Correio da Cidadania

Coxinhas e governistas: dupla face da intolerância da classe média?

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A luta política, social e cultural prossegue acirrada no Brasil, conjuntura inaugurada pelas Jornadas de Junho de 2013, que fez relembrar a todos, de modo abrupto, o quão conflituosa é nossa sociedade em sua trajetória histórica e como são finitas as possibilidades de amortecimento da luta de classes. A última experiência nesta direção é a que ainda vivemos, de hegemonia do lulismo.

 

No entanto, em seu viés mais propriamente de classe, tais lutas são em boa medida ocultadas pelas duas narrativas dominantes – e, portanto, mais visíveis: uma da velha direita e da grande mídia neoliberais, de viés moralista; e outra da nova direita (ex-esquerda) lulista e neodesenvolvimentista, cuja narrativa antes era triunfalista e agora é simplesmente desesperada.

 

Enquanto continua o histriônico embate entre “coxinhas” e “governistas”, na política institucional e nas redes sociais, comumente em tom de farsa ou tragicomédia, em sequência à disputa eleitoral de 2014, as lutas dos trabalhadores e da juventude persistem e se ampliam. Exemplos são a greve nacional das universidades federais, a mobilização contra o fechamento de escolas em São Paulo e a Marcha Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras ocorrida em setembro último, também em São Paulo.

 

Todos contra junho

 

Mas por que as disputas políticas envolvendo PT, PSDB, PMDB e outros partidos da ordem parecem invisibilizar as lutas reais das classes populares? Neste sentido, não se pode esquecer do papel cumprido pelo cerco midiático-privado e estatal-governamental contra os movimentos sociais. Mas outras razões devem ser colocadas, e são melhor compreendidas se nos debruçarmos sobre a nova conjuntura inaugurada a partir de junho de 2013.

 

As mobilizações daquele ano expressaram um grande repúdio à política institucional burguesa que, nas últimas três décadas, foi dominada pelos governos neoliberais de FHC e neodesenvolvimentistas de Lula e Dilma. A verdadeira revolta popular que foram as Jornadas de Junho certamente teria resposta das forças defensoras da manutenção do status quo.

 

Outros grandes movimentos contestatórios, como os estudantis nos anos 1960 na Europa e nos EUA, foram sucedidos por governos reacionários. O caso do Brasil não poderia ser diferente, ainda mais após PT e CUT terem aderido à lógica de gestão estatal do Capital, restando uma diminuta, mas crescente e combativa, esquerda.

 

Essa reação aos movimentos de 2013 iniciou-se com a repressão violenta e indiscriminada à juventude e aos trabalhadores que foram às ruas, perpetrada indistintamente pelos governos do PT, PSDB e PMDB. A seguir, se deram três outras reações à revolta e à insatisfação popular contra a velha e a nova direitas.

 

Primeiramente, em oposição ao desencanto com a política institucional expresso pelas Jornadas de Junho, houve uma onda de engajamento na campanha eleitoral de 2014. Este fenômeno se processou como se, em resposta a trabalhadores e jovens que vão às ruas desde 2013 (afirmando a necessidade e a radicalidade da democracia participativa enquanto uma saída possível para nossas classes populares), os representantes na sociedade civil dos partidos da ordem – PT, PSDB, PMDB, etc. – reafirmassem a adesão à democracia representativa como única alternativa possível – versão contemporânea da longa tradição brasileira de apassivamento político das classes populares e de amortecimento das lutas sociais.

 

Em 2014 se deu inclusive um surto de dilmismo em parte da base social da esquerda classista. Pessoas de longa tradição de militância e devidamente vacinadas em relação ao marketing eleitoral passaram não só a considerar, equivocadamente, que o discurso de Dilma era de esquerda, mas, mais grave, a acreditar que o falado nas eleições será o praticado pelos candidatos uma vez eleitos. E não percebiam, no caso em questão, que quanto mais Dilma era ameaçada por Aécio, mais podia radicalizar seu discurso e mais tinha condições de fazer o contrário do que discursava, colocando em prática o governo que Aécio faria, como vemos hoje.

 

Parece se configurar aqui uma espécie de versão vulgar das ideias fora do lugar (clássica tese de Roberto Schwarz): o PT agora subverte o antes professado socialismo em favor do neodesenvolvimentismo, assim como no século 19 subvertia-se o liberalismo em prol da escravidão.

