O estrebuchar da classe média
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- Justino de Sousa Junior
- 02/10/2015
Geralmente, o pensamento hegemônico, com suas feições moderadas ou mesmo abertamente reacionárias, não precisa sair às ruas mobilizado para se manifestar. Ele perdura sólido – mas tudo que é sólido também pode se desmanchar -, enraizado no ambiente da família, no Estado, fomentado pelas igrejas, escolas, livros didáticos, está nos tribunais, na ação dos aparatos repressivos, nas peças publicitárias, nos jornais, rádio e televisão em geral. Estes aparatos todos repercutem ininterruptamente as ideologias que sustentam a sociedade burguesa. Eles são, em última instância e embora contraditórios, tentáculos do capital.
Por isso, notadamente no Brasil, poucas vezes os conservadores precisaram sair às ruas para reivindicar qualquer coisa, pois os ventos sempre sopraram a seu favor e aqueles mecanismos todos ajudavam a consolidar sua posição hegemônica. Além de deterem os meios de produzir as riquezas e de se apropriarem da maior parte delas, monopolizavam o poder de determinar o que era certo e errado, o direito de julgar, de prender, de reprimir e de proclamar a sua vontade como se fora a vontade de toda a sociedade. A atuação daqueles aparatos consiste justamente em fazer parecer à sociedade inteira que seu funcionamento é a mais natural normalidade, totalmente neutra, sem qualquer vinculação com as estruturas do poder social instituído.
Uma gritaria isolada
Na história brasileira recente encontramos um episódio marcante em que os conservadores saíram às ruas em grande número. Foi o caso das “marchas da família com deus e pela liberdade” que saíram às ruas durante o mês de março de 1964, fomentando a reação e o golpe civil-militar - que viria ao final daquele mês – e culminando com a “marcha da vitória”, que levou cerca de 1 milhão de pessoas às ruas do Rio de Janeiro em 2 de abril de 1964. Tratava-se de um movimento reacionário às medidas anunciadas pelo então presidente João Goulart, deposto por propor medidas razoavelmente ousadas naquele contexto histórico, mas que não passavam de reformas democráticas.
As reformas de Jango incomodaram profundamente as oligarquias brasileiras acostumadas a controlar amplamente todo o povo, tanto econômica como política, militar e ideologicamente e até os interesses imperialistas estadunidenses se sentiram ameaçados. Aquelas oligarquias repudiaram veementemente a ideia de um capitalismo um pouco menos desigual e atrasado e, contrariadas, partiram para a ofensiva, articulando aqueles movimentos reacionários contra um governo que se mostrava minimamente sensível aos apelos do povo trabalhador.
Durante todos esses anos o pensamento conservador esteve muito bem representado nos aparatos oficiais e reservado em institutos e associações empresariais, militares ou religiosas, mas não frequentava as ruas com desenvoltura – as ações da famigerada TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição Família e Propriedade) confirmam isso. As ruas sempre foram lugar dos estudantes lutarem pela educação pública, dos trabalhadores reivindicarem direitos e salários justos, dos camponeses reivindicarem reforma agrária, do povo exigir democracia, de se manifestar contra o imperialismo, de se queimar a bandeira estadunidense, de se vestir de camisetas de Che Guevara, de se caminhar cantando Geraldo Vandré, de se sonhar com outro mundo possível de liberdade e justiça e de se alimentarem as utopias.
A perda da vergonha
Mas, o tempo virou e está nos exigindo toda paciência e coragem para enfrentar a disputa política e ideológica. Vivemos um tempo no Brasil em que o pensamento conservador desencabulou e saiu da casamata. Os conservadores perderam a vergonha, agora se orgulham de seu retrogradismo e saem às ruas de cara limpa, gritando aos quatro ventos sua ignorância, seus preconceitos, suas ideias atrasadas, orgulhosos de sua própria estupidez.
A classe média brasileira é agora a portadora do estandarte do atraso. Ela tem encabeçado manifestações marcadas pela estupidez e ignorância de slogans grosseiros, fascistas que mais ofendem moralmente do que demarcam politicamente. Manifestações tipicamente de classe média, pensadas e dirigidas pelas lideranças forjadas por essa classe em seu ambiente natural, ou seja, no “caldeirão cultural” das lanchonetes de fast food, dos condomínios de luxo, boates e shopping centers.
Enquanto as manifestações da direita nos anos 1960 sob o slogan do combate ao comunismo visavam a defender a propriedade capitalista e os ideais conservadores e eram promovidas por amplo leque de organismos representativos das classes dirigentes como FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), associações de ruralistas, partidos políticos conservadores, Igreja Católica e até a CIA, as atuais representam meramente os interesses pueris e mesquinhos da classe média e em geral são organizadas por pequenos núcleos reacionários ligados aos partidos derrotados nas eleições federais, especialmente o PSDB.
