Profissão juiz
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- Jorge Luiz Souto Maior
- 31/01/2015
Nas últimas duas manifestações contra o aumento da tarifa do transporte público em São Paulo (uma que foi da Paulista à Prefeitura, e outra que ocorreu no bairro do Tatuapé), muitos fatos me chamaram a atenção, mas alguns, particularmente, me atingiram mais de perto.
No primeiro deles, algumas pessoas se chegaram a mim, quando o ato estava se arrumando para iniciar a caminhada, e disseram: “vamos ficar perto de você, pois você é juiz e. se a polícia vier nos bater. você nos protege!”. No segundo, o interlocutor foi direto: “Se me prenderem, você me solta?”. E, finalmente, o terceiro indagou o que eu achava que ia acontecer durante o percurso, já que eu, sendo juiz, teria conhecimento de como a polícia agiria...
Essas falas refletem bastante o sentimento que impera entre os manifestantes, que é o de medo da polícia, considerando que ela está lá, de fato, pronta para atacá-los. Na visão dos manifestantes, a polícia fica apenas esperando uma oportunidade qualquer para agredi-los, quando não está em concreto preparando a situação para tanto. Mas não é bem disso que pretendo falar...
De fato, as falas referidas conferem-me a oportunidade para um importante esclarecimento: juiz é apenas o nome que se dá ao profissional que exerce o poder de dizer o direito (e fazer aplicá-lo), dentro dos limites institucionais de sua atuação. Bem verdade que o exercício do poder estatal e a garantia da independência funcional são características próprias da profissão do juiz, mas elas se limitam ao ato da prestação jurisdicional, dentro da lógica de prestação de serviços à sociedade (e de forma mais ampliada à humanidade, para não se submeter às influências de fatores econômicos e políticos locais), que se concretiza na atuação processual.
O poder e as garantias conferidas ao juiz não são pessoais, mas institucionais, e, portanto, fora da atuação profissional, o juiz não as detém. Aliás, não sendo pessoais, não conferem ao juiz uma cidadania diversa das demais pessoas, mesmo quando está no exercício da profissão. O juiz, portanto, é um cidadão como outro qualquer, dentro e fora da jurisdição, ainda que alguns juízes imaginem que as garantias da jurisdição lhe confiram alguma superioridade, que lhe integra como um atributo pessoal, considerando, inclusive, que as possa exercer nas relações sociais, para, por exemplo, não pegarem fila, não pagarem multa de trânsito, não perderem o voo etc.
Participando de uma manifestação, jogando futebol, sentado à mesa de um bar, no trânsito, utilizando-se de transporte público, no cinema, na fila do banco, torcendo para o Corinthians (o que “é de lei”), o juiz não é juiz, sendo correto identificá-lo, se não pelo nome, ao menos pela forma generalizante de manifestante, motorista, passageiro, torcedor, jogador (craque, esforçado ou perna de pau) etc., jamais como juiz.
Assim, o juiz, participando de uma manifestação, fora de sua jurisdição, não pode “soltar” manifestante ou intervir na atuação das instituições que, na situação, detenham, de fato e de direito, autoridade. Certo que como qualquer cidadão, o juiz, naquele instante da vida civil, um manifestante, pode (e deve) denunciar os abusos das autoridades, mas no geral, na emergência de eventual tumulto gerado em uma manifestação, será mais humano que tente se proteger, para não ser pisoteado ou atingido por balas de borracha.
Durante quase 22 anos de magistratura sempre separei de forma bastante nítida o cidadão que exerce a profissão de juiz, atuando no processo, do cidadão que participa das demais relações sociais. Tenho, portanto, a plena convicção de que devo me submeter às situações que atingem a todas as pessoas nas mesmas circunstâncias, enfrentando fila, esperando no trânsito, andando de ônibus (ou metrô), jogando bola etc. Abomino, por conseguinte, qualquer prática de “carteirada”, ainda que se a entenda por uma “boa causa”, até porque essa postura não representa o efeito de mera compreensão pessoal, sendo, isto sim, uma imposição da ordem jurídica.
O outro lado dessa moeda é que é exatamente essa separação que me permite, como cidadão, participar de atos da vida social, sobretudo daqueles que me auxiliem a perceber a realidade a partir do olhar do oprimido, o que, ademais, se reflete em benefício da atuação profissional, notadamente para um juiz que lida com causas sociais, em especial, trabalhistas. Fato é que, se o juiz não pode atuar como juiz fora do processo, isto é, na realidade social, por consequência não é possível lhe negar a cidadania para a prática de atos que se permitam a todos os demais cidadãos.
Em conclusão, o que espero dos valorosos companheiros manifestantes e demais lutadores sociais é que me vejam como um igual e como alguém que, acreditando na causa, estará sempre disposto a engrossar a multidão, para vibrar com as vitórias e sofrer junto nas derrotas.
Jorge Luiz Souto Maior é professor livre-docente de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP.