A Greve de Mulheres e a “Novíssima Esquerda”
- Detalhes
- Carlos A. Lungarzo
- 17/03/2017
Neste momento, mais de 60 países são testemunhas de um dos maiores movimentos internacionais de todos os tempos: a greve das mulheres. Após 200 mil anos de existência da atual espécie humana, e de mais ou menos 7.000 a 9.000 anos de sociedade patriarcal, o mundo vai descobrir que a metade da espécie humana está privada de direitos.
Este é um fenômeno que pode marcar o renascimento da Nova Esquerda dos anos 60, quando os grupos sociais entenderam que o ansiado mundo futuro (seja socialista, comunista anarquista ou, simplesmente, o mundo natural) deve acolher todos os excluídos: pobres, doentes, refugiados, estrangeiros, crianças, minorias religiosas, alternativos sexuais, mulheres, e quaisquer outros que possam aparecer.
O meio século que nos separa da década de 60 viu surgir a ultradireita e o moderno fascismo de mercado, o que enfraqueceu a velha Nova Esquerda. Mas os fatos mais recentes tem mostrado o capitalismo neoliberal como um novo nazismo que deve ser encarado pela humanidade ainda civilizada.
O dia é especialmente importante para o Brasil, um país que hoje se destaca pela mais vigorosa e violenta repressão de todos os direitos humanos, a avidez de pilhagem de suas castas superiores e claros sintomas de Estado delinquencial.
Apesar de seu tamanho, o Brasil é um dos países que carece de uma esquerda, que se interesse menos pelo petróleo e mais pelas vidas humanas, sejam femininas ou masculinas.
Esquerda e Igualdade
A palavra “esquerda” foi criada em 1799 dentro da burguesia republicana da Revolução Francesa. Porém, esse conceito era relativo, e se confundia às vezes com o terrorismo do Estado e o populismo violento.
Os republicanos franceses eram nacionalistas, militaristas, escravocratas e misóginos, como mostra a execução da feminista Olympe de Gouges (1748-1793) por pretender estender a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão a uma declaração mais ampla que incluísse as mulheres e os escravos.
Incluso um dos mais notórios membros do Iluminismo, Jean Jacques Rousseau, célebre defensor da política contratual, foi considerado por alguns historiadores do século 20 um antecipador soft do que seria o Fascismo.
A ideia de igualdade da Revolução Francesa era apenas a igualdade dos novos ricos e pequenos burgueses com os antigos aristocratas e os clérigos, mas não incluía os populares.
O sentido específico da esquerda começa trinta anos depois, com os socialistas, anarquistas e marxistas, que propõem uma visão da sociedade radicalmente nova.
Marx e Engels foram os primeiros a ter uma clara ideia do caráter desumano da sociedade de classes, bem como sua irracionalidade, chauvinismo, superstição, violência e desigualdade. Eles, junto com muitos outros, levantaram propostas sociais e cognitivas radicalmente novas, divergentes de tudo o que a tradição tinha imposto com a força da espada e das fogueiras.
Karl Marx foi o primeiro que desafiou a forma especulativa da filosofia, como fica explícito na análise de Engels, em seu prólogo a Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Meio século depois, quando o marxismo começou a ser manipulado, muitos intelectuais insistiram em que Marx só se referia à filosofia idealista alemã, e não às filosofias em geral.
Na época de Marx, a filosofia europeia (salvo a alemã e a britânica) era ignorada fora dos círculos especializados. É verdade que Marx se refere à filosofia alemã e não à inglesa. Porém, por volta de 1840, a expressão filosofia em inglês se referia a Natural Philosophy que era a frase padrão para ciência. Apenas em 1844 science foi adotado em lugar de Filosofia Natural.
www.marxists.org/archive/marx/works/download/Marx_Ludwig_Feurbach_and_the_End_of_German_Classical_Philosop.pdf
Marx e Engels desafiaram também a teologia, poderosa no mundo todo. Não é verdade, porém, que eles tivessem aversão pessoal à religião. Definiram-na como um ópio do povo, algo que anestesia e, portanto, paralisa, mas também diminui as dores.
A religião não foi questionada como direito individual de crença, mas como força obstrutora do progresso social. O assunto só é mencionado novamente quando se refere a um problema concreto, como a censura religiosa na Renânia.
Os comunistas da época também enfrentaram o chauvinismo com a famosa frase “Porém, os trabalhadores não possuem pátria nenhuma” (Die Arbeiter haben jedoch kein Vaterland). Muito depois, os estalinistas tentariam distorcer esta expressão (que aparece claríssima em todas as versões do Manifesto) dizendo que os inimigos do patriotismo haviam interpretado a frase “erradamente”.
Todavia, o ponto fundamental do programa da primeira esquerda é o conceito de autêntica igualdade entre os humanos, entendendo que as fronteiras só poderiam favorecer os donos do poder.
Feminismo e Nova Esquerda
A ideia de igualdade criou as primeiras alianças entre os movimentos sociais. Movimentos abertos, como feminismo, abolicionismo e pacifismo tiveram tanto poder de mobilização quanto os partidos políticos, que, aliás, viraram cada vez mais democráticos durante o século 19. Um exemplo é a dura crítica da Primeira Internacional contra grupos ocultistas como a Maçonaria ou as sociedades secretas “socialistas”.
A primeira grande Convenção Feminista de Seneca Falls (NY, 19-20 julho 1848), organizada por mulheres da Sociedade dos Amigos (Quakers) foi a primeira ação conjunta das feministas, os abolicionistas e os pacifistas, que continuaria até 1914 nos EUA e na Europa.
