A crise do Brasil capitalista é maior do que a “guinada à direita”
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- Osvaldo Coggiola
- 20/10/2016
Em agosto-setembro de 2016, tivemos o impeachment da presidente Dilma Rousseff, baseado em argumentos jurídicos e políticos que, se levados ao pé da letra e aplicados rigorosamente, derrubariam todos os governos estaduais do país (1). O chefão do Bank of America Merrill Lynch (BofA) não se fez de rogado para declarar no day after que o impeachment era só a primeira condição imposta ao Brasil pelo capital financeiro internacional: “o fluxo estrangeiro não virá imediatamente após o impeachment. Esse evento é apenas o primeiro ponto de um ‘check-list’ que deverá ser monitorado pelo estrangeiro e que inclui também a aprovação da PEC (241 - proposta de Emenda Constitucional) de gastos e a reforma da Previdência, entre outras reformas” (sic, grifo nosso (2)). Quem duvidasse que o Brasil continuava e continua, depois de décadas de “desenvolvimento”, antigo ou “neo”, uma semicolônia do imperialismo capitalista comandado pelos EUA, já teve suas dúvidas resolvidas.
Em outubro, como previsto, 144 milhões de eleitores foram convocados para eleger 5.570 prefeitos e mais de 57 mil vereadores dentre 463 mil candidatos à função. As abstenções e os votos brancos e nulos bateram todos os recordes precedentes. A muito propalada “grande guinada à direita” (crescimento dos candidatos eleitos do PSDB e do PSD, principalmente) que permitiu a eleição de candidatos como “Tião Peidão” (não sabemos qual minoria social ou política ele representa) e “Dr. Último” (candidato mais votado em sua cidade), foi simbolizada pela eleição em primeiro turno do candidato declaradamente “antipolítico” do partido tucano no maior município do país (São Paulo).
O PMDB permaneceu como o maior partido municipal com 7.570 vereadores, contra 5.371 do PSDB, 4.745 do PP e 4.639 do PSD, que cresceram mais que o partido-ônibus originado na ditadura militar, o qual mantém a hegemonia da política brasileira desde o fracasso das “Diretas Já” e a eleição indireta de Tancredo Neves (3). O PMDB, que ora controla o governo federal, além de uma colcha de retalhos de interesses corruptos e conflitantes entre si (4), caiu, no entanto, de 1.295 prefeituras governadas em 1996, para 933 em 2016. Para os mesmos anos, as cifras do “grande vencedor” tucano são de 921 e 709, respectivamente. O resultado politicamente significativo da eleição municipal foi a degringolada do PT, que caiu de 630 prefeituras governadas para apenas 256, ou seja, 4,2% dos prefeitos do país (contra 11,5% em 2012). A principal derrota do PT foi, claro, em São Paulo, onde concorria à reeleição. A “taxa de reeleição” do PT foi de só 39%, contra 53% do PSDB. O número de candidatos do PT ficou reduzido praticamente à metade.
Compreender o absenteísmo
O PSOL não foi beneficiário do declínio abrupto do PT, consideradas as cifras nacionais, embora conquistasse resultados significativos, como a passagem para o segundo turno em duas capitais, Rio de Janeiro e Belém, com 18% e 29% dos votos, com uma provável vitória no segundo turno da capital paraense. Resultados que não dissimularam seus relativos fracassos em Porto Alegre (Luciana Genro, cotada inicialmente para chegar ao segundo turno) e São Paulo (Luiza Erundina, que mal superou 3%); em Natal, no entanto, seu candidato quase atingiu 10% dos sufrágios. Se ganhar em todos os segundos turnos aos quais chegou, o PSOL passaria a dirigir cinco prefeituras. Sua votação caiu, entre o primeiro turno de 2012 e o primeiro turno de 2016, de 2,38 milhões para 2,09 milhões de votos. A reconfiguração da esquerda brasileira não consistirá na substituição eleitoral do PT pelo PSOL.
Os partidos “mais à esquerda” (uma definição discutível) não conseguiram superar, até acentuaram, sua situação de marginalidade política, se apresentando em poucas cidades nas quais não chegaram a obter 0,1% dos votos, com a única exceção do PSTU, que obteve pouco mais de 5% em uma capital nordestina. Na véspera da eleição, o partido, que hegemoniza a direção da Conlutas, sofreu a cisão de aproximadamente 40% de sua militância que criou o MAIS, partidário de uma aliança com o PSOL e contrário à política levada adiante pela direção do PSTU durante o processo golpista, cisão que afetou o já minguado desempenho eleitoral do partido.
