Correio da Cidadania

Enfrentar a ofensiva fascista contra os jovens lutadores do povo pobre

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Nada como uma crise política para dissolver a aparente naturalidade de contradições que, em outro contexto, pareceriam tão naturais como o ato de respirar. E, com isto, ampliam-se os limites da política. Nestas poucas semanas que valem por décadas, ações inimagináveis ou, quando imagináveis, condenáveis, assumem centralidade, desafiam o possível, criam precedentes, tornam-se objeto de grande admiração popular e também de intenso ódio dos conservadores de todos os tipos.

 

Este ódio que, em todos os casos, merece repulsa, é socialmente seletivo.  Destaco, na presente conjuntura, quatro lutas desprovidas, em maior ou menor grau, de precedentes na história brasileira. Quatro ampliações dos limites da política.

 

A primeira delas, que já não é de hoje, mas alcança extraordinária importância, é a ocupação das escolas de ensino médio contra a “reorganização” e, em seguida, o “merendão”, ambos de responsabilidade do governo Alckmin. Os desdobramentos foram impressionantes. Secundaristas readquiriram o protagonismo que tiveram no pré-1964 e se colocaram na defesa da escola pública, o que já seria o suficiente para situar estes embates como históricos. Mas vão muito mais longe. Superam o caráter moralista e hipócrita do combate à corrupção, dotando-o de um conteúdo abertamente social: em ambos os casos, o governo do estado mais rico da federação desfere golpes contra a escola pública.

 

Ao invés de implorar a caridade e compreensão dos poderosos, estudantes ocuparam escolas e procuraram transformar as ocupações em atividades político-culturais, gerindo-as conforme os interesses de quem lá estuda. E foram às ruas de modo pacífico, mas combativo.

 

O governo reage com a habitual truculência com que trata a população pobre, mas a resposta é altiva e coletiva: estudantes não se intimidam e intensificam suas lutas. Recém-saídos da infância, desenvolvem a capacidade de discutir seus próprios problemas, a dureza que vivem, as opressões que sofrem dentro e fora dos muros da escola. Ampliam seu senso de auto-organização, sua capacidade de resistência, de lidar com os próprios medos. Enfrentam com dignidade policiais fortemente armados, iguais aos que semeiam o pânico nas periferias da grande São Paulo. O movimento se propaga por várias regiões do Brasil, mas, no momento, a tendência é de recuo, o que não significa derrota.

 

Outra luta inventiva e que ampliou as fronteiras do possível foi a ocupação da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo por estudantes da mesma faixa etária e inserção social. Aqui o ineditismo se manifesta pela duração (quatro dias) e a criatividade com que se portaram ao enfrentarem a truculência de deputados da extrema-direita, no conhecimento de importantes mazelas do mundo político institucional, escancarando os vínculos do parlamento estadual com velhas estruturas de dominação. Destaque-se a criativa paródia da votação da admissibilidade do impeachment (o chamado “show de horrores”) pela Câmara dos Deputados em 17 de abril de 2016.

 

O caráter mais organizado desta ocupação, bem como o fato de que se tratava de um único local, contribuiu para que os estudantes negociassem com os adversários e escolhessem o momento da saída, consolidando uma vitória parcial e mantendo-se ilesos para se engajarem em novas fases da luta. Demonstraram que, em política, escolher a hora de recuar já é uma grande vitória. Dias depois, esta foi coroada com a aprovação da CPI do Merendão, conquista sem precedentes nas duas últimas décadas de tucanato paulista.

 

Longe desta faixa etária, um grupo de mulheres parlamentares, nem todas de esquerda, expeliu da direção dos trabalhos o até então inexpugnável presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, gesto que ninguém tinha sequer imaginado. Sem “vossa excelência”, “data vênia” etc., novamente se desmascarou o cretinismo parlamentar e se revelou a séria limitação da representatividade de uma das piores câmaras dos deputados em ambos os períodos de democracia liberal de massas no Brasil (1945-1964; 1986 – 2016). Ironicamente, a foto das mulheres ocupando a mesa diretora da Câmara ficará na história dos grandes momentos da vida parlamentar brasileira.

 

Enfim – e não pretendo fazer um levantamento exaustivo - a marcha do Povo Sem Medo rumo à casa do golpista Michel Temer foi, nas últimas décadas, a maior expressão das lutas sociais urbanas no Brasil. Naquele final de tarde/início de noite, os golpistas e seus apoiadores tiveram sérias razões para se preocupar.

 

Cerca de 30 mil pessoas, na maioria semiproletárias, ocuparam com muita autoridade, vivacidade e – perdão - civilidade, um espaço aonde só chegam, cotidianamente, na condição de serviçais. Lembro-me de um jovem bem paramentado passar de bicicleta e, com toda aquela cultura que a direita tem esbanjado, vociferar palavrões contra os manifestantes. Estes limitaram-se a sorrir com ligeira indiferença, dedicando mais atenção aos que passavam de carro, a quem convidavam a aderir à caminhada. Muitos destes aprovavam a manifestação.