A primeira fase da Revolução Russa foi cenário de fraternidade entre o feminismo e outros movimentos de esquerda, e houve um curto período, mesmo durante a guerra civil, em que a sociedade russa viveu uma efêmera, porém intensa, sensação de liberdade e igualdade. Mas o sonho acabou logo, em 1920/21, com a mudança de Lênin sobre a função do Estado. Mas tudo piorou com Stalin.
A luta de classes foi substituída pela luta entre países. O internacionalismo deixou seu lugar ao “patriotismo proletário”. A fraternidade entre os explorados passou a ser lealdade ao Estado soviético. A palavra “comunismo” já não significava “mundo sem classes”, mas “estado policial”.
Depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o Terceiro Mundo construiu uma nova forma de poder, baseada em arquétipos nacionalistas. Apesar disso, alguns países, como a China, se chamaram a si mesmos “marxistas”.
O respeito que a esquerda anterior a 1920 tinha pela mulher (e que reapareceu na Europa e nos EUA após 1950) desapareceu com a extensão da luta ao Terceiro Mundo, pois os militantes pós-coloniais não queriam importar “modismos” das metrópoles. Em 1986, durante uma luta de resistentes guatemaltecos contra ataques de mercenários, uma jovem líder criticou asperamente os homens de seu batalhão: “estou cansada do machismo-leninismo”.
Quando a poeira assentou, nos anos 60, começou um novo processo que integrava vigor com criatividade, e foi reunindo aos poucos todos os excluídos. Falando por alto, foi a isso que se chamou Nova Esquerda, mas o movimento arrefeceu com o crescimento do chamado “fascismo de mercado”. A confusão aumentou, pois ditaduras teocráticas e brutais passaram a ser louvadas por algumas pretensas “esquerdas”.
O despertar das mulheres, coincidindo com uma das maiores crises internacionais do capitalismo, pode ser a esperança de uma nova etapa, desta vez pacífica, que não renuncie à igualdade (e, portanto, à desaparição das classes), mas encare os problemas imediatos. Esta seria uma Novíssima Esquerda, ou, melhor, uma segunda fase da “Nova Esquerda”.
Nada garante seu sucesso, mas sua chance é maior que a dos movimentos violentos que só beneficiam os traficantes de armas, e que produziram milhões de mortos na África, na Ásia e na América Latina.
Não podemos esperar a que os grupos que hoje mobilizam dúzias de trilhões de dólares sejam definitivamente derrotados. Até que isso aconteça, se acontecer, bilhões de crianças, índios, negros, refugiados, mulheres e pobres esperam uma reação das forças esclarecidas deste planeta, que, acreditemos ou não, existem.
A Greve de Mulheres
A violência contra a mulher é uma das muitas mazelas da sociedade de classes, porém, não apenas da sociedade capitalista. Já existia na antiga sociedade escravocrata (Roma, Grécia e Oriente Médio) e atingiu seu máximo no cristianismo. A partir do século 5, a mulher perdeu seu status de humano de segundo nível, para tornar-se apenas uma coisa qualquer, uma propriedade do homem, igual ou menos valiosa que algumas arrobas de lenha.
Santo Tomás dizia que a mulher era uma anormalidade, e que nascia uma mulher quando, em realidade (sic!) deveria ter nascido um homem. Também aconselhava ao homem bater “moderadamente” na esposa para não mata-la. Salvo pela palavra “moderadamente” seu conselho foi praticado à risca por seus seguidores.
A mudança experimentada pelo planeta desde 1950, embora insuficiente para as aspirações básicas humanas, é maior que a mudança da humanidade desde o começo dessa história até essa data. Essa mudança atingiu também a América Latina, que é uma das regiões mais conservadoras e preconceituosas do planeta.
A Greve das Mulheres é, curiosamente, uma iniciativa surgida em nosso continente, motivada pela extrema violação dos Direitos Femininos e os Direitos Humanos em geral. A primeira ideia veio de três países. O Chile e Uruguai têm alguma tradição de esquerda, mas a Argentina se mobilizou pelas razões opostas. Sempre foi um país dominado por caudilhos, fascistas e místicos, cenário das maiores atrocidades de todo o continente. Assim, houve um momento em que a paciência das vítimas acabou. O cenário atual está em agudo contraste com o acontecido há 35 anos.
Em 1982, milhões de pessoas saíram às ruas para glorificar a truculenta ditadura militar e oferecer-se como bucha de canhão para a pior guerra Euro-Americana do século 20. Depois, derrubaram a ditadura porque, apesar da brutalidade dos militares, estes tiveram a única boa ideia de toda sua história: render-se. Mas, nesse lapso cresceram e nasceram novas gerações, distanciadas da arcaica xenofobia, e conscientes dos horrores sofridos (e produzidos) pela geração de seus pais.
Em 2016, milhares de mulheres saíram à rua com objetivo estritamente oposto ao de 1982: repudiar o assassinato sexual de uma menina, o que significa um repúdio a instituição do feminicídio, muito intensa no país. E hoje estão saindo muitas mais, junto com milhões de mulheres em outros países.
A tradição feminicida na Argentina é resultado de múltiplas causas: o aniquilamento quase total da esquerda na década de 1940, a extrema misoginia da teocracia (que é uma das duas únicas teocracias do Ocidente que faz parte do Estado) e o uso do estupro e o feminicídio por parte do exército, a polícia e as gangues, com o apoio da maioria dos políticos e a frequente cumplicidade dos juízes. Também influiu a manipulação da mulher como subserviente às ações populistas e ditatoriais.
Carlos Lungarzo é ativista argentino dos direitos humanos e reside no Brasil.