Correio da Cidadania

A indignação hipócrita e mais um aniversário à espera da verdadeira democracia

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Completei 35 anos neste 21 de março em meio às turbulências do período pelo qual passa o Brasil. Nasci na ditadura militar, sob a vigência da Constituição de 1967 (ou 1969). Em 1984, aos 3 anos de idade, acompanhei, no ombro do meu pai (outrora torturado e preso político), o movimento das Diretas Já, na Praça da Sé e no Vale do Anhangabaú. Tive de aguardar mais quatro anos até a promulgação da Constituição de 1988, sob a perspectiva democrática, já tão modificada (91 emendas). Cresci, contudo, num ambiente conservador. Só duvidava se reacionário, talvez por ingenuidade. Não mais.

 

A democracia, aos seus adeptos, é muito cara. Exatamente por isso, respeito opiniões divergentes, ainda que dissonantes. Do contrário, seria porta-voz da minha própria incoerência. O pluralismo de ideias é fundamental, entretanto, há limites e princípios irrenunciáveis, dos quais não abro mão, sem margem a sentimentalismos.

 

Também o atual momento, mais do que outros, exige uma tomada de posição, cujo silêncio me faria cúmplice.

 

É muito fácil e confortável vociferar residindo no Alto da Lapa, Higienópolis ou Perdizes. Nesses redutos de pretensiosos “donos do saber”, malgrado as exceções, sobram intolerantes e alienados, para ser bem polido.

 

É a intolerância reproduzida por “batedores de panela”, raivosos e sem escuta. Que, insanos, não ouvem sequer o alerta daquela “filha da puta”, em rede nacional, sobre o Zika vírus. Dos que possuem MBA e intercâmbios no exterior, mas, são “formados” por Globo e Veja. Dos democráticos de fachada, na tentativa de forjarem a trajetória pessoal, sem convencer ninguém. Dos que consideram a luta de classes irrelevante e ultrapassada, senão papo furado de “comunista”.

 

Dos que abominam Karl Marx sem jamais tê-lo lido. Dos que só avistam uma favela, “abrigo de gente perigosa” e “delinquentes em potencial”, pelas lentes distorcidas da TV. Dos que creem conhecer um presídio por terem lido um livro. Dos que subestimam o crescimento “daqueles” que não eles. Dos que se escoram em títulos acadêmicos, línguas estrangeiras e viagens pelo mundo, não nas relações humanas.

 

Dos que toleram negros até a área de serviço, não na faculdade. Dos que se indignam com a queda da bolsa a afligir o Deus-Mercado, não com a morte de dezenas de adolescentes, precocemente sepultados, dia a dia. Dos que se opõem à expansão do transporte público por temer o trânsito de “gente diferenciada”. Dos que já não disfarçam a ojeriza às classes menos favorecidas (haja direitos sociais e trabalhistas) e às manifestações populares, antro de “vagabundos” e “acomodados”.

 

Clamam por GOLPE, sim!

 

Sem nenhum cerimonial, rasgam a Magna Carta quão fosse um documento qualquer, endossam conduções coercitivas ilegais, ratificam prisões preventivas sem fundamento e escutas telefônicas criminosas.

 

“Fora, Dilma! Morra, Dilma!”.

 

Nesse modus operandi de exceção a deixar Carl Schmitt admirado, tudo é permitido à caça de uma certa corrupção (a depender do assunto e de quem se trata), com amparo em delações seletivas, onde juízes e promotores-militantes sobrepõem-se às funções para as quais foram investidos e às respectivas instituições. Tidos por salvadores da pátria, fazem do processo penal um espetáculo programado: semana, dia e hora.

 

Aos domingos de desfile cívico, marcham ao lado dos que defendem intervenção militar e tiram selfie com a PM (que, no brasão de armas, homenageia em sua 18.ª estrela o Golpe de 64), como que chancelando a eficiência da corporação (em São Paulo, 750 mortes em 2015), na certeza de que o atendimento a eles – brancos, classe média/média alta e residentes nas regiões centrais – ser-lhes-á sempre cordial (de vez em quando, no máximo, um jato d’água), mui distinto do concedido aos pretos-pobres-periféricos do outro lado da ponte.

 

Por ironia, é justamente ela, a Constituição, que assegura aos “cidadãos de bem” e “pais de família” (como se os “outros” não pudessem ser) a presunção de inocência, o devido processo legal e a ampla defesa. Afinal, também cometem crimes (desvios), sonegam impostos (erro contábil) e traficam drogas (uso “cult” e recreativo), inclusive de helicóptero.

 

Nos condomínios fechados, porém, ao revés dos logradouros menos “nobres”, o aparato policial não os incomoda e, caso o faça, por um equívoco quase imperdoável, atua na mais perfeita legalidade, à luz do dia (não de madrugada) e com mandado judicial.

 

Já não duvido que, em poucos meses, assistirei a renúncia/impeachment da presidenta da República, em um processo encabeçado por corruptos, no desprezo à vontade das urnas e a 54.501.118 votos. Nesse dia ou noite cada vez mais próximo, milhares de pessoas sairão às ruas comemorando, resta saber o que.

 

 

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Ivan de Carvalho Junqueira é especialista em Direitos Humanos e Segurança Pública.

Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.)

 

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