Os resultados eleitorais são, portanto, muito precariamente “direitistas”. Uma enquete conduzida com critérios e métodos rigorosos estabeleceu que “a redução da votação em candidaturas de partidos à esquerda auxilia a compreender de onde tem saído uma parte substantiva dos eleitores que optaram por não contribuir com a eleição de qualquer candidatura. Ao que parece, o crescimento do alheamento eleitoral tem afetado de forma fulminante a votação obtida por partidos à esquerda. Ou seja, os votos anteriormente captados por um partido como o PT não estão sendo convertidos, ou estão sendo convertidos numa taxa muito baixa, para outras vertentes políticas ideologicamente próximas”.
Em Rio de Janeiro e São Paulo, “o não comparecimento às eleições tem contornos muito mais característicos de um voto de protesto do que algumas vertentes da ciência política recorrentemente enfatizam. Não são apenas erros. Não se pode descartar a hipótese de que uma parte substantiva do alheamento decorre de ações profundamente deliberadas. E mais, essas ações têm perfil, e não se trata de um perfil à direita”.
Os votos brancos e nulos passaram de 6% em Rio de Janeiro e São Paulo, na primeira eleição sob o governo petista (em 2004) para 14% e 13%, respectivamente, na primeira eleição depois do impeachment. Somadas as abstenções, eles passaram de 23-24% para 35-38% no mesmo intervalo de tempo, um recorde histórico. Trocando em miúdos (ou em números): em torno de 50% do eleitorado do PT, e provavelmente até 15% do eleitorado do PSOL, optou pela abstenção ou o voto branco ou nulo, e isto de maneira “profundamente deliberada”. Este é um dos dados principais a ser levados em conta nas propostas circulantes de “reconstrução da esquerda”, para a qual não faltam gurus de todas as cores “progressistas”. É no mínimo superficial e impressionista estabelecer uma conexão direta e sem contradições entre as atitudes estudantis referidas à presença da PM na USP, em 2011, e a eleição de João Dória em 2015, devido a um suposto “aburguesamento” das “classes populares” (5).
O tamanho da crise econômica
O outro aspecto principal para a tarefa de recomposição da esquerda é o da análise da natureza e profundidade da crise econômica do país (da qual decorre a crise política, e não o contrário, como tenta fazer crer a burguesia cabocla), crise geralmente desconsiderada ou considerada politicamente secundária por aqueles que consideram que a esquerda tem uma apenas função ideológica dentro da valsa das ideologias necessária ao bom funcionamento da democracia, sem especificar que tipo de democracia, ou democracia de que classe, se trata.
De modo óbvio e autoiludido, o governo Temer e a classe capitalista em seu conjunto interpretaram o resultado eleitoral municipal como o enterro do “discurso (ou tese) do golpe” e do “Fora Temer”, que animou importantes manifestações de rua na véspera do pleito. O governo lançou (e aprovou comodamente na Câmara, com 366 votos contra 111) a PEC 241, que visa à destruição de todas as conquistas e direitos sociais do país como meio (também ilusório) para sair da crise econômica. É politicamente limitado (portanto, também limitadamente errado) afirmar que “a regra garante por meio de uma alteração na Constituição que, independente de quanto se arrecadar, o debate econômico e o conflito distributivo sobre o orçamento público fiquem restritos por vinte anos a uma disputa sobre um total já reduzido de despesas primárias, onde os que detêm maior poder econômico e político saem vencedores”, como fez a economista uspiana Laura Carvalho.
A PEC é só o Cavalo de Tróia das reformas trabalhista e previdenciária, destinadas estas a provocar, a primeira, uma queda histórica do valor da força de trabalho, e a segunda a pôr sob o controle e exploração privada o “salário indireto” recebido pelo trabalhador ao longo de uma vida, reformas sem as quais a PEC não passará de uma folha de parreira (ou de papel higiênico), como se encarregaram de enfatizar os editores dos principais meios de comunicação (patronais).
