A segunda morte do PT
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- Juliano Medeiros
- 08/05/2015
Quando surgiu, naquele 10 de fevereiro de 1980, no Colégio Sion, o Partido dos Trabalhadores representava o início de uma nova etapa na história da esquerda brasileira. Surgido da crítica às formas tradicionais de organização da esquerda, representadas pelo vanguardismo e elitismo dos partidos comunistas, o PT foi a primeira organização partidária criada de “baixo pra cima” no Brasil. Surgido da reunião de diferentes vivências políticas – comunistas, socialdemocratas, reformistas, cristãos, intelectuais, operários, camponeses, estudantes –, o PT representava uma grande novidade na política brasileira.
Foram necessários vinte e dois anos até que o partido chegasse ao governo federal. Para isso, adaptou seu programa às razões de mercado, prometeu respeitar contratos, abandonou a defesa de reformas estruturais e firmou alianças com partidos do campo conservador. Não era o único caminho, obviamente. Em história não há caminhos únicos. A opção consciente da maioria do partido em domesticá-lo foi feita ao longo de uma década e culminou com a “Carta aos Brasileiros” (na verdade, uma carta aos banqueiros) e a aliança com o Partido Liberal.
Uma vez no governo, Lula e o PT colocaram em prática o compromisso firmado meses antes com o mercado: sofrendo os efeitos da crise econômica que atingiu o país no início da década, o governo implementou um forte ajuste fiscal de caráter conservador, que elevou a meta de superávit primário, aumentou das taxas de juros, renovou a Desvinculação de Receitas da União (DRU) e enviou ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional que alterava o regime da Previdência Social dos servidores públicos.
Se os ajustes fiscais (juros, superávit, metas de inflação) já eram suficientes para estarrecer até o mais moderado petista, já que representavam uma clara adesão às teses macroeconômicas do tucanato, a reforma da previdência parecia um pesadelo: pela primeira vez o PT defendia a retirada de direitos dos trabalhadores.
A reforma da previdência abriu uma crise entre o governo e parte do movimento sindical brasileiro. Os servidores públicos, históricos eleitores do PT, se converteriam a partir daí em base do eleitorado da oposição. Mesmo no âmbito do PT, a bancada mostrava-se rebelde. A oposição interna gerou uma dissidência pública. Parte dos parlamentares petistas votou contra a reforma da previdência, sendo expulsa em seguida; outra parte se absteve, sofrendo uma série de sanções internas.
Mesmo diante da saraivada de críticas, o governo conseguiu aprovar, na noite de 11 de novembro de 2003, a famigerada reforma da previdência, que, entre outras medidas, aprovou a taxação dos servidores públicos inativos e o aumento da idade mínima para a aposentadoria. Era a primeira vez na história política brasileira que o PT capitaneava um ataque aos direitos dos trabalhadores. Naquela noite, o partido assinou sua primeira certidão de óbito como alternativa para a transformação social. Ali morria, simbolicamente, o PT do Sion.
Mas o tempo passou. Depois da crise do “mensalão”, em 2005, outros petistas abandonaram o partido. Além de uma conversão programática ao modelo de gestão neoliberal da economia, o PT também se convertia aos métodos da velha direita. Apesar disso, as condições econômicas internacionais melhoraram, o que permitiu uma retomada dos investimentos públicos, a ampliação dos empregos, o aumento do salário mínimo e uma melhoria geral nas condições de vida dos mais pobres. Alguns alimentaram esperanças numa “guinada” de rumos no governo. No andar de cima, porém, os ricos lucravam como nunca. Nas palavras de Lula: “nunca os banqueiros ganharam tanto”.
Com a crise econômica iniciada em 2008, as tentativas de manter a política de crescimento baseado no consumo entraram em xeque. O desaquecimento da economia e a queda do investimento público ameaçam o emprego, os salários e ampliam a desigualdade. Como resposta, o governo liderado pelo PT tinha duas alternativas:
a) colocar em marcha uma série de medidas de taxação dos mais ricos, como o imposto sobre as grandes fortunas, a correção da alíquota do Imposto de Renda, o aumento do imposto sobre o lucro líquido dos bancos (CSSLL) e a redução drástica da taxa de juros;
b) aderir às saídas ortodoxas do mercado que taxam os mais pobres, aumentando a taxa básica de juros beneficiando o rentismo, reajustando os preços públicos (o popular “tarifaço”), contendo o investimento público e retirando direitos trabalhistas e previdenciários.
O governo, como sabemos, optou pelo segundo caminho.
Buscando atender às pressões do mercado, em 31 de dezembro do ano passado, no apagar das luzes, o governo anunciou a publicação de duas Medidas Provisórias que flexibilizam direitos trabalhistas e previdenciários (abono salarial, seguro-desemprego, pensão por morte, seguro-defeso e auxílio-doença). Pela segunda vez, um governo do PT liderava a retirada de direitos dos trabalhadores.
Em resumo, as medidas propostas pelo governo visam dificultar o acesso a esses direitos, ampliando prazos para sua requisição. O argumento é a existência de fraudes. Nada mais falso: por trás das MPs está a expectativa de uma economia de até R$ 18 bilhões de reais na concessão de benefícios. Esses recursos iriam para o caixa do governo, reforçando a contenção de despesas exigida pelo mercado.
As MPs 664 e 665 foram votadas nessa semana. O governo tentou dobrar o PT e demais partidos da base aliada. Teve sucesso: o PCdoB, que anunciou que se oporia às medidas, voltou atrás e se somou ao exército do ajuste fiscal. O PMDB anunciou que só votaria a favor das medidas se o PT cerrasse fileiras por sua aprovação. À direita, não basta ver o partido criado pelos “de baixo” servindo aos “de cima”. Querem uma capitulação total. Faz tempo que os que defendem uma transformação estrutural da política e da economia não podem mais contar com o PT. Mas ver o partido se curvando mais uma vez às exigências de um governo liderado pelo PMDB é triste.
Ao votar a favor das MPs 664 e 665, o PT assinou simbolicamente, pela segunda vez, seu atestado de óbito como alternativa em favor da classe trabalhadora brasileira.
Juliano Medeiros é historiador e membro da Executiva Nacional do PSOL.
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