Três perguntas e respostas sobre um domingo triste
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- Valerio Arcary
- 17/03/2015
Sem se partirem ovos não se fazem omeletes.
Quem o inimigo poupa, às mãos lhe morre.
Sabedoria popular portuguesa
1. Qual foi o significado das manifestações do 15 de março?
O martelo da história pode ser cruel. Doze anos depois da eleição de Lula para a presidência, a fadiga do lulismo abriu o caminho para a reorganização de uma direita com base social ampliada na classe média. Aconteceu neste triste dia 15 de março a maior manifestação reacionária do último meio século. Muito grande e muito reacionária (1).
Convocada pela internet, originalmente, por grupos de uma nova direita e extrema direita, sem trajetória, ganhou repercussão pela divulgação favorável na mídia escrita e nas rádios e TV’s (2). Recebeu apoio na véspera do PSDB, através de um vídeo improvisado de Aécio Neves. O giro do PSDB, in extremis, pressionado pela disputa de sua base social e eleitoral pela nova direita, sugere que a política de chantagem do principal partido de oposição burguesa pode ter mudado de tom.
Foi tão reacionária que a única comparação razoável remete às Marchas da Família com Deus pela Liberdade que antecederam o golpe de Estado de 1964 (3). Desde o fim da ditadura, as maiores mobilizações políticas de massas, ainda que de diferentes proporções, foram progressivas: as Diretas Já em 1984, o Fora Collor em 1992, e as Jornadas de Junho de 2013.
Embora as pesquisas divulgadas antes do dia 15 indicassem que o tema da corrupção seria a principal motivação para aqueles que pensavam ir aos atos, as palavras de ordem que encontraram maior eco foram, inequivocamente, pela derrubada do governo Dilma (4).
Um projeto de golpe “a la paraguaia”, como foi a destituição de Fernando Lugo em 2012, seria uma saída reacionária para a crise política. Um impeachment de Dilma Roussef realizado pelo Congresso Nacional recém-eleito, no contexto de uma campanha de ruas apoiada na mobilização do ressentimento da classe média, resultaria na posse de Michel Temer, e a formação de um governo de coalizão do PMDB, provavelmente, com o PSDB e DEM, que aproveitaria o mandato para iniciar uma onda de ataques antissociais brutais, um ajuste fiscal impiedoso, com sequelas recessivas imprevisíveis.
O conteúdo social e político das manifestações foi antidemocrático, antipopular e, em algumas parcelas, diretamente, anticomunista, e expressavam um ódio exacerbado contra o PT e, também, contra toda a esquerda. As faixas pedindo “intervenção militar”, os bonecos de Lula e Dilma enforcados, cartazes que se vangloriavam de que “comunista bom é comunista morto”, “queremos só Ministério Público e Polícia Federal”, a ameaça contra a vida de João Pedro Stédile, foram incontáveis os episódios lamentáveis.
Embora o impeachment tenha sido a principal palavra de ordem do 15 de março, as reações imediatas às manifestações não indicam que a política da burguesia em relação ao governo tenha se alterado (5). Não está prevalecendo, por enquanto, uma linha “venezuelana”. Os pesos pesados da classe dominante não estão apostando em boicotar a governabilidade. Tampouco esta é a política de Obama em Washington. Nas vésperas do domingo, Dilma Roussef recebeu reconfortante ligação de Joe Biden, e a confirmação de reunião durante a Cúpula no Panamá (6).
Ao contrário, parece mantida a linha de “todo o poder ao Levy”, enquanto no Congresso e nas TV’s a oposição burguesa mantém uma retórica dura contra o governo. Por linha “venezuelana” devemos entender um projeto de campanha nas próximas semanas com novos atos para cercar o Congresso Nacional exigindo impeachment.
Mas a nova direita, apoiada nos exaltados da extrema direita, fortalecidos pelo sucesso do 15 de março, e pela adesão de última hora do PSDB, cedendo às pressões, insistirá na mesma tática. Já provaram que não podem ser subestimados. Tentarão novamente recolher nas ruas o sentimento de rejeição ao governo que cresce, sobretudo, na classe média.
