Correio da Cidadania

Contrapondo Haddad

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O texto do ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, publicado na Revista Piauí de junho de 2017, é bastante longo. Aqui se fará alguma consideração apenas sobre aqueles trechos que se referem à questão das tarifas do transporte público municipal, ao MPL e comentários sobre 2013.

1) “Ainda durante a campanha, eu havia encomendado a alguns pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, encabeçados pelo professor Samuel Pessoa, um estudo sobre a eventual municipalização da CIDE como fonte de financiamento do transporte público. A CIDE, Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, é um tributo de arrecadação vinculado, de competência da União, que inCIDE sobre a importação e a comercialização de gasolina, diesel e derivados. A ideia seria a municipalização desses recursos a fim de que o transporte individual motorizado em nossas grandes cidades respondesse pelo subsídio ao transporte público”, afirmou o ex-prefeito.

No que se refere à política de obtenção de recursos para financiar as tarifas, o texto remete à CIDE dos combustíveis. Ocorre que a CIDE é uma contribuição regulada especificamente por lei que a distingue de um imposto, permitindo sua variação entre valores pré-fixados e que pode ser zerada a qualquer momento, sem observância do princípio da anualidade dos impostos, como foi no governo Dilma por vários anos. Para garantir uma política de financiamento das tarifas a CIDE é um mecanismo nada robusto, como se diz inclusive em termos de política financeira. A CIDE é um instrumento para conjunturas e não para políticas de longo prazo.

Para tanto, o então recém-empossado prefeito poderia ter proposto uma reforma tributária sobre combustíveis para financiamento dos transportes públicos, “pra valer”. A Fundação João Pinheiro tem um estudo datado de 2002 com uma completa proposta sobre tal política tributária envolvendo, inclusive, os municípios. Esse estudo não foi coordenado por um economista de posições, digamos, próximas do neoliberalismo, mas por João Luís da Silva Dias, ex-presidente da BHTrans no governo de Patrus Ananias, do mesmo partido que o ex-prefeito de São Paulo.

2) “Eu sabia que me seria demandado algo muito difícil: a manutenção do preço depois de um congelamento que já durava dois anos, já que o último reajuste da tarifa em São Paulo ocorrera em janeiro de 2011... E veio a fagulha, acesa num protesto organizado pelo MPL, o Movimento Passe Livre, contra o aumento da tarifa de ônibus – um reajuste, é bom lembrar, de apenas 6% diante de uma inflação acumulada de 17%. Eu sabia que a situação exigia cuidado, que teria repercussão, ainda mais sendo eu o prefeito, mas imaginava que conseguiria estabelecer um diálogo com os manifestantes que, a princípio, recusaram o aceno”, colocou Haddad.

É interessante observar que o ex-prefeito se refere a mais de dois anos sem reajuste nas tarifas, mas não diz que em 2014, ano das eleições presidenciais, ele não propôs nenhum reajuste. Por quê?

Na sequência deixa entrever que o MPL não quis dialogar ao não atender ao seu “aceno”. O MPL não se recusa ao diálogo com autoridades, basta ver que a presidenta Dilma, criticada no texto, fez um convite efetivo que o MPL atendeu e com ela se reuniu em meio às Jornadas de Junho de 2013.


Lucio Gregori em debate aberto em frente à prefeitura, realizado em 19 de janeiro de 2016; foto: Raphael Sanz
 
3) O texto faz uma longa consideração sobre movimentos sociais e manifestações de rua e consequências políticas. Destaca-se: “alguém dirá, com razão, que nem o MPL nem a PM explicam a eclosão da crise. Aqui, é necessário introduzir um elemento sem o qual os eventos de 2013 não encontram explicação: a forma assumida pelas manifestações”.

Tradicionalmente, todas as modernas organizações contestatórias no Brasil, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), passando pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e demais movimentos sociais, sempre foram adeptas de alguma mediação político-institucional. Mesmo durante a fase mais aguda do neoliberalismo, essas organizações faziam atos, exerciam seu direito de protesto, mas buscavam a negociação com as instituições. Diante de governos de centro-esquerda, essa tendência se acentuava e trazia ganhos efetivos para os grupos representados.

E continua Haddad: “sem vínculos partidários nem pretensões eleitorais, a partir de uma agenda bastante específica e de difícil contestação, esses movimentos começaram a fazer sucesso mundo afora. E eles foram bastante críticos em relação à política e às formas tradicionais de negociação, que viriam inspirar os movimentos mais contemporâneos que se desenvolveram no Brasil, dentre os quais o MPL”.

