Correio da Cidadania

MST, patrulhamento ideológico e criminalização secundária

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A aplicação, pela Justiça de Goiás, da lei do crime organizado, com redação modificada pela lei antiterrorismo, para integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em maio (1), revela a visão de que pessoas reunidas e articuladas são, em princípio, perigosas. O poder detesta gente organizada quando seja para contestar o que ele, poder, classifica como “a ordem”.

 

Essa ordem resulta de um determinado arranjo que regula as relações entre as pessoas e entre estas e as instituições. Para formalizar o arranjo, e na sua sequência, vem um conjunto de normas, chamadas genericamente “direito”, postas em vigor conforme um procedimento legal e que possuem a característica de, se descumpridas, logo surgir o braço repressor do Estado para executá-las e ainda sancionar os possíveis infratores.

 

Origens de nosso ordenamento

 

Não é possível, em sã consciência, negar que esse arranjo de sociedade é, lá no fundo, desenhado por um certo estágio do que se pode chamar de forças produtivas. Esta expressão significa a somatória de recursos naturais e tecnológicos, conhecimento humano e outras coisas que a ciência vai desenvolvendo e possibilitam a produção de bens em volumes e variedades cada vez maiores, que depois serão vendidos no mercado. O arranjo social aqui falado decorre quase automaticamente da evolução dessas forças produtivas. Isto é científico, como a lei da gravidade ou a redondeza da Terra. Ou seja, o arranjo é exatamente aquele que combina com o ponto em que tais forças se encontram em tal ou qual momento da história.

 

Portanto, num arranjo em que as terras do país são objeto de apropriação por muito poucos, e que são elas, as terras, a fonte primeira de abastecimento de recursos naturais que serão depois transformados pelas indústrias, é claro que as normas aí vigentes serão elaboradas de uma forma que garanta a tranquilidade de quem as possui, para delas fazer o que bem entender. Vale o mesmo para a atividade industrial, que é a segunda ação aplicada à matéria prima (a primeira é a sua extração), a transformá-la, considerando que as indústrias também constituem propriedade de alguns indivíduos, para assim auferirem lucros.

 

Mas esse direito não se resume aos textos das normas. Como elas devem ser aplicadas na prática, é preciso que alguém as interprete e decida pela sua adequação, ou não, à determinada situação ou pessoas. Quando se trata de normas que estabelecem penas, quem interpreta e decide a sua aplicação geralmente é, em primeiro lugar, a polícia, depois outras instituições e poderes do Estado, como o Ministério Público, o Judiciário e, em certa medida, o Legislativo e o Executivo. A aplicação concreta das normas penais às pessoas é chamada de criminalização secundária. Secundária porque a criminalização primária é a própria criação das normas.

 

A interpretação de normas, ao contrário do que pode parecer, não é coisa fácil. Quase nunca “a regra é clara”, como diria Arnaldo César Coelho. E aí está o xis da questão. Os intérpretes da norma são pessoas, ou grupos de pessoas, educadas com a cultura jurídica criada para dar segurança àquele arranjo social já comentado.

 

Acreditam que essa “ordem” está correta e é a melhor possível. Que é natural que seja assim e as pessoas “normais” serão felizes. Que aqueles que se afastam da “ordem” são doentes, ou então seres diferentes, que, por estupidez ou maldade, não aceitam “a ordem”. Que em relação a estes a única coisa a fazer é “educá-los” por meio da repressão, já que não se convencem de outra maneira. E é claro que jamais se colocam na posição desse outro: não se sentem como “um deles”.

 

Muitos desses intérpretes do direito são sinceros, enxergam o mundo de acordo com o que aprenderam na vida, onde os agentes educadores foram a família, a escola, a TV e o ambiente de trabalho, todos eles por sua vez também educados conforme a conveniência do tal arranjo social. Essa maneira de “ver o mundo” e, consequentemente, de interpretar as normas, é chamada de ideologia. É claro que ela é moldada de acordo com os interesses do arranjo e tem a finalidade de levar todos a acreditar nas suas vantagens e na sua justiça.