Se a política burguesa dominante vier a mudar, a situação política será, evidentemente, distinta. A possibilidade de unidade de ação contra o impeachment estaria colocada, sem hesitações. Se e quando houver perigo imediato e real de golpe “a la paraguaia”, toda a esquerda deverá se unir contra o impeachment. Mas a política tem os seus ritmos. O povo de esquerda deve ter sangue quente, mas manter a cabeça fria.
Portanto, enquanto a situação não mudar, não devemos ceder um milímetro à pressão governista. Manteremos nosso posicionamento: CUT, MST, UNE, Consulta Popular, rompam com o governo, unamo-nos em defesa das reivindicações dos trabalhadores e da juventude. Nenhuma legitimação do governo.
2. Quem esteve nas ruas?
As manifestações do 15 de março foram um protesto hegemonizado pelo ressentimento das classes médias. Em Porto Alegre, onde ocorreu uma das maiores mobilizações do país, foi publicada pesquisa sobre a composição social dos protestos: 40,5% dos entrevistados ganham mais de 10 salários mínimos, 31.9% de 6 a 10 salários, 22,7% de 3 a 5, e apenas 5% de 1 a 2 salários mínimos (7). Não parece implausível que esta composição social tenha predominado em todo o país. A corrupção foi, evidentemente, a centelha (8).
Mas o mal estar nos setores médios vem se acumulando há vários anos, e já tinha se expressado durante as eleições de 2014. A crônica insegurança da vida urbana, com elevação de taxas de roubos e assaltos, e a permanência de índices muito elevados de homicídios, alimenta um profundo descontentamento. O aumento dos aluguéis, dos planos de saúde, das mensalidades escolares, dos estacionamentos, de todo e qualquer tipo de lazer, do imposto de renda, enfim, de todos os serviços, atinge duramente a classe média, que se ressente por não receber quase nada em troca por parte do Estado.
A repercussão dramática da operação Lavajato, um escândalo de desvio de dinheiro público que supera em escala todos os anteriores, podendo atingir os US$1 bilhão de dólares, inflamou a fúria da classe média. Isso não deve nos impressionar demasiado. O sonho de consumo da classe média é o de um governo honesto e técnico. Corresponde à sua visão do mundo uma ideologia meritocrática de que a desigualdade social não é em si mesma algo ruim, porque teria fundamentos “naturais”. Por isso, a classe média é atraída pela ideia de um governo esclarecido, até de um déspota, se ele for esclarecido, e estiver cercado daqueles mais competentes para encontrar soluções boas para todos.
Acontece que a estagnação econômica, a pressão inflacionária, a desvalorização da moeda, as demissões em massa na indústria têm forte impacto, também, entre os trabalhadores. A classe média é muito heterogênea. Pode se dividir, se a classe trabalhadora entrar em cena com todo o seu peso social. Essa é a esperança. Uma parcela da classe média pode se deslocar para a esquerda.
3. Por que vai se agravar a crise política?
Existe uma tendência a aumentar a crise política do governo que está paralisado pela resistência organizada do bloco liderado por Cunha e Calheiros, apoiados pela oposição burguesa, no Congresso Nacional. A aposta da direção do PT e de Lula de rifar Pepe Vargas, convocar os sinistros Michel Temer e Eliseu Padilha do PMDB, e o espantoso Kassab para ajudar Aloisio Mercadante não será o bastante. Mudar a composição do núcleo duro do governo Dilma, incluindo uma parcela mais colaborativa do PMDB, não corresponde à gravidade da crise depois do dia 15 de março.
Parece incrível que a única resposta do governo tenha sido uma defensiva avaliação de que o protesto foi uma mobilização de massas "legítima" e "pacífica" e a exaltação da democracia. Não tiveram melhor ideia do que anunciar um pacote de medidas contra a corrupção. Ou seja, estão suplicando uma trégua para a classe dominante. Acontece que a crise vai se agravar, justamente, porque a operação Lavajato já atingiu, além do indefectível PP de Bolsonaro, ninguém menos que Cunha e Renan Calheiros do PMDB.
Novamente falam como saída a reforma política e um programa contra a corrupção, mas não há mais coesão na base governista no Congresso para apoiar qualquer saída. Ao mesmo tempo, a crise econômica se aprofunda, e os compromissos com o ajuste fiscal vão aumentando a insatisfação popular com o governo. Dilma e o seu governo de colaboração de classes, menos de cem dias depois da posse, tem a maioria esmagadora da classe média na oposição, e resolve manter os ataques contra a classe trabalhadora e a juventude. Caminha para estar suspensa no ar.
