Correio da Cidadania

Brasil: ainda estão rolando os dados

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Assim que as urnas se fecharam, neste domingo, começou uma operação político-midiática para afirmar que uma página da história do país foi virada. A ampla vitória de candidatos ligados ao governo, na maior parte dos municípios, significaria que já não se pode falar em golpe. Os eleitores teriam confirmado, nas urnas, sua adesão a uma maré liberal-conservadora. Ela é expressa nas importantes vitórias do PSDB e na emergência de figuras como o pastor Crivella, da Igreja Universal. Após as eleições – e aqui está o pulo do gato — deveríamos aceitar como inevitáveis as contrarreformas propostas pelo governo Temer e o empresariado: PEC 241 (PEC 55 no Senado). Redução dos direitos previdenciários. Ataque à legislação trabalhista. Todo este raciocínio é manco e interesseiro.

 

De que a esquerda institucional está abalada, não há dúvidas. De que será preciso um longo e árduo trabalho de construção de novo pensamento pós-capitalista, também não. A ele nos dedicaremos, com empenho e criatividade, nos próximos anos. Mas por trás da narrativa que desenha uma irresistível onda conservadora há um truque banal. Trata-se de encerrar o jogo quando o placar está favorável ao narrador – mas a partida está apenas começando.

 

Dois fatos principais permitem uma interpretação alternativa. Primeiro: a ilegitimidade do sistema político – este mesmo que quer fazer as contrarreformas. Já não se trata apenas de teoria, mas de fatos reais e chocantes. Na semana passada, foi selado, com a Operação Lava Jato, o acordo de delação premiada da Odebrecht.

 

Dezenas de executivos da construtora irão depor. As planilhas de doações ilegais da empresa, reveladas há meses, sugerem que centenas de deputados e senadores – estes mesmos, que querem votar as contrarreformas – foram corrompidos. As primeiras pílulas já provocaram grandes estrondos. O ministro José Serra é acusado de receber propina de R$ 23 milhões, na Suíça. Se o processo for adiante, teremos, em poucos meses, um terremoto político. O Congresso Nacional estará em xeque. Como deputados e senadores acusados de corrupção, e que gozam de privilégios previdenciários escandalosos, poderão obrigar as professoras a trabalhar mais dez anos, antes de se aposentar?

 

O segundo fato essencial é: quem triunfou nas eleições não foram as ideias liberais ou conservadoras. Foi a rejeição à velha política. É um fenômeno que varre todo o mundo ocidental, embaralha o jogo político e produz efeitos antes não imaginados: o Brexit e Donald Trump, à direita; mas também o Podemos e Jeremy Corbyn, à esquerda. No Brasil, o PT, que esteve no governo central por treze anos, é a bola da vez. Mas repare como não há sedimentação ideológica no voto. Os dois principais expoentes do PSDB – José Serra e Aécio Neves – foram derrotados. Alckmin ganhou, precisamente porque faz um governo invisível em São Paulo. Mas cresceu também o PDT de Ciro Gomes, que hoje defende um programa claramente à esquerda.

 

A questão central é: a narrativa que alardeia a suposta consolidação do pensamento liberal-conservador não tem apenas objetivos de convencimento ideológico. Ela persegue duas metas muito concretas. Primeiro, implica aprovar, no Congresso Nacional, leis de anistia aos políticos que estão condenados na delação da Odebrecht, por terem recebido propinas da empreiteira. O caminho para esta anistia está claro: uma nova lei que restabeleça o financiamento dos partidos pelas empresas; e que proíba o caixa dois, mas livre todos aqueles que se beneficiaram dele até agora. Esta lei já tramita no Congresso, onde os corruptos têm maioria. Se aprovada, significará fechar a Lava Jato, agora que a esquerda foi punida.

 

O segundo objetivo – e ainda mais importante – é sepultar as lutas em curso. É dizer, por exemplo, ao contrário de todas as evidências, que os secundaristas foram derrotados nas eleições de ontem, que a população está contra eles. É dizer que as eleições pedem uma espécie de “choque de ordem”, para reprimir aqueles que lutam por direitos.

 

Ao tentar encerrar o jogo, quando ele está apenas começando, a operação político-midiática deflagrada ontem pretende promover uma espécie de novo golpe. Agora, está em jogo algo muito maior. Não se trata de encerar o mandato de uma presidente, mas de frustrar, por décadas, o debate sobre que projeto de país defendemos.

 

Este debate, tudo indica, terá de ser feito por uma esquerda que ainda é preciso construir. Mas para construí-la, há um passo inicial. Implica rejeitar, como falso, o discurso de que o projeto conservador está consolidado.

 

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Antonio Martins é jornalista e editor-chefe do Outras Palavras, onde o artigo foi originalmente publicado.

 

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