 

O espírito das leis

 

Assim, se os intérpretes e os aplicadores das normas já antecipadamente “pensam de um jeito”, é muito provável que irão fazer a sua interpretação e aplicação conforme o que pensam. Se aprenderam que gente organizada contestando “a ordem” é um bando de criminosos, doentes ou estúpidos, vão naturalmente decidir que tal ou qual lei penal, dentre todas a mais dura, deve ser aplicada a eles, pois isto será um ato de defesa da “sociedade pacata” (leia-se, do famoso arranjo) e de aprendizado para quem não compreende como as coisas devem ser. Tudo ainda se acentua porque esse intérprete, como dito, não é capaz de se ver na pessoa que ele considera infrator. O infrator é “o outro”, quase um ET. O intérprete, que está “do lado de cá”, chega a ter medo dele e por isso o rejeita e odeia.

 

O intérprete, assim imerso na ideologia, costuma policiar, ou patrulhar, quem vê as coisas de modo diferente. E também patrulha os que, por não se saírem bem na distribuição proporcionada pelo arranjo social, contestam “a ordem” e, organizados, se põem em movimento para obter o que entendem lhes ser devido.

 

Ora, se ele patrulha e tem à mão uma lei para interpretar, é natural que vá entender que a norma penal deve ser aplicada ao contestador, assim tornado delinquente, criminoso, malfeitor. E se existe uma lei específica, tratando de indivíduos que se organizam em associação para cometer crimes, esse intérprete patrulheiro vai achar, com toda certeza, que ela é aplicável ao caso dos que, por exemplo, ocupam uma área de terra reivindicando o seu direito de trabalhar nela, embora não possuam a escritura de propriedade. Nem importa que a lei do crime organizado tenha sido elaborada com um objetivo muito diferente. No saco da repressão cabem igualmente traficantes, ladrões e trabalhadores reivindicando terra. Todos são “o outro”. Temíveis e incapazes de aprender por bem.

 

O uso equivocado da lei das organizações criminosas ao MST é apenas um exemplo de como a criminalização secundária apanha preferencialmente aqueles que contestam a estrutura nervosa do arranjo social, nesse caso o direito de propriedade privada da terra. O intérprete, ideologicamente educado e habituado a patrulhar em prol da “ordem”, só vê à sua frente a presença de criminosos organizados confrontando o que ele aprendeu a entender como certo. Tal ideia obscurece qualquer outra e interdita todo questionamento, mesmo aquele oriundo de uma elementar e quase óbvia hermenêutica, que impõe a análise do espírito da lei como condição da sua adequada interpretação. E tome pau nos mesmos de sempre. Dado pela borduna dos mesmos de sempre.

 

Nota:

 

“Com base na Lei 12.850 que tipifica organizações criminosas, a Justiça em Goiás mandou prender quatro militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ... É a primeira vez que a Justiça aceita denúncia do Ministério Público contra lideranças sociais com base na lei de 2013 sobre organizações criminosas, especialmente no artigo 2.º, que contou com a redação da Lei 13.260, a lei antiterrorismo, que começou a vigorar dias antes da prisão dos sem-terra”. Disponível em http://atarde.uol.com.br/politica/noticias/1791471-justica-usa-legislacao-antiterrorismo-para-prender-sem-terra (acessado em 4 de agosto de 2016).

 

 

Plínio Genti é doutor em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) e em Fundamentos da Educação (UFSCar). Professor concursado de Direitos Humanos (PUC-SP) e de Direito Penal (UNIP São José do Rio Preto). Integrante do Grupo de Pesquisa “Educação e Direito” da UFSCar. Procurador de Justiça no Estado de S. Paulo. Autor de obras de Direito e Educação.

FB: @PlinioB.Gentil  Email: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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