 

Em segundo lugar, em resposta aos avanços obtidos pelas classes populares por conta de suas lutas desde o processo de redemocratização iniciado nos anos 1970 (muitas vezes lidos, estes avanços, de modo reducionista, como conquistas exclusivamente institucionais e benesses governamentais via Constituição de 1988, leis e políticas públicas do lulismo), desenvolveu-se uma reação conservadora, a qual se alimenta do desgaste dos anos seguidos de governos do PT.

 

Dois pontos devem ser destacados aqui: não se trata de uma onda conservadora que implementa retrocessos, mas de uma reação que tenta frear as lutas e conquistas da militância jovem, negra, feminista, LGBT, entre outras; além disso, embora o PT sofra com a reação conservadora, esta é também protagonizada pelo governo Dilma, que mostra seu reacionarismo seja no seu programa eleitoral atrasado no campo dos direitos e valores (vide as questões do aborto e dos direitos LGBT), seja no seu grande repertório de medidas antidemocráticas e antipopulares efetivadas (Lei da Copa, Lei Anti-terrorista, ataques à organização sindical do funcionalismo público, repressão aos movimentos sociais combativos e à juventude negra pobre etc.).

 

A perda da narrativa triunfalista

 

Esta reação conservadora mostra sua faceta antipopular em várias situações, como na recente greve das universidades federais, onde “coxinhas” e “governistas” se uniram em várias assembleias de professores se posicionando por princípio contra a greve enquanto forma de luta, por excelência, dos trabalhadores. A reação conservadora se revela mais claramente a antípoda não do PT, mas das Jornadas de Junho, quando ela se desdobra em bandeiras como a redução da maioridade penal, cujo foco é exatamente retaliar e criminalizar a juventude que massivamente vai às ruas desde 2013.

 

Por fim, houve uma terceira resposta às Jornadas de Junho, desta vez especificamente de parte dos setores governistas de nossa sociedade civil, diante do desmantelo da legitimidade política, social e intelectual de sua narrativa quase hagiográfica sobre os feitos do neodesenvolvimentismo lulista. Em meio à crise em que os governos do PT e as classes dominantes meteram os trabalhadores, a reação dos intelectuais do governismo tem consistido, pateticamente, na manutenção desta ultrapassada narrativa.

 

Só que esta agora gira em falso, pois ficou claro para as classes populares brasileiras o abismo que há entre a dura realidade de arrocho dilmista a elas imposta (com cortes generalizados no seguro desemprego, saúde, educação etc), por um lado, e o discurso da virtuosidade das políticas públicas lulistas, por outro (Alvaro Bianchi, em recente artigo no Blog Junho – “Ornitorrincos com PhD”, de 21/10/2015 – de certa forma analisa as origens desse processo).

 

Este beco sem saída em que se meteu o governismo, com seus intelectuais a repetir mecanicamente o discurso triunfalista dos “anos de ouro” – com “pés-de-barro” – do sucesso do neodesenvolvimentismo, quando já não vivemos mais o boom dos commodities, é a verdadeira razão do esfacelamento político-social do lulismo e a garantia de que a ex-esquerda composta por PT e PCdoB continuará afundada na catatonia em que se encontra o governo Dilma.

 

Ademais, ao analisarmos o que restou de apoio social mais coeso ao lulismo, se evidencia  acidamente uma propriedade importante da conjuntura radicalizada em que vivemos, a qual tem a ver com o que o senso comum identifica como “classe média”.

 

Em perspectiva histórica, verifica-se facilmente que a intolerância antidemocrática, elitista, racista, xenófoba, machista e homofóbica de nossos setores mais conservadores, os ditos “coxinhas”, não é novidade alguma. Pelo contrário, trata-se de algo recorrente em nossa trajetória repleta de ditaduras, bem como de democracias de baixa intensidade (com maior adesão à democracia representativa e menor engajamento na democracia participativa), como a que vivemos hoje. Lembremos que a chegada do PT ao governo federal é acompanhada, e mesmo antecedida, por letargia e burocratização nos movimentos sindicais e sociais ligados à CUT.

 

“Esquerda” reacionária

 

Equivocadamente, esta intolerância é identificada por intelectuais governistas, Marilena Chauí à frente, como característica da classe média brasileira. Tendo em vista a frouxidão teórica do conceito de classe média (questão fora do âmbito deste pequeno artigo), seu uso por parte dos adeptos do lulismo neodesenvolvimentista pouco revela a respeito da composição de classe de nossa sociedade, suposto objeto do discurso dos que o utilizam enquanto categoria acusatória. Ironicamente, expõe mais a condição social do sujeito deste discurso, o qual poderia ser identificado também como pertencente à classe média (o mesmo poderia se afirmar dos intelectuais da oposição de esquerda, é claro).