Uma PEC, por outro lado, que não pode ser desvinculada da reforma política que visa eliminar boa parte dos partidos políticos (visando principalmente à esquerda) sob o pretexto de sua multiplicação (35 atualmente, contra 27 em 2008) e da acentuação da repressão social, com a anunciada declaração do “estado de emergência” (policial e militar) em várias capitais e até no país todo, sem falar na abertura do filé mignon da economia nacional ao capital financeiro multinacional. Devido a isso, e à própria crise econômica e política, é um erro limitar as perspectivas políticas futuras imediatas a uma “resistência” (ou limitação) da ofensiva “econômica” antioperária e antipopular do governo, como estão fazendo as centrais sindicais, inclusive a própria Conlutas, que fez “um chamado à construção de uma mobilização unitária e de uma greve geral contra as reformas da Previdência e Trabalhista, a Proposta de Emenda à Constituição 241/2016, que está em trâmite no Congresso Nacional, e o Projeto de Lei da Câmara 54/2016 (ex-PLP 257/2016)”.
Era da pilhagem
O chamado à luta unitária (inclusive a centrais que já estão negociando com o governo a reforma trabalhista) não pode substituir a proposta e a agitação política. Como mostraram as mais importantes mobilizações recentes, é o combate político contra o governo (na perspectiva da luta pela greve política de massas) o único capaz de organizar a luta contra as medidas institucionais de Temer e consortes, PECs e PLs incluídos. O próprio governo sabe disso, sua tática consiste em garantir uma maioria política para suas medidas econômicas e sociais, sem a qual todas suas leis e emendas constitucionais não sairão do papel (6), uma tarefa política que está longe de concluída: “derrotas importantes nessas duas frentes ditarão o fim precoce de seu mandato, tornando-o refém de uma base governista de múltiplos interesses. A mesma que apoiou Dilma e a abandonou” (7). A Procuradoria Geral da República já solicitou ao Congresso Nacional o arquivamento da PEC 241, argumentando sua (óbvia) inconstitucionalidade.
A PEC, como se sabe, determina a estagnação das despesas primárias no orçamento federal por vinte anos: elas só poderão ser reajustadas de acordo com o IPCA (um índice inflacionário perfeitamente manipulável, como o demonstrou recentemente o caso da Argentina), independentemente da trajetória do PIB e, sobretudo, das necessidades sociais. O atual mínimo constitucional é fixado pela PEC como teto. O Dieese simulou as consequências das regras propostas pelo governo federal caso elas tivessem sido implementadas nas áreas de educação e saúde desde 2003. O resultado revelou uma drástica redução de recursos aplicados em educação, na ordem de 47%, no período de 2003 a 2015. Já em relação às despesas com saúde, a redução seria de 27%.
Em valores reais, isso significaria R$ 377,7 bilhões e R$ 295,9 bilhões a menos investidos nessas áreas, respectivamente. De acordo com Laura Carvalho, com a aprovação da PEC 241/16, se o PIB brasileiro crescer nos próximos vinte anos no ritmo dos anos 1980 e 1990, passaríamos de um percentual de gastos públicos em relação ao PIB da ordem de 40% para 25%, patamar semelhante ao verificado em Burkina Faso ou no Afeganistão. E, se crescêssemos às taxas mais altas que vigoraram nos anos 2000, o percentual seria ainda menor, da ordem de 19%, “o que nos aproximaria de países como o Camboja e Camarões”. A PEC, sendo implementada a partir de 2017 e considerando vinte anos à frente, aponta perdas entre 654 bilhões e 1 trilhão de reais, nos gastos em saúde, dependendo do comportamento das variáveis PIB e RCL (8).
Salomão Barros Ximenes qualificou, sem exagerar, a PEC 241 como um ataque à própria civilização no nosso país (9). Para que? A aprovação da PEC “seria apenas a garantia de sobrevida em um tratamento longo e incerto... Caso aprove o teto, o governo tem mais chance de sobreviver, não necessariamente de dar certo” (10). Para isto, se apela para um recurso de exceção, transformando o Brasil “no único país que trata da questão dos gastos públicos mediante emenda na Constituição e por um período tão longo”. O mesmo colunista pôs o dedo na ferida ao apontar “o extraordinário custo de financiamento da dívida pública, que tem representado cerca de R$ 500 bilhões ao ano (2015) e para o qual não há qualquer limitação. Apenas a crença de que, com a aprovação da PEC 241, eles serão naturalmente reduzidos” (11), uma expectativa sem fundamentos. Foi apontado que “a diferença entre o limite da despesa autorizada pela PEC 241 para 2017 e aquela que está na proposta orçamentária para o próximo ano não vai ultrapassar R$ 10 bilhões, muito pouco” (12).