Diferentemente daquelas manifestações reacionárias, as atuais têm representado até aqui não mais que o estrebuchar da classe média e, em geral, são promovidas por aqueles que enfiaram o punhal neoliberal na jugular do Estado brasileiro, mas tiveram seu ciclo político à frente do Estado saturado após o desgaste causado pelos oito anos de arrocho, entreguismo e corrupção. Nas eleições de 2002 foram substituídos pelo PT, que seguiu a velha cartilha, apenas operando com novos métodos, agora sob a áurea do progressismo de esquerda, inaugurando uma nova era neoliberal de face mais dinâmica e caridosa, dessa maneira, cumprindo o importante papel de oxigenar o poder capitalista no Brasil.
Portanto, as manifestações recentes não expressam o pensamento nem a vontade das altas classes dirigentes do país que, diferentemente da classe média, se encontram bem mais satisfeitas com os serviços prestados pelo PT. As manifestações atuais ecoam a voz das camadas médias que assistiram aos governos petistas assegurarem as vantagens dos setores economicamente predominantes, atenderem às demandas das frações mais pauperizadas das classes trabalhadoras e não viram seus delírios de luxo e consumo serem satisfeitos na mesma proporção.
Neste atual contexto, até aqui pelo menos, o que vemos é a reação dos setores médios a um governo identificado com determinados aspectos da história dos movimentos sociais. O partido que está no governo tem origem nas lutas sociais. Porém, há uma profunda diferença com a situação mencionada da década de 1960: os governos petistas não propuseram nenhuma medida que sequer arranhasse as estruturas de poder do país. Muito ao contrário, fizeram de tudo para assegurar as enormes vantagens dos setores empresariais dominantes em todos os campos, como o financeiro, agrícola, alimentício, automobilístico, petrolífero, da construção civil, saúde, educação e comunicação, para citar alguns.
O pior de tudo que se pode constatar é que os governos petistas abriram mão de dirigir um período de reformas econômicas, políticas, ideológicas - que é o que se espera da esquerda no poder, isto é, uma direção nova que busque elevar o patamar cultural da sociedade como um todo, revirando suas velhas concepções e valores. Ao contrário, aqueles governos executaram as contrarreformas que deixaram inconclusas os tucanos e aturam como novos profetas da burguesia, negando o antagonismo dos interesses de classes, cooptando e desmobilizando os movimentos sociais.
A direção política adotada pelos governos petistas ajudou a fortalecer a ideia de que a sociedade brasileira não se constitui de polos sociais com interesses antagônicos, de que não precisamos operar grandes mudanças nas estruturas econômicas e políticas do país e de que a burguesia brasileira não tem nada a ver com as profundas desigualdades sociais, nem com nenhum problema social que enfrentamos.
O preço de não se fazer reformas
Não seria correto caracterizar a classe média como uma camada social atrasada por natureza e sempre dada à repercussão das ideias reacionárias. Sua posição intermediária entre as classes dirigentes e os trabalhadores explorados faz com que oscile econômica e politicamente, podendo assumir, dependendo da situação histórica, posições mais próximas dos de baixo ou dos de cima. A classe média brasileira, parcela dela, já tomou parte em movimentos progressistas em determinados momentos da nossa história como no episódio das lutas pela redemocratização a partir do final dos anos 1970. Apesar de gostar de ouvir a eloquência de Marilena Chauí ao tratar dessa classe, acreditamos que essa análise pode ser mais bem situada.
O fato é que hoje vemos a classe média saindo às ruas vociferando contra o comunismo, contra Cuba, contra a Venezuela e o chavismo, contra o programa bolsa-família, contra o PT, contra o MST, gritando contra a corrupção, em defesa da ética, ao mesmo tempo solicitando a volta dos militares ao poder e até lamentando que a presidente Dilma Roussef não tenha sido enforcada pelas forças repressivas da ditadura civil-militar.
Nesse complexo encontramos desde os interesses escusos do PSDB por detrás dos atos realizados; a presença forte de visões absolutamente reacionárias e preconceituosas plantadas sistematicamente por veículos da grande mídia; a retomada anacrônica, completamente deslocada, de coisas como a propaganda anticomunista dos tempos da Guerra Fria; uma interpretação asinina do momento brasileiro que não consegue compreender o papel colaboracionista dos governos atuais; até a constatação dos estreitos limites das aspirações mesquinhas da classe média, incapaz de alargar seu horizonte de análise e de proposição para além dos muros de seus condomínios fechados.
