Correio da Cidadania

O golpe como mera formalidade e seu enfrentamento político-estratégico

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Disfarçada de campanha contra a corrupção e a favor do impeachment, conforma-se uma ofensiva de classe que procura definir a forma do país sair da crise, eliminando não apenas direitos sociais adquiridos, mas as condições cognitivas, organizativas e de legitimidade para o reconhecimento e defesa dos direitos da população trabalhadora. É um ataque oportunista justo no momento de maior desgaste das representações com garantia formal de unicidade; quando ainda se encontram em fase larvar as lutas sociais de novo tipo.

 

O consenso em torno do imperativo da disciplina fiscal, ou a estabilidade financeira como “bem público”, foram declarações de submissão entoadas repetidamente pelos titulares das áreas econômicas dos governos Lula e Dilma. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), criatura de Malan e Armínio, adotada e embalada por Palocci e Mantega e agigantada com Levy e Barbosa, torna-se agora lastro para o impedimento de mandato presidencial. A despolitização da política econômica, ou seja, a retirada da macroeconomia da alçada de discussão e decisão pública propiciou a criação da temerosa figura de um crime de desvio ideológico, de irresponsabilidade fiscal.

 

Classes dominantes sempre amparadas no arbítrio da propriedade concentrada, frente à crise econômica e política que elas próprias alimentaram, alegam ser crime grave maquiar déficits fiscais. A criatividade infinda com os títulos secundários da dívida pública, essa pode tudo conforme a mesmíssima LRF. A roubalheira propiciada pela atualização e rolagem da dívida pública é tão grande no atacado que é mais fácil destacar a roubalheira no varejo, aquela que preside a chamada circulação de elites por meio de eleições e nomeações.

 

A questão não se reduz ao financiamento empresarial das campanhas eleitorais, pois é na interface porosa do aparelho do Estado que grandes empresas compõem projetos, alianças e incorporações. No atual grau de concentração e de imbricação financeira a que chegaram os capitais no Brasil - e a forma como esses reformataram o Estado -, já não é possível pensar em duas esferas distintas, Estado de um lado e Sociedade civil burguesa de outro. O que se pode inferir é a existência de recorrentes intersecções entre essas esferas.

 

Considerando os setores econômicos hegemônicos, cadeias produtivas especializadas em recursos naturais e grupos econômicos montados na dívida pública e em seus derivativos desenfreados, ambos sempre dependeram da máxima plasticidade do Estado e da instrumentalidade de seus distintos aparatos. Tais segmentos empresariais-financeiros, derrotados ou não nas urnas, têm ditado a forma como o país vem atravessando a crise, intensificando processos de espoliação e segregação social.

 

Por isso, pior que a decisão do impeachment é sua sustentação perene que transforma máximas do fundamentalismo neoliberal (equilíbrio fiscal e estabilidade monetária) em bens públicos ou bens jurídicos. Juridifica-se, assim, a matriz econômica monetarista e fiscalista como se houvesse uma forma única de condução da política econômica.

 

O que a direita verdadeiramente teme não é o fantasma de Lula e do PT. Para que a burguesia brasileira e suas tutoras estrangeiras continuem a dormir tranquilas, já não basta garantir curva ascendente de extração de mais-valor, é preciso apresentar e ritualizar sacrifícios de força social organizada que possam porventura ameaçá-la. O que está sendo posto sob linha de tiro é a possibilidade de qualquer horizonte equalizador no Brasil. O clamor por algumas cabeças oculta uma revanche burguesa tardia contra conquistas populares iniciadas nos anos 80.

 

Contrarrevolução sem revolução logo vira operação de rolo-compressor sobre conflitualidades e alteridades potenciais. Na lógica da conversão de pilhagem e superexploração em competitividade nacional, propõe-se a descentralização de tudo que possa ser operacionalizável. Tal ordenamento do desmando dissolve qualquer pretensão de regulação dos processos de monopolização de setores e mercados. A onda fascista torna assim o golpe contra Dilma uma mera formalidade.

 

Todos os entreatos e anteatos já se puseram em marcha. No entanto, o ato em si, ou seja, o golpe realmente temido, não é o impeachment. Se o golpe menor agiliza e facilita o golpe maior, façamos o combate avançado contra as distintas conjunções golpistas, que não cessarão com o afastamento da presidente. De antemão sabe-se que não haverá “sustentação de massas” para uma plataforma de mitigação da agenda inimiga do tipo privatizações com menor alcance, juros menos altos ou cortes sociais menos profundos do que seriam em um governo de coalizão PMDB-PSDB.

 

Se ainda queremos que perdure uma democracia política capaz de entorpecer e modular a guerra de classes, não bastará derrotar o golpismo midiático-judicial-legislativo. É preciso submeter o centro do capital (e suas hordas adestradas) a um novo tipo de arena pública agregada. Arena esta fundada na mobilização e organização popular nos marcos de uma frente ampla contra a fórmula fiscalista de enfrentamento da crise e contra o aprofundamento das privatizações e da flexibilização de direitos.

 

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Luis Fernando Novoa Garzon é sociólogo, doutor em planejamento urbano e regional e professor da Universidade Federal de Rondônia.

E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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