Por que a oração de uma comunidade católica contra a homofobia causa tanta polêmica?
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- Daniel Lima
- 26/06/2015
No dia 21/06, na paróquia Nsa. Senhora Do Carmo, em Itaquera, zona leste de São Paulo, aconteceu a missa dominical às 10h, como ocorre há anos. Presidida pelo pároco Pe. Paulo Sérgio de Bezerra, a missa teve em seu folheto de liturgia, nas preces comunitárias, pedido de solidariedade e acolhida às pessoas violentadas por conta de sua orientação sexual, um chamado para o enfrentamento à homofobia, por uma forma de diálogo que supere a demonização das relações afetivas, contra a criminalização da orientação sexual, garantia de direitos e pela liberdade.
A partir disto, nos dias seguintes, houve grande repercussão por conta destas preces. Significativa parte dos meios de comunicação publicou parte do folheto, gerando diversas polêmicas e suscitando um interessante debate.
Em geral, as discussões foram feitas a partir do fato isolado. Mas, por que tanta repercussão e polêmica por conta destas preces?
Um brevíssimo resgaste histórico se faz necessário, para melhor compreendermos os motivos, tendo como chave para a reflexão "o ascenso das causas libertárias", constante no folheto dominical.
Há uma teologia que teve seu ápice nas décadas de 60 e 70 no Brasil e América Latina. Sua essência é libertária e de clara opção pelos pobres, conhecida por Teologia da Libertação.
Em um sistema econômico e político opressor e profundamente segregador, estando o Brasil e América Latina situados no campo dos oprimidos, inevitavelmente esta teologia se posiciona como anti-imperialista e contraria interesses econômicos estadunidenses e europeus, prejudicando a lógica (neo)colonizadora destes.
Vale lembrar que esta teologia foi base para a construção de inúmeras organizações populares com reais interesses em transformações sociais, sob a perspectiva daquela que é sua essência. Portanto, sob o crivo opressor, esta teologia deveria ser enfraquecida. E assim foi. Sofreu todo tipo de ataque, seus membros e idealizadores foram afastados de importantes posições dentro da Igreja Católica, muitos foram silenciados e perseguidos.
A exemplo do que ocorreu, através de uma articulação mundial que mobilizou os meios de comunicação de massa, para criar uma significação falaciosa e depreciativa às alternativas políticas e econômicas para superação do capitalismo, o mesmo foi feito com esta teologia libertária, fiel às propostas cristãs.
Isolados, seus membros sobreviveram e não se deixaram capitular pela lógica sistêmica, fizeram a resistência necessária e continuaram seus trabalhos de base. Sem o vigor de outrora, é verdade.
Paralelo a isto, a partir da década de 60, vindo dos EUA, começam a chegar no Brasil e América Latina as primeiras iniciativas de uma teologia oposta, criando um movimento (neo)pentecostal, baseado na individualidade, troca e meritocracia, conhecida por teologia da prosperidade.
Pequena no começo, cresceu na proporção em que a libertária diminuiu. O número de católicos também diminuiu, quase de forma inversamente proporcional ao crescimento das igrejas neopentecostais.
A Igreja Católica do Brasil sofreu com as novas diretrizes da cúpula vaticanista, que desde a década de 80 se alinhou fortemente ao neoliberalismo, tendo de abrir espaços para movimentos internos semelhantes ao neopentecostalismo, resultando em uma nova geração de religiosos e leigos formados sob a perspectiva da teologia da prosperidade.
Esta teologia da prosperidade tem seu ápice no Brasil a partir de uma política econômica de crédito em larga escala feita nos governos Lula, onde o círculo "virtuoso" (sob a lógica desta) se realiza plenamente: pede-se a Deus para obter algo do sistema consumista; Deus atende suas orações e possibilita que a pessoa tenha acesso aos bens de consumo; agradece-se a Deus entregando parte de seus ganhos (oferta), transformando líderes religiosos em milionários, dado que a oferta é entregue a estes.
As inúmeras denominações cristãs, ao crescerem arregimentando multidões e paulatinamente se apropriando de meios de comunicação de massa, começam a ter papel de fiel da balança nas disputas eleitorais.
Num primeiro momento, como atores secundários. No presente, como uma das principais forças políticas no Brasil.
Como força política, induzem e conduzem o Estado sob valores moralistas e individualistas, com pouca preocupação com o desenvolvimento do país. Agem no Brasil da mesma forma que agem nos EUA, pois são da mesma matriz teológica.
A bancada evangélica não é obra do acaso, mas algo construído nas últimas décadas. O problema ocorre e acentua-se a partir do momento em que a política de crédito em escala não vem acompanhada de uma política de manutenção dos postos de trabalho, gerando uma crise que quebra o "círculo virtuoso" e colocando em xeque esta teologia.
Não podemos nos esquecer que estamos em um sistema que tem em sua lógica principal o acúmulo e retenção de capital, no qual a teologia da prosperidade atua como colaboradora de sua manutenção.
Pela alta concentração de renda que privilegia alguns poucos (46% da riqueza do mundo estão nas mãos de 85 pessoas, segundo relatório de Davos), há de se criar uma subcategoria de seres humanos, na qual a população LGBT, assim como a juventude, mulheres, negros, idosos, entre muitos outros, são incluídos.
Não se vê uma pessoa transexual como diretora de multinacional ou em altos cargos, mas tais pessoas são vistas comumente nas madrugadas prostituindo-se, pois foi o lugar que a sociedade lhes reservou, condenando-as.
Esta subcategoria está a serviço do sistema político e econômico para uma reserva de mão de obra, que, quando não utilizada, é objeto de políticas que resultam em encarceramento em massa e morte. Haja vista os números e os recorrentes casos oriundos destas políticas. São públicos e confirmam esta caracterização de sociedade violenta.
Não é necessário ser formulador de teologia, nem mesmo teólogo, para identificar que a vida, prática e ensinamentos de Jesus Cristo são totalmente antagônicos a qualquer exclusão, segregação e morte.
Esta segregação não pode ser feita às claras, afinal, vivemos numa (pseudo)democracia, portanto, há de se criar um discurso de legitimação da segregação e exclusão. Nisso, significativa parte de denominações cristãs, articuladas com boa parte dos meios de comunicação, servem como correia transmissora de criação de um discurso e imaginário popular que legitimam as ações de desqualificação, insultos, segregação, exclusão, violência e morte.
Ao se posicionar claramente contra uma bancada evangélica, conservadora e homofóbica, que cumpre o papel acima, Pe. Paulo Bezerra, a exemplo do Papa Francisco, ataca um dos sustentáculos do atual sistema, sua concepção ideológica hegemônica. E, por isso, também a exemplo do Papa Francisco (guardadas as devidas proporções), sofre ataques e campanhas contrárias às suas posições autenticamente cristãs.
Pe. Paulo Bezerra, como bom cristão que é, deve estar exultante de alegria, afinal:
"Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós”
(Mateus 5, 10-11).
Daniel Lima é membro do Conselho Nacional do Laicato do Brasil (CNLB), organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
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