As 7 vidas do neoliberalismo
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- Tatiana Roque
- 03/04/2017
A estranha não-morte do neoliberalismo. Essa é a tradução do título de um livro de Colin Crouch, mostrando que, ao contrário do que esperávamos após a crise de 2008, o neoliberalismo não morreu, ele renovou suas formas de governo. Um dos mecanismos que tornou possível essa virada está no tratamento preferencial dado a grandes organizações, no lugar das leis antitruste que caracterizavam o projeto neoliberal em seu início.
Isso só é possível pela aliança entre empresas e governos, que instituem os mecanismos necessários para que corporações globais dominem o mercado e o cenário político. O livro foi escrito em 2011, antes de Trump, que atualiza de modo surpreendente o projeto, colocando diretamente os CEOs das grandes corporações em cargos políticos do governo, em uma estratégia que Naomi Klein chamou de “eliminação dos intermediários”.
Acontece algo parecido por aqui. Ainda que tenhamos um intermediário em posição mais que estratégica, na presidência da República, trata-se do intermediário perfeito, pois funciona como correia de transmissão direta dos interesses das corporações e do mercado financeiro. Não que esses mecanismos estivessem ausentes durante os governos anteriores, só que havia um nível razoável de disputa política intermediando o jogo de interesses. Agora está tudo escancarado.
O jogo de interesses oligárquicos mantém a crise como instrumento de ampliação do poder político (tornado imediatamente econômico). Assistimos à vitória das grandes empresas multinacionais que exercem pressões contínuas sobre as autoridades políticas para se beneficiarem de subvenções, vantagens fiscais e trabalhistas que garantem a deflação dos salários. Esse fenômeno, que acontece em escala mundial, atuou fortemente para a política desastrosa de desonerações fiscais, que contribuiu para a derrocada da economia no governo Dilma.
Para entender “esse pesadelo que não acaba”, Pierre Dardot e Christian Laval destacam o papel do Estado como agente ativo na implementação das políticas capazes de atender as demandas das empresas. Ao invés de funcionar como proteção aos direitos sociais, tentando um equilíbrio entre a lógica do capital e alguma justiça social, o Estado passa a ser um ator-chave na implementação de um ambiente fértil para os negócios.
Assim, “as velhas receitas do nacional-estatismo são inoperantes, quando não chegam a usar a retórica da direita em um deslize perigoso”. O Estado é um dos atores em uma teia complexa que garante a instalação da racionalidade neoliberal em todo o tecido social, visando instalar a concorrência.
Para dar um exemplo recente, a aprovação da PEC do teto de gastos busca, precisamente, instaurar a lógica concorrencial dentro das despesas públicas. Para ser possível respeitar o limite, mantendo os padrões atuais de investimento em saúde e educação, deve-se compensar essas despesas pela redução de outras (ainda que não exista margem para isso). A PEC visa submeter os gastos públicos a uma dinâmica concorrencial: saúde e educação pressionam os gastos com previdência e funcionalismo; ensino básico pressiona os gastos com ensino superior.
A demanda de produtividade aumenta e a concorrência determina a racionalidade das despesas primárias do Estado, ao mesmo tempo em que as taxas de juros mantêm-se fora do cálculo. Na outra ponta, convoca-se o apoio da opinião pública, mobilizando sua correta percepção de que há problemas de gestão e injustiças no funcionamento da máquina estatal.
Ainda que não tenha paralelo em outros países, essa PEC radicaliza uma política que, ao contrário das expectativas, vem sendo a tônica de governos socialdemocratas ao redor do mundo. É incerto afirmar que a onda não chegaria por aqui, ainda que sob formas mais suaves, com a manutenção dos governos do PT. Há algum tempo, a socialdemocracia tem agido como linha auxiliar dos mercados no desmonte da proteção social e dos direitos do trabalho, tornando-se cada vez mais incapaz de cumprir seu ideal de conciliar economia capitalista e justiça social.
Ao invés de proteger a população dos efeitos do neoliberalismo, alia-se reiteradamente às suas formas de governo. No máximo, conseguem inserir medidas excepcionais no interior de governos atravessados por múltiplas contradições, como foi o caso, no Brasil, da expansão da universidade e do SUS. Não à toa, os setores que serão mais afetados pelo teto de gastos.
O desmonte do Estado bem-estar social adquire proporções gigantescas no Brasil. Agora será a vez da reforma da Previdência e seguiremos perguntando por que a resistência organizada pela esquerda não consegue mobilizar a população mais pobre, que é sua própria razão de ser. As denúncias que vêm sendo feitas, apontando a intenção neoliberal de diminuir o tamanho do Estado, não parecem realmente suscitar a indignação necessária à mobilização.
Pensando bem, por que as pessoas iriam defender um Estado de bem-estar social em abstrato, se não percebem os serviços públicos como proteção efetiva de seus direitos básicos de existência? Ao contrário, a maioria da população ou paga caro por planos de saúde e escolas privadas que funcionam mal ou precisa encarar quotidianamente a situação precária dos postos de saúde e das escolas públicas.
Quando experiências tão distintas geram a mesma desconfiança em relação às promessas do Estado, deve-se procurar o erro nas promessas, e não em um suposto conformismo da população. Se levarmos a sério as percepções e escolhas da população, ao invés de enxergá-la como massa amorfa teleguiada pela mídia hegemônica, deveremos perguntar qual tem sido o papel do Estado em fornecer alguma garantia de segurança e acesso a direitos básicos de subsistência.
A denúncia e a indignação podem ser sintomas de certo desencanto, como se pouca gente fosse capaz de ouvir e entender nossos clamores. Mas talvez esses clamores sejam slogans repetitivos esvaziados de sentido. Não à toa, toda essa discussão é perpassada pela dissolução da democracia liberal e pela necessidade urgente de repensarmos as bases de uma outra democracia possível. Mas esse será assunto de uma próxima conversa.
Tatiana Roque é professora da UFRJ, presidente da ADUFRJ e coeditora da Revista DR: www.revistadr.com.br