A nova direita e a extrema direita tentarão voltar às ruas. E sabem que não podem esperar muito. A questão central, entretanto, é para onde irá o PSDB. Vai se unir na escalada promovida pela nova direita, apoiada no descontentamento da classe média, e apostar na possibilidade do impeachment? Ou recuará?
O lugar da oposição de esquerda deverá ser o de impulsionar, com firmeza e coragem, a mobilização social contra os ataques que atingem os trabalhadores e a juventude.
Notas:
(1) Os dados disponíveis sinalizam que as manifestações foram imensas. Podem ter superado um milhão de pessoas em todo o país. Segundo o Datafolha, 210 mil pessoas foram à Avenida Paulista. Já a Polícia Militar afirmou que o protesto reuniu, por volta das 15h40, aproximadamente 1 milhão de pessoas. A diferença é demasiado grande. A credibilidade da PM é menor que a do Datafolha.
Consulta em 16/03/2015.
(2) Além do Solidariedade, a legenda eleitoral da Força Sindical, foram grupos ou articulações moleculares como o “Vem para a Rua” e "Movimento Brasil Livre”. O que tem maior número de seguidores na internet, com incríveis 700.000, é o esdrúxulo "Revoltados On Line", que defende Bolsonaro para a presidência. São rivais entre si. Encontraremos em seus discursos, em doses diferentes, uma mistura de ódio ao PT, Dilma e Lula, neoliberalismo econômico inspirado na Escola de Chicago, a la Von Mises, ilusões meritocráticas, preconceito social e racial, nacionalismo histérico, anticomunismo furioso e fundamentalismo cristão.
Dados disponíveis em:
https://www.facebook.com/revoltadosonline
Consulta em 16/03/2015.
(3) Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi o nome comum de uma série de manifestações públicas ocorridas entre 19 de março e 8 de junho de 1964. À frente da organização estava a imensa maioria da burguesia, e o clero da Igreja Católica. Conseguiram levar às ruas mais de um milhão de pessoas, em escala nacional, com o intuito declarado de derrubar o governo Goulart. A primeira das 49 marchas aconteceu no dia 19 de março, em São Paulo e juntou, talvez, 300 mil pessoas. Foi organizada por grupos como Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), União Cívica Feminina (UCF), Fraterna Amizade Urbana e Rural, Sociedade Rural Brasileira, recebendo também o apoio da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e do IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais). Foi distribuído o "Manifesto ao povo do Brasil" pedindo o afastamento de Jango da presidência.
(4) Segundo pesquisa do instituto Ipsos, feita entre os dias 9 e 11 de março em São Paulo, Porto Alegre e Recife, o que mais motiva os manifestantes é o pedido pelo fim da corrupção, seguido por melhorias na saúde pública. Disponível em:
http://www.brasilpost.com.br/2015/03/15/pesquisa-mostra-que-manif_0_n_6872788.html
Consulta em 16/03/2015.
(5) Cunha diz que vai arquivar pedidos de impeachment contra Dilma. Dados disponíveis:
Consulta em 16/03/215.
(6) A presidenta Dilma Rousseff conversou por telefone com o vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na manhã desta sexta-feira (13). Dados disponíveis:
Consulta em 16/03/215.
(7) Dados disponíveis em:
Consulta em 16/03/215.
(8) A lista de lideranças do PT é impressionante: André Vargas (PR), ex-deputado federal, atualmente sem partido, foi cassado pelo envolvimento com o doleiro Alberto Youssef; Antônio Palocci, ex-ministro e ex-deputado federal; Cândido Vaccarezza (SP), deputado federal não reeleito; Gleisi Hoffman (PR), senadora; Humberto Costa (PE), senador; João Vaccari (SP), tesoureiro do PT; Lindbergh Farias (RJ), senador; Tião Vianna (AC), governador; Vander Loubet (MS), deputado federal. Dados disponíveis:
http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/os-politicos-citados-na-operacao-lava-jato/
Consulta em 16/03/21
Valerio Arcary é professor aposentado do IFSP.