Novamente o texto procura empurrar o MPL para uma posição de intransigência e não negociação, que não é confirmada pela história do movimento na Revolta da Catraca em Florianópolis em 2005, pelas discussões e propostas para a política tarifária em Brasília, pela proposta de Projeto de Iniciativa Popular sobre política de transportes públicos em São Paulo em 2011, apenas para citar alguns exemplos. O que parece é que o ex-prefeito não foi muito eficaz em seus “acenos”. Suas declarações desde Paris em 2013, ao lado do chefe da polícia, governador Alckmin, mostram isso.

Faltou dizer, também, que graças ao MPL e a Junho de 2013, foi aprovada rapidamente pelo Congresso a inclusão dos transportes como direito social nos termos do artigo 5º da Constituição Federal.

Além disso, MST, MTST, sindicatos e centrais diferem do MPL, pois são organizações com demandas para setores específicos como seus nomes indicam. A demanda do MPL é para uma política pública geral e, portanto, sua maneira de dialogar com os governantes se faz de modo distinto. Algo que o ex-prefeito parece desconhecer.

4) Finalmente cabe um comentário geral sobre seu entendimento sobre a questão tarifária, movimentos sociais e crises políticas e sobre, afinal, o erro grave de seu governo na questão dos contratos dos transportes públicos municipais.

Se o ex-prefeito fizesse uma breve investigação, veria que manifestações contra aumento de tarifas de transporte público frequentemente se desdobraram em crises políticas mais amplas. Realmente a tarifa representa e tem múltiplos significados conscientes ou inconscientes em nossa sociedade de classes e de grande verticalidade governamental sobre a população.

Assim foi em 1879 a Revolta do Vintém pelo reajuste das tarifas de bondes do Rio de Janeiro. Em 1947, houve o quebra-quebra de mais de um terço da frota de bondes e ônibus de São Paulo com a demissão do prefeito de então. Em 1956, a paralisação de bondes promovida pela UNE no Rio de Janeiro e que só terminou com a mediação feita pelo então presidente Juscelino. Em 1961, o incêndio da estação de barcas Rio-Niterói. Em 2003, a Revolta do Buzu em Salvador, a maior manifestação de rua dos últimos cinquenta anos na cidade, a já citada Revolta da Catraca de Florianópolis e assim por diante. Isso só para citar alguns casos.

O MPL, diferentemente do que o ex-prefeito insinua, tem outros diversos estudos e artigos sobre a questão da mobilidade. Não por outra razão adota ditos como “por uma vida sem catracas” e “uma cidade só existe para quem por ela pode se movimentar”, são sínteses dos múltiplos significados e representações da mobilidade urbana, dos transportes públicos e respectivas tarifas e seu controle.

Não se tratava em 2013, de uma questão pessoal contra essa ou aquela autoridade, mas uma questão política ampla, envolvendo o Estado e sua relação com a população. Quem sabe se o ex-prefeito soubesse disso tudo, teria agido de outro modo. O que não dá é para resumir num suposto “modismo e/ou intransigência de diálogo dos movimentos sociais” e do MPL em particular.

Mas se o ex-prefeito se apresenta como um ilustrado político em geral e em particular a respeito da política de transportes públicos e respectivas tarifas, o que ele não diz é que os contratos de transportes coletivos municipais venceram justamente em junho de 2013 e que ele não conseguiu levar adiante uma concorrência para novos contratos e acabou por prorrogá-los até junho de 2017! Nesse aspecto nos últimos trinta anos, só o ex-prefeito Jânio Quadros teve o mesmo desempenho frustrante.

Vários movimentos sociais e o TCM se manifestaram contra diversos aspectos dessa frustrada concorrência dos quais destacamos: prazos contratuais de vinte anos, prorrogáveis por mais vinte (!), indefinição de adoção de frota de baixa emissão de poluição, inclusão na concorrência da construção e operação por parte dos contratados do Centro de Controle Operacional (CCO), destinado a fazer o controle da operação do sistema. Algo como as raposas a fiscalizarem... as próprias raposas.

É isso.


Mais Lucio Gregori:

Lucio Gregori: “Discutir mobilidade urbana é vital também para a economia” - entrevista publicada em janeiro de 2017

Matérias e entrevistas sobre o tema em 2013:

Manifestações pelo transporte coletivo revigoram juventude e lutas sociais do país - publicado em 14 de junho de 2013

‘Não é só tarifa zero. Precisamos discutir toda a concepção de garantia do serviço público’ - entrevista com a ex-vereadora do PT Teresa Lajolo, julho de 2013

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Lucio Gregori é engenheiro civil, professor da USP e ex-secretário dos Transportes de São Paulo, pioneiro na apresentação de projetos de Tarifa Zero nos ônibus e trens da metrópole.

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