Correio da Cidadania

Golpe ou golpes?

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Em conversa com um amigo por esses dias ele me perguntou: se o processo de impeachment de Dilma Rousseff ocorreu conforme as regras previstas na Constituição e nas normas infraconstitucionais, bem como sob a fiscalização do Supremo Tribunal Federal, qual a razão de tanto se falar em “golpe”? Respondi: a legalidade do procedimento não depende apenas da forma processual, mas também da substância, ou seja, dos fundamentos da imputação da prática de crime de responsabilidade para a presidente Dilma, os quais são absolutamente frágeis, e a sanção (perda do mandato) é totalmente desproporcional às infrações que teria cometido segundo a acusação.

 

A conversa seguiu e ele argumentou: mas existem vários juristas que afirmam ter ocorrido crime de responsabilidade, e em se tratando de uma questão controvertida, a última palavra não caberia ao Senado Federal? Na minha opinião, respondi, trata-se de uma falsa controvérsia, de uma “manobra” interpretativa para justificar uma decisão previamente tomada pelas oligarquias politicas e boa parte da elite econômica (a midiática e a financeira, em especial), qual seja: depor a presidente da República diante do inconformismo com o resultado das eleições de 2014.

 

Porém, mais do que isto, temos um problema de legitimidade: qual a autoridade política e moral de grande parte dos senadores (e deputados federais) que votou a favor do impeachment para condenar alguém com fundamento em irresponsabilidade fiscal, enquanto aprova normas que promovem esta mesma irresponsabilidade, inclusive em benefício de elites corporativas, e é investigada por práticas de corrupção, cujas evidências crescem a cada dia? Enfim, temos um enorme risco de instabilidade política com o precedente aberto pelo impeachment, pois futuros presidentes, governadores e prefeitos poderão se tornar reféns das chantagens de eventuais maiorias parlamentares corruptas ou fisiológicas.

 

Isso é verdade, conclui meu amigo, porém ele não desistiu do debate e apresentou um questionamento que pretendia ser definitivo em relação à minha crítica ao golpe: não foi Dilma Rousseff e o PT que escolherem Michel Temer como candidato a vice-presidente e fizeram alianças com essas oligarquias da política brasileira que você critica? Nisso você tem razão, reconheci, e aí está o erro de parte do discurso contra o golpe.

 

Em primeiro lugar, não me parece correto falar em um “golpe”, mas em “golpes”, pois o primeiro golpe foi dado por Dilma Rousseff e a cúpula do PT (digo a cúpula, pois o partido tem muitos militantes valorosos que não concordam e tentaram resistir aos caminhos por ele tomados):

 

1) em grande parte, após as eleições de 2014, adotaram o programa de seu adversário Aécio Neves (PSDB), contrariando o que prometeram em campanha e traindo as expectativas de seus eleitores;

 

2) aderiram aos “esquemas tradicionais” de financiamento de campanha, de conquista e manutenção do poder;

 

3) aliaram-se ao que há de pior na política brasileira, sob a justificativa de que isso seria necessário para promover as políticas sociais, renunciando à luta pela promoção de reformas estruturais (agrária, política, tributárias etc.);

 

4) e o pior, a distribuição fisiológica de ministérios e mesmo o “mensalão” e o “petrolão”, como as investigações têm demonstrado, foram fatores que ajudaram a nutrir o crescimento do denominado “centrão” da Câmara e do Senado, o qual acabou por se tornar um ator decisivo do “segundo golpe”.

 

Diante do que está dizendo, afirmou meu amigo, Dilma e o PT não são vítimas do golpe, mas corresponsáveis. Exato, respondi, aí está o segundo equívoco de parte do discurso contra o golpe: a verdadeira vítima do “segundo golpe” (o impeachment) é a democracia brasileira, e se não deixarmos isso claro nos movimentos de resistência não conseguiremos convencer a maioria da população a estar do nosso lado.

 

Com isso, pensei ter encerrado a conversa, mas este amigo que, assim como eu, gosta de um bom debate, insistiu: supondo que você tenha razão, em nome da estabilidade política, da retomada do crescimento econômico e da geração de emprego, não seria melhor darmos um “voto de confiança” para o governo de Michel Temer, trabalharmos e esperarmos pelas próximas eleições?

 

Impossível, respondi. Como confiar em um conspirador e traidor? O presidente Michel Temer não está apenas cumprindo seu “papel constitucional” de substituir a presidente da República em caso de impedimento – ele, Eduardo Cunha e seus outros aliados atuaram cotidianamente para conseguir os votos necessários para o impeachment, valendo-se de “instrumentos de convencimento” que você conhece bem. Portanto, não posso confiar em conspirador e traidor.

 

Mas há algo pior! Pior? Sim, há um terceiro golpe em curso, um golpe contra a Constituição de 1988, contra o ainda frágil Estado Social brasileiro, contra os mais pobres e excluídos que, em sua maioria, não foram às ruas nem para apoiar nem para resistir ao impeachment. As primeiras medidas desse golpe, se não estão no Congresso Nacional, já se encontram em gestação no governo ou mesmo em prática:

 

1) flexibilização de direitos trabalhistas, a qual deixará os trabalhadores, já ameaçados pelo desemprego, em situação de fragilidade ainda maior;

 

2) reforma previdenciária em prejuízo das mulheres, que costumam cumprir jornada dupla de trabalho, e dos mais pobres, que começam a trabalhar mais cedo e em atividades mais penosas;

 

3) limites de gastos com saúde, educação, cultura, ciência e restrição dos serviços prestados pelo Sistema Único de Saúde, por exemplo;

 

4) repressão autoritária e violenta às manifestações de oposição. Mas para que tudo isso? Para atender aos interesses das oligarquias que sempre dominaram o Estado brasileiro e, em especial, no contexto contemporâneo, das elites financeiras. Contra isso é que precisamos resistir e, é claro, gritar “fora Temer!”.

 

Vamos logo para a rua então, convidou meu amigo, só não sei exatamente o que fazer, ponderou. Eu também não tenho a resposta, mas há muitos movimentos se organizando pelo Brasil, vamos somar e descobrir juntos qual o caminho. Tenho apenas uma “suspeita” sobre a rota que deveríamos seguir: precisamos ocupar o espaço público, disputar a opinião pública e conquistar o apoio das maiores vítimas desses três golpes – os mais pobres e excluídos.

 

Para tanto, assim como outros que têm escrito sobre o tema, sugiro, por exemplo:

 

1) uma profunda autocrítica dos diversos segmentos da esquerda brasileira;

 

2) não gastarmos energia para tentar defender o indefensável e tomarmos partido das verdadeiras vítimas do golpe;

 

3) jamais recorrermos à violência – como princípio inafastável, ou a qualquer tipo de estratégia que penalize a população e possa reforçar o discurso dos golpistas;

 

4) assegurar o protagonismo dos jovens e dos movimentos sociais, pois são mais criativos, representativos das demandas da população e conectados com os processos sociais em curso, sem excluir os partidos políticos, os quais, todavia, devem estar na retaguarda, e não na vanguarda dos movimentos de resistência.

 

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Murilo Gaspardo é professor de Teoria do Estado da UNESP/Campus de Franca – SP. Doutor em Direito do Estado pela USP.

Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

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