De devedores a heróis
- Detalhes
- Alexandre Conceição
- 13/04/2007
A implantação da indústria
açucareira no Brasil, baseada no latifúndio, no trabalho escravo e na
monocultura da cana-de-açúcar para exportação, data do período colonial e foi
sempre apoiada pelos governos nacionais. Essa política, do Estado como
financiador e organizador dos lucros dos usineiros, principalmente com a
política do perdão das dividas, se mantém até hoje.
No período colonial, a indústria canavieira obteve apoio da metrópole, que
repassou as terras pros seus donatários construírem engenhos de cana-de-açúcar
para exportação com créditos liberados pela coroa portuguesa. O governo da
Holanda, quando de posse de terras no nordeste do Brasil, principalmente em
Pernambuco, de 1630 a 1654, financiou a produção de cana-de-açúcar, também para
exportação, para ser refinada e comercializada na Holanda. O governo holandês
perdoou as dívidas dos usineiros, apesar de naquela época os governantes
exigirem a produção de gênero alimentício para alimentar a população crescente,
já que os senhores de engenho se negavam a plantar alimentos.
A Lei da Abolição da Escravatura foi assinada no Brasil em 1888, mas, antes
disso, em 1850, o Estado escravizou a terra, com a Lei de Terras, que garantia
que não iríamos passar pela Reforma Agrária necessária e que se manteria a
estrutura fundiária das capitanias hereditárias e sesmarias. Assim, os
usineiros continuaram se beneficiando do Estado, que lhes privilegiava com construção
de infra-estrutura como portos e estradas de ferro para garantir a exportação
do nosso principal produto: o açúcar. E, pro mercado interno, fome e
desigualdade.
Desta forma fomos construindo o Brasil que temos hoje, com uma brutal
concentração de terra e riqueza nas mãos de poucos e o Estado sempre fazendo
seu papel junto à agroindústria canavieira.
A implantação do Pró-álcool em 1975 veio fortalecer ainda mais os usineiros,
que, com a produção de etanol, derivado da cana e com um alto valor agregado,
tem sido um novo capítulo na história da agroindústria canavieira no Brasil -
mais uma vez voltada para a monocultura, a grande extensão de terras e a
produção pro mercado mundial, sem nenhuma prioridade para a produção de
alimentos para a população brasileira.
Hoje, o etanol volta a ser o principal produto do modelo agro-exportador
brasileiro e o governo vem atuando mais uma vez como articulador dos usineiros,
mantendo os perdões das dívidas e os olhos fechados para os problemas do homem
do campo, do meio ambiente e para a Reforma Agrária.
O custo social dessa política é a superexploração
do trabalho, com um exército de migrantes, bóias-frias, que cortam uma tonelada
de cana por R$ 2,50, em condições precárias de trabalho, situação que já causou
a morte de centenas de trabalhadores por exaustão. Essas condições acabam
com a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras do corte da cana, que vivem em
alojamentos precários, atuais senzalas do século XXI, e em locais com os
menores índices de desenvolvimento humano do mundo. No trabalho do dia-a-dia,
chegam a cortar em média 12 a 15 toneladas de cana.
A energia do etanol produzido em nosso país, que movimenta a indústria
açucareira brasileira e a indústria automobilística mundial, não sai pura e
simplesmente da combustão do etanol nos motores dos automóveis, mas
principalmente da energia da vida de milhares de seres humanos, que, com seu
suor e sangue, tem sustentado essa indústria ao longo dos nossos 507 anos. Ao
queimar etanol em nossos carros, também estamos queimando a energia e a vida de
milhares de trabalhadores brasileiros, homens, mulheres e crianças.
E o Estado brasileiro continua queimando a nossa riqueza com os usineiros, que
vivem do dinheiro público e da expropriação do trabalho. Os usineiros sempre
pegaram dinheiro dos bancos estatais e do orçamento da união e nunca pagaram
suas dívidas, que são sempre renegociadas a cada safra. Só em Pernambuco, os
usineiros devem ao INSS mais de 562.641.612,54 bilhões de reais. Isso sem
contar os empréstimos de bancos estatais não pagos e dívidas de outros
impostos.
Usinas e destilarias de Pernambuco em dívida com o INSS (em R$)
Usina Pumaty S/A 53.752.706,59
Usina Salgado S/A 49.838.775,66
Usina Cruangi S/A 47.761.362,18
Destilaria Liberdade S/A 22.466.960,30
Destilaria Gameleira Sociedade Anônima 21.267.969,01
Usina Estreliana LTDA 22.450.388,46
Usina Bom Jesus S/A 15.588.878,59
Pessoa de Mello Industria e Comércio S/A 14.903.971,59
Usina Trapiche S/A 13.092.372,82
Usina União e Indústria S/A 10.614.768,40
Usina Água Branca Sociedade Anônima 8.982.527,21
Usina Treze de Maio S/A 7.945.378,37
Usina Frei Caneca S/A 7.092.556,06
Usina Santa Terezinha S/A 4.924.909,11
Usina São José S/A 2.639.923,18
Usina Petribu S/A 1.728.298,05
Associação dos Fornecedores de Cana de PE 1.411.892,74
Usina Central Olho D´Água 145.881,86
Pessoa de Melo e CIA e ME 65.143,34
Dados
levantados pelo gabinete de Paulo Rubem, deputado federal pelo PT-PE.
Enquanto os trabalhadores que têm gerado toda riqueza deste país queimando sua
vida no canavial não são reconhecidos, os devedores do Brasil, responsáveis
pelo o atraso social do campo e que transformaram a terra, a natureza e a vida
em mercadoria, são transformados pelo nosso presidente em heróis nacionais.
Esses não recebem nenhum tipo de punição pelos crimes que vêm cometendo contra
o homem e a natureza, nem por parte do governo, muito menos pela justiça
latifundiária que temos no Brasil.
Com esses heróis, o que diria hoje Zumbi dos Palmares, Antonio Conselheiro,
Frei Caneca, Margarida Alves, Josué de Castro, Paulo Freire, Irmã Dulce, Irmã
Doraty, Dom Hélder, Apolônio de Carvalho, Padre Jósimo, Caio Prado, Florestan
Fernandes, João Pedro Teixeira, Pedro e Inácio, Ismael Felipe, José Marlucio, e
tantos outros lutadores e lutadoras do povo brasileiro que doaram sua vida na
construção de um Brasil melhor e um mundo mais justo e humano.
“por que me doem
tanto
7 quilos de tristeza,
se há vidas que sobem ao céu
levando, como pluma,
mais de 25 toneladas de doce cana
de açúcar brasileira?
Descansa, José
Descansa, meu avesso irmão.
Não me respondas.
Descansa, José.
Há muita cana para cortar.
Descansa.
O mundo está coberto de cana.”
Alexandre Conceição é membro da direção estadual do MST de Pernambuco.
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