Correio da Cidadania

52 anos do Golpe: a imprescritibilidade da tortura e a Lei de Anistia

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52 anos do Golpe. Em meio às turbulências do momento atual, mais um 31 de março.

 

“(...) que foi conduzido às dependências do DOI-CODI, onde foi torturado nu, após tomar um banho pendurado no pau-de-arara, onde recebeu choques elétricos, através de um magneto, em seus órgãos genitais e por todo o corpo, (...) foi-lhe amarrado um dos terminais do magneto num dedo de seu pé e no seu pênis, onde recebeu descargas sucessivas, a ponto de cair no chão, (...)” (In: Brasil: nunca mais. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985, p. 35).

 

Segundo a Constituição Federal de 1988, artigo 5.º, XLIII: “A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. Também em âmbito interno, editou-se a Lei n.º 9.455/1997, a qual “define os crimes de tortura e dá outras providências”.

 

Dentro do sistema global de direitos humanos, diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” (Artigo V). Em reforço, asseverou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966: “ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou científicas” (Artigo 7.º), ratificado pelo Brasil, contudo, só em 1992. No específico, acresça-se a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984, ratificada em 1989: “Em nenhum caso poderão invocar-se circunstâncias excepcionais, como ameaça ou estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública, como justificação para a tortura” (Artigo 2.º, 2).

 

No interior do sistema regional interamericano, mencione-se a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), de 1969, ratificada em 1992: “Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral (Artigo 5.º, 1), onde: “Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o devido respeito à dignidade inerente ao ser humano” (Artigo 5.º, 2).

 

Pela Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, adotada em 1985 e incorporada ao direito pátrio no ano de 1989: “...os Estados-partes tomarão medidas efetivas a fim de prevenir e punir a tortura no âmbito de sua jurisdição. Os Estados-partes assegurar-se-ão de que todos os atos de tortura e as tentativas de praticar atos dessa natureza sejam considerados delitos em seu direito penal, estabelecendo penas severas para sua punição, que levem em conta sua gravidade” (Artigo 6.º).

 

Há um expressivo conjunto de normativas a cuidar do assunto em tela, prova de que a prática da tortura, repugnante e abominável sob múltiplos aspectos, torna-se fonte de relevante preocupação entre os países, de maneira geral.

 

Note-se que o reconhecimento tardio então relacionado, no particular, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (26 anos após publicado) como, também, à Convenção Americana de Direitos Humanos (23 anos depois) não é obra do acaso ou mero desleixo. Tal morosidade é, por evidente, consequência direta da instauração dos governos militares no Brasil.

 

O termo “tortura” pode ser definido como: “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência (...)” (Artigo 1.º, Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes).

 

A tortura, por sua gravidade, constitui crime de lesa-humanidade. Ofende não apenas a localidade na qual incide, mas toda a comunidade estrangeira. É brutal forma de violência – atentatória aos direitos humanos –, utilizada em larga escala no Brasil e por toda a América Latina, de modo institucionalizado, durante os golpes militares.

 

Ainda hoje, lamentavelmente, em que pese o manto democrático, desde 1988, encontra guarida por entre os entes e a obscuridade do sistema de justiça, em especial, criminal. Do cometimento de um delito pelo acusado e no primeiro contato com a delegacia de polícia, passando pelo crivo do Ministério Público e do Poder Judiciário, até a execução da sentença em uma penitenciária qualquer para animalizados e indignos.

 

A tortura, instrumento inaceitável, é delito atemporal e imprescritível, cujos autores devem ser, sem margem à dúvida, investigados, processados e punidos, comprovada a culpabilidade. Seja cometida no presente ou cinco décadas atrás.

 

Lei de Anistia

 

A Lei n.º 6.683/1979, sob o governo João Figueiredo, denominada Lei de Anistia, considerou, em pé de igualdade, torturados e torturadores, nivelando-os. Anistia (do grego, amnestia) significa esquecimento. A incongruência é verificada logo de início, no artigo 1.º: “É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”. No parágrafo 1.º: “Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.

 

Referida legislação viola – frontalmente – a Constituição Federal de 1988 e, por tabela, várias normativas internacionais de proteção aos direitos humanos, algumas delas acima referidas.

Por oportuno, informe-se do Projeto-Lei n.º 573/2011, da autoria da deputada federal Luiza Erundina (Psol-SP), intuindo dar interpretação autêntica ao disposto no art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, reparando-se a incompatibilidade supra.

 

Também no Congresso Nacional, tramita no Senado Federal o Projeto-Lei n.º 237/2013, de iniciativa do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), o qual pede a revisão da Lei de Anistia, “...de maneira a promover sua adequação aos princípios fundamentais que inspiram a Constituição de 1988 e o sistema de tratados internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil é signatário”.

 

No ano de 2010, sentenciou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs Brasil: “Por se tratar de violações graves de direitos humanos, e considerando a natureza dos fatos e o caráter continuado ou permanente do desaparecimento forçado, o Estado não poderá aplicar a Lei de Anistia em benefício dos autores, bem como nenhuma outra disposição análoga, prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa julgada, ne bis in idem ou qualquer excludente similar de responsabilidade para eximir-se dessa obrigação (...)” (XI – Reparações, § 256, b), enfatizando-se que: “As disposições da Lei de Anistia brasileira, que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos, são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil” (XII Pontos Resolutivos, § 325, 3). Ademais disso: “O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar as sanções e consequências que a lei preveja (...)” (XII Pontos Resolutivos, § 325, 9).

 

Na América Latina, países como Argentina, Chile e Uruguai, por exemplo, estão anos à frente nesta matéria, de ressaltar-se, inclusive, a revogação de leis e decretos, outrora editados, inibidores das apurações, dada a incompatibilidade diante das normativas atuais em sede de direitos humanos. No território chileno, v.g., o Decreto-lei n.º 2.191/1978 – “lei de amnistia” – acabou invalidado, por ferir, como a lei brasileira, o ordenamento internacional, ao prever a anistia aos crimes cometidos, naquele país, de 1973 a 1978, sob a ditadura de Augusto Pinochet, das mais sanguinárias, cujas vítimas, entre torturados, mortos e desaparecidos, chegam a 40 mil.

 

 

Ivan de Carvalho Junqueira é especialista em Direitos Humanos e Segurança Pública.

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