A era da pilhagem
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- Ruy Braga
- 29/05/2015
Desembarquei em Curitiba na manhã seguinte à brutal repressão promovida pelo governo do tucano Beto Richa aos professores e servidores estaduais que protestavam em frente à Assembleia estadual contra a votação do projeto de lei que alterou a previdência no Paraná. Ao participar de uma assembleia de servidores da Universidade Federal do Paraná, pude ouvir os dramáticos relatos sobre a violência policial do dia anterior. Vi de perto os hematomas deixados pelas balas de borracha e os cortes causados pelos estilhaços das bombas de fragmentação nos servidores federais que estavam no protesto. Entre perplexo e indignado, descobri que o governo estadual trouxe tropas de choque de várias regiões do estado pra reforçar o efetivo de 1.500 policiais em frente ao parlamento. Atônito, soube que todo o estoque de gás lacrimogêneo do Paraná esgotou-se em apenas duas horas. A nuvem de gás criada pela PM obrigou a evacuação às pressas de uma creche na região.
A escala da violência política contra uma multidão formada por professores e servidores públicos, muitos deles, eleitores de Beto Richa, não deixa dúvidas a respeito da importância da votação do projeto de lei que muda o regime previdenciário dos servidores paranaenses. Trata-se basicamente da pilhagem de direitos sociais em benefício do pagamento da dívida pública estadual. Ainda estava na cidade quando o governador sancionou o projeto. Ou seja, a brutalidade policial assegurou o roubo das aposentadorias e das pensões dos servidores.
A “Batalha de Curitiba” seria um acontecimento isolado não fosse o fato de que a espoliação dos direitos sociais e trabalhistas, a fim de pagar juros e amortizações da dívida pública, ter se transformado na principal estratégia social de acumulação do modelo de desenvolvimento brasileiro. Guardadas as devidas diferenças e semelhanças, a mesma lógica financeirizada de acumulação por espoliação norteia os atuais ataques do governo federal por meio da aprovação das Medidas Provisórias (MPs) 664 e 665 contra os direitos previdenciários dos trabalhadores, como o seguro-desemprego e a pensão por morte. Às MPs, soma-se o Projeto de Lei (PL) 4330, em tramitação no senado, cujo sentido consiste em rebaixar o custo da força de trabalho brasileira por meio da degradação do acesso dos trabalhadores aos seus direitos trabalhistas. Ao fim e ao cabo, não parece haver mais dúvida sobre o que se passa no país. Transitamos de um regime de acumulação apoiado predominantemente na exploração do trabalho assalariado barato para um regime de acumulação focado na espoliação dos direitos dos trabalhadores.
Evidentemente, isto não implica que a exploração do trabalho assalariado barato tenha perdido centralidade. No entanto, tendo em vista o prolongamento da crise econômica internacional somado à dificuldade do atual regime de acumulação em acomodar os conflitos trabalhistas decorrentes da ampliação do assalariamento formal da última década – não nos esqueçamos do atual pico histórico grevista –, o governo federal, respondendo às pressões da oligarquia rentista, decidiu orquestrar uma brusca mudança nos rumos da economia. A prioridade voltou-se para o reforço dos alicerces da acumulação por espoliação, ou seja, a mercantilização do dinheiro, da terra e do trabalho. Naturalmente, isto já ocorria antes. Mas vale lembrar que alterações quantitativas provocam mudanças qualitativas. E, sem dúvidas, entramos este ano em uma quadra histórica diferente da anterior.
Um ajuste fiscal de 70 bilhões de reais atingindo prioritariamente os investimentos em educação e saúde, somado ao plano de privatização das infraestruturas nacionais, anunciaram esta nova era que será coroada por uma transformação estrutural do mercado de trabalho brasileiro, caso o PL 4330 seja aprovado. Finalmente, as sucessivas elevações da taxa básica de juros selaram o caixão do neodesenvolvimentismo esboçado no primeiro governo de Dilma Rousseff. Para as viúvas deste modelo que acreditaram no tom de ricos contra pobres da última campanha petista, ficará sempre a lembrança da “demissão” de Guido Mantega um mês antes do primeiro turno. Àquela altura, alguém imaginou seriamente que Dilma pretendia trocar Mantega por Belluzzo? Na verdade, a transição entre os modelos já estava selada.