A classe média que hoje sai às ruas é ignorante porque não é capaz de fazer a reflexão histórica e reconhecer que se não fossem as lutas populares ainda estaríamos trabalhando em jornadas de 12 horas semanais ou mais, sem as mínimas garantias e proteção social, as mulheres não teriam o direito ao voto e nem sequer teríamos o arremedo de ordem democrática que hoje temos.
Ela não consegue enxergar quem são os verdadeiros responsáveis pela alarmante situação social que vivemos, situação que a deixa, ela própria, tão desconfortável e insegura. A classe média, essa mesma classe que jamais foi padrão de comportamento ético no cotidiano, hoje vocifera contra o governo federal, mas não consegue ampliar seu foco para o Congresso e para o modus operandi das forças que estão no poder há séculos. Ela não consegue ver o que se passou anteontem com as privatizações ou o que se passou em matéria de corrupção recentemente em Minas Gerais e ocorre em São Paulo e noutros estados comandados pelos partidos que admira.
Enquanto a classe média tem a coragem de sair às ruas para reclamar porque não tem mais podido viajar ao exterior tantas vezes, porque não cogita mais trocar de automóvel com facilidade, porque diminuíram suas margens de especulação financeira, as esquerdas, os de baixo e os trabalhadores rurais sem terra que acampam sob a lona preta estão atuando politicamente inspirados em princípios de justiça, solidariedade, igualdade, tudo aquilo que ela, a classe média, só professa durante seus rituais religiosos dominicais ou no Natal, quando se derrama em caridade, mas ao mesmo tempo promove a segregação com as normas de utilização dos elevadores de serviço.
É essa gente, cujas preocupações se resumem ao limite de seu cartão de crédito e outras trivialidades egoístas, que está indo às ruas clamando por ética e agredindo os lutadores sociais que dedicam suas vidas ou seu tempo livre para lutar por um país solidário e fraterno.
Essa classe média é estúpida porque sai às ruas agredindo moralmente aqueles que lutam por um país melhor; aqueles que se ocupam de questões coletivas, como as injustiças sociais, as condições de vida do povo trabalhador, a destruição ambiental, a saúde pública, a educação pública, a questão indígena, a discriminação racial, a atual crise dos refugiados sírios ou a opressão em geral.
Nossas unidades necessárias
Foi o que ocorreu recentemente quando da chegada do dirigente do MST, João Pedro Stédile, no aeroporto Pinto Martins, em Fortaleza, no último dia 23 de outubro, quando um pequeno grupo de manifestantes o aguardava no desembarque e o recebeu com gritos contra o Partido dos Trabalhadores, contra o MST, contra Cuba, chamando-o de comunista, ditador e dirigindo contra ele alguns xingamentos e ofensas morais.
Deixaremos de lado, por ora, as divergências que temos com a análise e a postura política de J. P. Stédile, que são resultado de uma crítica feita pela via da esquerda e que se firmam pela contestação da sua condescendência e cumplicidade para com os governos petistas; deixaremos de lado por enquanto a discordância relativa à postura incapaz de adotar uma posição independente, firme e deicida com os governos que, se abriram frestas para os trabalhadores, abriram imensos canais para o agronegócio, fortalecendo-o economicamente e consolidando sua posição no Congresso.
Nem mesmo tendo o governo de Dilma Rousseff obtido o pior desempenho em matéria de reforma agrária dos últimos vinte anos, inclusive pior que o de FHC, não foi suficiente para que Stédile adotasse uma posição minimamente crítica em relação ao governo federal, ao contrário, tem contribuído para construir no movimento que dirige perigosas ilusões.
Porém, o que importa agora é enfrentar o crescimento da onda reacionária, portanto, essas divergências se tornam completamente insignificantes. Agora, o fundamental é, diante da gritaria reacionária promovida por setores da classe média, afirmar o reconhecimento de Stédile como um valoroso e combativo militante, companheiro de jornadas com o qual divergimos hoje taticamente, mas que com ele também partilhamos os ideais de uma sociedade fraterna e justa. Por isso, nos solidarizamos com Stédile e o MST, um companheiro e um movimento social que contribuem imensamente para que o Brasil avance e se torne um país melhor para as maiorias.
O ato contra Stédile ataca a todos os lutadores do povo e representa uma segunda violência porque atinge a todos aqueles que já são vítimas de uma opressão histórica; os fascistas que agrediram moralmente Stédile, agrediram também a memória de centenas de trabalhadores e trabalhadoras rurais, indígenas, freiras, padres, negros e negras assassinados por lutarem por terra, moradia, justiça de modo que o repúdio a esse gesto obtuso e inaceitável precisa ser amplamente divulgado.
Justino de Sousa Junior é professor do Programa de Pós-graduação em Educação da UFC.
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