desenvolvimento requisitado pelo capital, que certamente irá potencializar a escalada da superexploração do trabalho, da destruição ambiental, do extermínio da população pobre, da judicialização das questões sociais.
Os incautos que, no afã da campanha, acreditaram na esquerdização de Dilma, que apostaram tão credulamente nesta vã alternativa, tiveram, sim, uma vitória de Pirro. Pois, o fato se explica pelo caráter extraparlamentar do capital, que decide, como já dissemos, no âmbito privado, e em causa própria, quem terá mais competência, capacidade de gestão e de persuasão para gerenciar a máquina do Estado. Mesmo porque as instituições políticas visam garantir a continuidade do poder econômico do capital sobre o trabalho, jamais superá-lo.
Ou ainda, como diria Mészáros, “dessa forma, o capital afirma-se diante da sociedade não apenas como poder de facto, mas também como poder de jure, já que ele se apresenta como condição necessária e objetiva da reprodução societária e, portanto, como o fundamento constitucional de sua própria ordem política. A legitimidade constitucional do capital é historicamente baseada na expropriação direta dos produtores das condições de reprodução sócio-metabólica – os instrumentos e materiais de trabalho -, portanto, a alegada “constitucionalidade” do capital (como a origem de todas as constituições) é inconstitucional; mas essa verdade intragável perde-se nas brumas do passado remoto (6).
Nossa história recente está plena de “montanhas parindo ratos”, de grandes intenções progressistas caindo na linha de menor resistência. O momento urge pela absoluta necessidade de se retomar o caminho das lutas ofensivas, da construção de projetos emancipatórios que não podem caber na negociação, nem no consenso. Sinais claros de fumaça no ar!
Notas:
1) PT, PMDB, PDT, PC do B, PP, PR, PSD, PROS e PRB.
2) http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/veja-quem-doou-para-a-campanha-de-dilma-rousseff/
3) Ver mais a respeito em Luiz Carlos Bresser Pereira. “Que desenvolvimento”. In Revista Margem Esquerda, nº 23, outubro de 2014 (p. 28).
4) Trata-se da Declaração de Nova Iorque sobre Florestas, proposta durante a Cúpula do Clima das Nações Unidas, no mês de setembro último.
6) István Mészáros. “A necessidade de se contrapor à força extraparlamentar do capital”. In A atualidade histórica da ofensiva socialista. SP: Boitempo, 2010, p. 187.
Maria Orlanda Pinassi é professora de sociologia da UNESP de Araraquara.