A PEC não resolve nada do ponto de vista capitalista, é apenas um instrumento político que precisa de outros: “os economistas que fazem as contas no detalhe sabem que o teto precisa de parede, chão e tubulação para a casa não cair. Esses estudos estão vindo de todos os lados e não somente da oposição. É só ver o que aconteceu no IPEA, onde a presidência do órgão enquadrou a pesquisadora Fabiola Vieira que divulgou estudo contrário à PEC.
Os números incomodam. A avaliação de muitos economistas é de que a quantidade de reformas necessárias para adequar o crescimento corrente da despesa ao proposto pela PEC é enorme. É o caso de estudo de outro pesquisador do IPEA, Manoel Pires, que fez simulações mostrando que o orçamento pode implodir, com investimentos públicos caindo até chegarem a zero” (13).
Pelo mesmo artigo ficamos sabendo que “as simulações feitas até 2021 mostram que os principais itens de despesas obrigatórias continuarão crescendo muito acima do limite do gasto. Nesse caso, elas deverão passar por uma redução significativa de R$ 87 bilhões. Mesmo com os efeitos de quatro reformas rigorosas, os resultados indicam que ainda haveria queda nominal de R$ 14 bilhões”. Ou seja, para evitar um massacre social, afetando o salário, o emprego e a previdência social, o pagamento dos juros e do principal da dívida pública com o grande capital financeiro deve cessar de imediato: eis o primeiro ponto de um programa para a “reconstrução da esquerda”.
O papel do sindicalismo classista e da esquerda (a que deveria ser “reconstruída” ou “reprogramada”, segundo todo mundo afirma) consiste em opor sua própria política independente e de classe a essa política. O governo Temer pretende enterrar a questão (reforma) agrária entregando quase 754 mil títulos de terras (87.497 em 2016, 356.432 em 2017, 309.014 em 2018), suspendendo todas as desapropriações de latifúndios (improdutivos inclusive) e retirando o MST de toda atuação na reforma agrária (seleção de famílias beneficiárias de lotes, organização dos assentamentos): “com a interrupção da criação de novos assentamentos e com a atribuição às prefeituras da competência de identificar as famílias que devem receber o título de propriedade, a nova política fundiária limita seriamente o poder dos movimentos sociais, em especial do MST” (14).
Com o grande latifúndio capitalista baseado nas culturas transgênicas preservado, com o movimento camponês e popular esvaziado, a volta do processo de concentração e especulação agrária contra camponeses carentes de capital próprio será inevitável. O caminho para este desfecho foi preparado pelos governos petistas, que praticamente suspenderam a reforma agrária para agradar o agronegócio. O governo Dilma entregou, entre 2011 e 2015... 4.926 títulos de terra, quando finalmente o TCU determinou a paralisação do programa de reforma agrária do Incra.
A entrega do patrimônio nacional se acentuou com a aprovação do PL que desobriga a Petrobras de liderar todas as operações na exploração da camada do pré-sal (pela legislação precedente, a Petrobras atuava como operadora única dos campos do pré-sal, com uma participação mínima de 30% nos consórcios). As companhias multinacionais já estão apresentando ao Congresso novas mudanças na Lei de Partilha, acabando com a definição do polígono do pré-sal do litoral brasileiro. O governo brasileiro pode deixar de arrecadar até R$ 331,3 bilhões em 35 anos com o leilão do pré-sal, segundo Ildo Sauer, ex-diretor de Gás e Energia da Petrobras no governo Lula. Sauer e o advogado Fábio Konder Comparato protocolaram na Justiça Federal, em São Paulo, ação popular pedindo a suspensão do primeiro leilão do pré-sal brasileiro, do campo de Libra. Para manter-se capitalista, o Brasil renuncia a atributos básicos da soberania nacional.
O caminho para a saída capitalista da crise está pavimentado pelo monstruoso crescimento do desemprego e a configuração de um monumental exército industrial (ou de serviços) de reserva. Aos 11,6 milhões de desempregados calculados no período de abril a junho passado somaram-se agora, com novas informações, 4,8 milhões de subocupados por insuficiência de horas de trabalho. Chega-se com isso a uma taxa combinada de 16% da População Economicamente Ativa (PEA), correspondente a 16,4 milhões de pessoas desempregadas e subempregadas, em níveis cada vez piores de miséria social.
Nesse quadro de catástrofe social, “nasceram muitas categorias novas que não têm propriamente experiência ou tradição sindical. O telemarketing no Brasil, que hoje tem mais de um milhão de pessoas, é muito amplo e há burla enorme porque a terceirização é ilimitada. A desregulamentação é completa, como também ocorre na indústria do têxtil em São Paulo, onde um contingente de trabalhadores latino-americanos e haitianos entra no processo de trabalho em condições marcadas pela informalidade, pela terceirização, pela ausência de direitos, pela precarização ilimitada. Em alguns casos chega a configurar trabalho escravo para grandes transnacionais” (15). A decomposição social resultante é funcional ao incremento da repressão social, que toma como pretexto o incremento da insegurança.
Que esquerda?
A tentativa de sair da crise da esquerda pela via de combinações eleitoreiras de curto (ou nenhum) fôlego é geral. A direção do PT (Lula e Dilma incluídos) acena com uma frente parlamentar de oposição, cedendo ao PDT sua liderança, com vistas às eleições presidenciais de 2018 para as quais se esboça uma frente com uma candidatura extrapartidária (Ciro Gomes), favorecida pelo indiciamento criminal de Lula na Operação Lava Jato (que o inabilitaria eleitoralmente), e sem nenhuma perspectiva de luta de classes. Outros setores de esquerda, no PT ou fora dele, apresentam variantes mais à esquerda de políticas de cunho semelhante, incluídas as propostas de “frente de esquerda”, que todos aceitam e nunca se realiza, pois patina em definir previamente onde se situa a fronteira do que se define como esquerda, mas não a partir de critérios de classe e de um programa de combate.
Um conceituado Professor Emérito da USP lançou, desde as páginas de Piauí, uma proposta de “reconstrução da esquerda”, claramente apoiada na janela aberta pela degringolada político-eleitoral do PT. Ruy Fausto define três “desvios” básicos da esquerda brasileira: o totalitarismo (originalmente stalinista, depois reproduzido por suas variantes “nacionais”), o “adesismo” (que o autor sintetiza no “cardosismo”, em referência a FHC) e, finalmente, o “populismo” (varguista no passado, chavista e assemelhados no presente). Isto, obviamente, abrangeria 99% da “esquerda realmente existente”, com exclusão dos trotskistas, que também estariam contaminados em graus variados pelas três doenças citadas. E cada um, claro, poderia tirar ou acrescentar aos “desvios” elencados seus próprios desvios mais odiados, o que não nos levaria longe, pois toda reconstrução da esquerda só poderia partir da afirmação do que a esquerda deveria ser, não daquilo que não deveria ser, pois a lista seria provavelmente interminável.
A tarefa não seria simples, pois, para Fausto, implicaria em “dissociar o projeto da esquerda da maioria dos projetos e políticas que se apresentaram como representativos dela, nos últimos 100 anos, na forma de práticas de Estado ou de partido, ou mesmo enquanto corpo de ideias... O ponto de partida de um eventual trabalho de reconstrução tem de ser a consciência de que vivemos no último século, por diferentes razões e sob diferentes formas, em algo assim como um período de alienação radical do projeto de esquerda em relação ao que ela representou na sua origem... Trata-se de combater infecções de ideias que prejudicam o movimento”.
Poder-se-ia comentar que soa pretensioso superar, a partir do Brasil (um país de fortes tradições messiânicas), um século de erros mundiais da esquerda. O mundo curvar-se ia, novamente (e, desta vez, hegelianamente) diante do Brasil. Não teria importância: a colocação tem o mérito de colocar (independentemente de suas próprias conclusões) a questão do balanço e do futuro da esquerda no Brasil num patamar histórico e internacional. Poder-se-ia afirmar, nesse plano, que a principal “alienação” da esquerda foi a de ter abandonado sua principal matriz programática: a perspectiva histórica de que as leis tendenciais do capitalismo levam-no em direção da sua autodissolução e da criação de situações revolucionárias, para as quais não existe saída progressiva (socialista) sem a intervenção e estruturação revolucionária da classe operária, baseadas num programa.
Esse debate e essa alternativa estão abertos, objetivamente, pela crise econômica, social e política do Brasil, e percorre todas as correntes políticas da esquerda e todos os movimentos sociais e sindicais. Falta abri-las também subjetivamente, isto é, politicamente.