 

A poucos metros da casa do golpista, ocorreu intensa criatividade cultural. Uma imensa bandeira do Povo Sem Medo atapetou o asfalto e, no meio da multidão, ficou incólume como joia rara. As músicas, as falas, especialmente de uma mulher extraordinária que animava a ocupação daquele espaço, foram históricas.

 

Rumos

 

Como isso terminará ainda é imprevisível. Depende, por um lado, de como os golpistas resolverão suas contradições. Trata-se de um bloco de interesses bastante heterogêneo, que aglutina desde oportunistas acostumados a se aliarem com todos e com tudo, o que inclui burocratas sindicais, profissionais da politicagem, segmentos da alta classe média ligada ao grande desenvolvimento capitalista, empresários de comunicação e a grande finança nacional e estrangeira.

 

Esta impõe, desde 2012, uma contraofensiva implacável ao governo petista e não quer perder a oportunidade de efetuar uma rapina sem precedentes na economia nacional. Juntam-se a eles na investida antidemocrática, antinacional e antipopular segmentos da burguesia interna que, mesmo contrariados em seus próprios interesses, não apresentam qualquer disposição para resistir. Enfim, o interesse do imperialismo estadunidense é cada vez mais nítido nesta operação de desmonte dos governos latino-americanos de esquerda e centro-esquerda.

 

Por outro lado, embora a situação seja gravíssima, o Brasil é, sob diversos aspectos, distinto de Honduras e do Paraguai. Aqui se joga o jogo decisivo para a América do Sul (e Latina?) e também aqui está a sociedade mais complexa do subcontinente, na qual as formas de resistência se revelam muito mais diversificadas e, mesmo que pacíficas, contundentes.

 

Contradições do golpismo e miríade de resistências, com a admirável participação de segmentos ligados à produção cultural, contribuíram para deslegitimar a ofensiva ideológica da direita, a qual, vestida de amarelo e sob a batuta de Alckmin, Aécio, Bolsonaro, Lobão e MBL entoou o “somos milhões de Cunhas” e, esbanjando cultura do ódio, vociferou seu repertório de barbárie “contra a corrupção”, mas a favor de Aécio, Jucá, Cunha e similares.

 

Apesar de insuficiente, esta vitória ideológica, na qual se destacam diversas formas de lutas de mulheres, é fundamental para que se desmonte a ofensiva política golpista, o que exigirá muito mais luta, unidade e articulação das forças democráticas, inclusive das que não se manifestaram abertamente até agora, caso de grande parte dos sindicatos mais combativos.

 

Lutas de novo tipo

 

Das manifestações históricas aqui mencionadas, uma delas merece especial atenção, até porque, concordando-se ou não com as formas de luta que adotaram, apontaram mais longe no sentido da emancipação do povo trabalhador. É a de parcela da juventude que ocupou as escolas públicas, especialmente na grande São Paulo.

 

Neste segmento se condensa boa parte das contradições da sociedade brasileira: lá estão jovens, semiproletários(as), negros(as) e, principalmente, mulheres. É parte da população matável que se politizou a quente e entrou em confronto direto contra seus algozes imediatos. Não poucas vezes, os interpelaram contundentemente por horas e horas, lembrando as invasões de lares, prisões arbitrárias, estupros e assassinatos que estes praticam nos vários lugares da chamada periferia.

 

E não poucas vezes deslindaram os nexos entre estes atos de barbárie e as estruturas de poder mais profundas e bem menos visíveis. Suas únicas armas consistem na ousadia e a força moral. O exato oposto de seus agressores, aparatados para explícita operação militar contra uma parte de nosso povo.

 

Para os que comandam este aparato repressivo e os setores identificados com o ódio aos proletários e semiproletários que lutam, especialmente mulheres e negras, tais atos de “desobediência” são imperdoáveis e merecem punição exemplar. É por aí que se acalenta a sombria figura política do neofascismo, com tudo o que tem de criminosamente regressivo.

 

Cabe às forças democráticas evitar desatenções de outras épocas e lugares. Estes jovens merecem, por todos os meios possíveis, nossa ativa solidariedade prática. Alguns diriam que é porque são quase crianças e carecem de proteção. Aqui se destaca outro aspecto. É porque estão entre os lutadores e lutadoras mais valiosos. É porque as atitudes que assumiram fortalecem a perspectiva concreta de enfrentamento da barbárie e a construção de uma outra sociedade.

 

Bem mais fraterna. Mais livre para todos.

 

 

 

Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida é professor do Departamento de Política da PUC-SP.

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