 

Em consonância com o mal-estar subjacente a este discurso, na medida em que o lulismo pretende-se de esquerda, mas critica a classe média enquanto está unido à burguesia agrária, industrial e financeira, presentes organicamente nos governos do PT, pode-se afirmar que o discurso governista também é repleto de intolerância política e intelectual.

 

É intolerante não apenas contra a velha direita (o que por si só seria até positivo...), mas também contra a esquerda que faz jus ao nome (PSOL, PSTU, PCB, anarquistas) e contra os movimentos sindicais e sociais combativos (CSP-Conlutas, MTST, MPL e tantos outros), na medida em que ambos ousaram e ousam fazer o dissenso com o neodesenvolvimentismo lulista e desmascarar a narrativa governista.

 

Essa intolerância é bem exemplificada pelas bizarras tentativas, por parte de intelectuais governistas, de relacionar as Jornadas de Junho de 2013 – horizontalizadas, radicalizadas, populares e protagonizadas pela juventude – com as manifestações da direita neoliberal de 2015 – verticalizadas, conservadoras, elitistas, embranquecidas e envelhecidas. O que mais dizer de uma comparação que vê identidade entre movimentos que recusam carros de som, repudiam políticos tradicionais e entram em confronto físico com a polícia militar com movimentos dirigidos por trios elétricos e que confraternizam com políticos neoliberais e membros das forças repressivas por meio de selfies? De comum, 2013 e 2015 possuem apenas certa continuidade temporal – nem a convivência com a impopularidade de Dilma pode ser devidamente citada, pois foi desencadeada justamente a partir das mobilizações de 2013.

 

A intolerância do governismo, que seria de classe média, deve sua estridência política provavelmente ao fato de terem sido os intelectuais governistas os responsáveis por formular, socializar e sustentar a narrativa do sucesso do lulismo em mudar estruturalmente o Brasil. Como tal narrativa foi desmontada e deslegitimada pelas Jornadas de Junho de 2013 e pelo início desastroso do segundo governo Dilma, ela perdeu boa parte de seu público. Assim, a intelectualidade governista, vendo escapar sua função social que lhe rendia grande prestígio e lamentando o deslocamento cultural que sofreu, encerra-se em seu discurso e posicionamento políticos intolerantes, como que em fase de negação.

 

O novo pede passagem

 

É possível que o lulismo e o PT retomem sua popularidade, mas por ora a narrativa – baseada em conciliação de classe por meio do crescimento desigual do consumo – que legitimou esta nova direita disfarçada de esquerda não consegue dar conta das mudanças da conjuntura, que incluem o acirramento da conflituosidade social e a retomada de lutas sindicais e populares em maior escala desde 2013 – propiciando, inclusive, a formação de um campo dos movimentos sociais e partidos de esquerda que se opõe tanto ao neoliberalismo como ao neodesenvolvimentismo, a partir do Encontro Nacional dos Lutadores e Lutadoras, realizado em setembro último em São Paulo.

 

Mas onde estes intelectuais orgânicos do lulismo neodesenvolvimentista estão? Em altos postos da burocracia estatal, na gestão de políticas públicas, nas universidades, em outros órgãos governamentais, em menor grau no setor privado demandante de mão-de-obra qualificada – trata-se de algo a ser pesquisado ainda. Por isso talvez seja melhor classificar tais setores como estratos assalariados remediados, não enquanto classe média.

 

Ocorre, então, que, por trás da suposta disputa entre direita e esquerda no Brasil, entre elites conservadoras e povo progressista, se apresenta uma disputa real entre uma velha e uma nova direita pelas chaves do cofre do governo federal, cada uma sustentada por um discurso – “coxinha” ou “governista” – a que se pode qualificar pejorativamente como de classe média, pois a clivagem de classe não existe mais.

 

Mas, além disso, o que ocasiona o FlaxFlu de baixo nível político e intelectual que está à vista (tão bem descrito por Vladimir Safatle em recente artigo na Folha de São Paulo de 23/10/2015: “Um filme de horror”) parece ser uma oposição de estilo social um tanto mesquinha, entre estratos sociais de maior capital econômico e menor capital intelectual – os “coxinhas” – e estratos sociais de menor capital econômico e maior capital intelectual – os “governistas”.

 

Todavia, ambos estão hoje distantes das classes populares, em cujo seio movimentos combativos dos trabalhadores vão se reconstruindo autonomamente nesta década, buscando um novo protagonismo político que possa emergir desde baixo na sociedade brasileira.


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Marco Antonio Perruso é Professor de Sociologia da UFRuralRJ, militante do PSOL-RJ e membro do ANDES-SN

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