Notas:
1) Manutenção de operações de crédito (“pedaladas fiscais”) de 2014 em 2015, com atrasos nos repasses obrigatórios ao Banco de Brasil e ao BNDES; omissão de passivos no BB, na Caixa Econômica Federal, no BNDES e no FGTS, nas estatísticas da dívida pública de 2015; abertura de créditos suplementares por meio de decretos não numerados e incompatíveis com a meta de resultado primário das contas públicas.
2) Valor Econômico, 1º de setembro de 2016.
3) “Descartada a presidente, voltam ao maço da política brasileira as 52 cartas de sempre. Curingas presidenciais como Dilma Rousseff e Fernando Collor não chegam a se misturar nesse baralho. Quem dá as cartas foi e é o PMDB” (José Roberto de Toledo. O crupiê do poder, O Estado de S. Paulo, 1º de setembro de 2016).
4) Temer, que declarou sua intenção de desaparelhar o governo federal, demitiu (entre junho e julho passados) 5.500 cargos federais comissionados (supostamente “petistas”) e contratou... 7.200 (para satisfazer os apetites dos caciques do PMDB e aliados).
5) Mauro Paulino e Alessandro Janoni. A eleição de 2016 começou em 2011, Folha de S. Paulo, 9 de outubro de 2016: “as diferentes tendências, mesmo dentro de um microuniverso restrito, já carregavam no discurso os marcadores de opinião pública que dominariam os protestos de 2013, as eleições presidenciais de 2014, as manifestações de 2015, o impeachment de Dilma Rousseff e a eleição inédita de um candidato antipolítico no primeiro turno da eleição de 2016”. Isto porque os alunos abastados favoráveis à presença da PM na USP em 2011 seriam os mesmos que encabeçaram as manifestações de 2013 contra os aumentos de tarifas de transporte, o que é obviamente contrário à verdade, como testemunharam todos aqueles que aí estiveram presentes, inclusive este que aqui escreve.
6) Ou virarão uma catástrofe: “se o teto (de gastos) passar, mas os outros ajustes não passarem, o teto terá sido um erro indiscutível. Não teremos desarmado a bomba fiscal, só nos deslocado com ela para um recinto menor... A Previdência vai comer um pedaço cada vez maior do bolo que ficará do mesmo tamanho por vinte anos... Uma hora todo o gasto público será com aposentadorias” (Celso Rocha de Barros. A política da PEC 241, Folha de S. Paulo, 10 de outubro de 2016). Onde ficarão os imprevisíveis juros da dívida pública? É o que o articulista não ousa perguntar. O governo já prepara a prorrogação até 2036 da DRU (Desvinculação de Receitas da União) que permite remanejar livremente 30% das receitas vinculadas pela Constituição: miséria previdenciária e garantias ao grande capital financeiro vão de mãos dadas.
7) Valor Econômico, 1º de setembro de 2016.
8) Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz). Carta sobre PEC 241 e os impactos sobre direitos sociais, a saúde e a vida, 30 de setembro de 2016; segundo a qual, a PEC “implicaria em danos significativos à saúde e à vida das pessoas”.
9) Salomão Barros Ximenes. O ajuste fiscal e a vontade de quebrar o mastro civilizacional, Folha de S. Paulo, 18 de setembro de 2016.
10) Vinicius Torres Freire. Temer, esquerda e direita no brejo, Folha de S. Paulo, 9 de outubro de 2016.
11) Antônio Correa de Lacerda. PEC 241, autoengano e a economia do lar, O Estado de S. Paulo, 15 de outubro de 2016.
12) Ribamar Oliveira. Como gastar o dinheiro da repatriação, Valor Econômico, 6 de outubro de 2016. Segundo outro colunista, “é um mistério quanto vão crescer as receitas federais. O governo acredita que crescerão mais do que a economia, do que o PIB, o qual, estima-se, deve aumentar perto de 1,5% em 2017. Mesmo que tudo dê certo, é pouco” (Folha de S. Paulo, 5 de outubro de 2016).
13) Adriana Fernandes. Depois do teto, O Estado de S. Paulo, 15 de outubro de 2016.
14) Reforma da reforma agrária, O Estado de S. Paulo, 15 de outubro de 2016.
15) Ricardo Antunes. “Temer é capaz de regredir lei trabalhista à época da escravidão”, Informandes nº 62, setembro de 2016.
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Osvaldo Coggiola é historiador.