Tradicionalmente, o marxismo tendeu a interpretar a passagem da acumulação primitiva escudada na violência política condensada no Estado para a forma industrial do capital apoiada na violência econômica da exploração do trabalho assalariado como uma transição sequencial. Em sua clássica interpretação do imperialismo, Rosa Luxemburgo (1) foi quem primeiro aventou a hipótese de uma reinvenção mais ou menos permanente da estratégia da acumulação por espoliação. David Harvey (2) atualizou recentemente a teoria luxemburguista a fim de descrever a estratégia predominante da acumulação durante o período da crise do neoliberalismo.
Apesar de reconhecer certos exageros na bem-sucedida análise de Harvey, alguns deles já sublinhados por Ellen Meiksins Wood (3), entendo que a plasticidade das relações de exploração capitalistas somada ao caráter cíclico da economia mercantil tornam factível a convivência íntima e complementar das diferentes estratégias sociais de acumulação. Tendo em vista a multiplicidade dos ritmos, desiguais, porém combinados, que regem a relação de forças entre as classes, além das dificuldades derivadas do processo de recomposição permanente da divisão internacional do trabalho, é expectável que ocorram oscilações mais ou menos frequentes do polo da exploração para o da espoliação, e vice-versa, no tocante à direção geral do regime de acumulação. Em minha opinião, o atual ajuste promovido pelo governo federal dialoga com esta dinâmica.
Evidentemente, nada está decidido em definitivo e a forma da transição geral rumo à centralidade da pilhagem dos direitos e da violência política sobre os trabalhadores vai depender dos desdobramentos das lutas sociais no país. Daí a importância do dia nacional de paralisação e manifestações rumo à greve geral convocado pelas centrais sindicais CSP-Conlutas, CTB, CUT, Nova Central, UGT e Intersindical, para o dia 29 de maio. Ademais, caso a hipótese da acumulação por espoliação esteja correta, arriscaria dizer que o modo de regulação lulista está com os dias contados. Afinal, se a especificidade do atual regime hegemônico repousa na articulação entre o consentimento passivo dos subalternos e o consentimento ativo das direções dos movimentos sociais, como o modo de regulação irá se reproduzir sem a concordância “dos de baixo” seguida pela intensificação da pressão destes sobre as lideranças dos movimentos sociais? Ao que tudo indica, a era da pacificação social ficou pra trás, sepultando a hegemonia lulista.
Ainda é possível que o PT se reaproxime das expectativas populares sob ataque do governo federal? Hipoteticamente, sim. No entanto, isso suporia um afastamento traumático em relação ao seu próprio governo, decretando o colapso do consentimento ativo das direções. Convenhamos, trata-se de um cenário pouquíssimo provável. Então, afinal, o que o futuro nos reserva? Em seus Cadernos do cárcere, Antonio Gramsci definiu hegemonia como “força revestida de consenso”. Durante períodos de crise orgânica, quando o consenso recua e a força avança, o conteúdo autoritário da estrutura capitalista revela-se com mais clareza. A militarização do conflito social insinua que a transição para um modelo apoiado na pilhagem dos direitos sociais e trabalhistas já começou. E o mais provável é que batalhas populares, como as de Curitiba, se multipliquem pelo país afora, comprovando a chegada da era da pilhagem ao país.
Notas
1 - Rosa Luxemburgo descreveu o processo de acumulação em países como a Índia e a China, enfatizando a mercantilização da terra e a criação das condições para o desenraizamento dos trabalhadores de suas comunidades rurais originárias, assim como sua posterior proletarização. Para tanto, Rosa destacou a centralidade da violência política e o necessário papel cumprido pelo militarismo no ciclo da acumulação capitalista. Para mais detalhes, ver Rosa Luxemburgo. A acumulação do capital: contribuição ao estudo econômico do imperialismo. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
2 - Ver David Harvey. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2009.
3 - Ver Ellen Meiksins Wood. O império do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.
Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003).
Originalmente publicado na Boitempo Editorial - http://blogdaboitempo.com.br/2015/05/25/a-era-da-pilhagem/