Exército no Rio: “já beijamos a lona como laboratório de experiências neoliberais”
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- Gabriel Brito, da Redação
- 16/08/2017
Ressaca é uma das palavras que define o Rio de Janeiro pós-Olímpico. Falido após anos de isenções bilionárias ao capital privado, agora o estado atrasa salários de servidores e abandona às traças diversos equipamentos públicos essenciais. Rapidamente, insegurança e violência voltaram a ser assunto principal e o governo federal voltou a liberar o uso das Forças Armadas no papel de polícia na cidade. Sobre isso, entrevistamos a historiadora e criminologista Vera Malaguti Batista.
“'Sabemos que não é solução’, parece ser a mensagem cifrada (do Exército). De modo que é mais uma tentativa burlesca de um governo sem legitimidade angariar alguma. Diria que os líderes militares têm muito mais consciência do problema do que o ministro da Defesa. Esses políticos prometem soluções mirabolantes, mas sabemos que a solução é muito mais complexa, não é mais possível ver esse filme repetido no Rio, a gerar mais aventuras eleitorais”, analisou.
Professora da UERJ e da Fundação Escola Superior da Defensoria Pública RJ, além de autora de diversos estudo na área da segurança pública e suas doutrinas, Vera Malaguti descreve o quadro de depressão social que assola a cidade. Ademais, considera necessário uma renovação geral em todas as pautas de peso do país.
“As UPPs já eram há muito tempo, a PM já tinha feito alterações em sua concepção... Enfim, foram um projeto de marketing, guindado por aquela festa do capitalismo esportivo e transnacional que tomou conta da cidade. Agora estamos no pós-festa. Eu nunca vi o Rio de Janeiro tão pobre, perdido, miserabilizado, violento, abandonado, é uma devastação”.
A entrevista completa com Vera Malaguti Batista pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como você está vendo a atuação do exército no Rio de Janeiro, mais uma vez solicitado para conter níveis descontrolados de violência e barbárie social?
Vera Malaguti: Vejo com o mesmo olhar de sempre. Existe uma discussão bem qualificada dentro das Forças Armadas brasileiras e do resto do mundo sobre usá-las no papel de polícia e fazer a segurança pública. E a posição geral é contrária ao que se decidiu aqui.
Temos uma experiência meio autista, contrária ao que acontece até mesmo nos EUA. Lá, usar a tropa federal é muito difícil, eles são contra, ainda que gostem de ver, por razões estratégicas, os países da América Latina fazendo esse papel, por acreditarem que enfraqueça sua soberania. Também existe dentro do pensamento militar algo como “poxa, é um bom pretexto para nos fortalecer em orçamento e atrair investimentos”... Tal aventura já foi concebida há anos e o Haiti foi o laboratório.
Para contextualizar historicamente, em 1992 não foi uma intervenção das forças armadas, por conta da conferência ecológica, como gostam de imputar ao Brizola. Era uma operação conjunta e completamente constitucional, numa reunião que tinha mais de 20 chefes de Estado, e segurança de chefes de Estado é prerrogativa do governo federal.
Na época, o Nilo Batista, secretário de Polícia Civil e Justiça, fez uma pesquisa que demonstrou (numa passagem tão aclamada pela grande mídia e seus debates desqualificados) que não se diminuíram as ocorrências delitivas naquele momento. Não havia relação. Em 1994, já no final do governo, sitiado pelo neoliberalismo, o governo estadual sofreu intervenção federal, a fim de prejudicá-lo, com toda aquela história conhecida após a vitória de FHC. Logo a seguir, veio o governo Marcelo Alencar e começou a haver aquilo que Carlos Magno Nazareth Cerqueira (primeiro comandante de polícia negro e um intelectual da área, que foi assassinado) escreveu no artigo “A remilitarização da segurança pública”, no bojo do neoliberalismo.
Visava-se nos final dos anos 80, época dos primeiros governos estaduais democráticos, a desmilitarização e outra segurança pública, ideia derrotada pelo capital vídeo-financeiro, seus meios de comunicação e sua economia bélica, a vender armas, tecnologias de seguranças e novas assessorias. Na ditadura, era a guerra contra a subversão; depois, guerra às drogas, contra o crime etc. Tudo dentro do contexto de ascensão das políticas neoliberais, com intenso encarceramento, extermínio, todo aquele controle pesado, já que o neoliberalismo produz desemprego e tudo mais.
O Temer, com seu golpe de diferentes feições, começou imediatamente a impor várias reformas. A primeira foi educacional, bem rápida, depois a trabalhista e outras. Nem o Collor, de tragicômico governo, ou o FHC, com sua petulância sofisticada, tinham conseguido fazer o que esse governo espúrio faz agora. Mas um parêntese: os governos de “esquerda” (entre aspas mesmo) não deixaram de trabalhar a mesma militarização, e não tiveram um olhar crítico sobre a questão carcerária e criminal.
Na minha modesta opinião, só a esquerda jovem compreendeu a questão, a velha ainda acredita no “estado democrático de direito”, na pena enquanto salvação, no discurso de expansão do poder punitivo etc., como vimos nos governos que podemos chamar de populares.
Correio da Cidadania: Como enxerga a postura de algumas altas patentes do exército, que se não chegaram a desautorizar a decisão do ministro da Justiça do governo Temer, Raul Jungmann, deixaram claro seu dissabor?
Vera Malaguti: Essa atual intervenção das forças armadas no Rio está estranhíssima. Primeiro os soldados apareceram ostensivamente, com operações de rua visíveis. Depois foram ficando mais discretos. A impressão que tenho é que os líderes da operação têm uma total consciência crítica dela. Quase uma coisa envergonhada, como li em declarações do general Etchegoyen e outros. “Sabemos que não é solução”, parece ser a mensagem cifrada.
De modo que é mais uma tentativa burlesca de um governo sem legitimidade angariar alguma. Diria que os líderes militares têm muito mais consciência do problema do que o ministro da Defesa. Esses políticos prometem soluções mirabolantes, mas sabemos que a solução é muito mais complexa, não é mais possível ver esse filme repetido no Rio, a gerar mais aventuras eleitorais.
O Rio de Janeiro já beijou a lona como laboratório de experiências neoliberais, com tecnologias de EUA, Israel, OTAN, a vender tecnologias que já deram errado por lá. E uma mídia que reforça o quadro. O Stédile disse algo interessante: “o Rio é laboratório das políticas do PMDB para o resto do Brasil”. Aqui é o day after da gestão PMDB. Não se trata só de Sergio Cabral e um ou outro nome, e sim de um todo. Todas as organizações industriais e comerciais, Rede Globo, grandes empresas, o capital esportivo transnacional corroboraram. A criminalização de Cabral satisfaz a população com o padecimento do indivíduo, mas o problema é o projeto que está posto.
Correio da Cidadania: Quais são os primeiros desdobramentos da atual operação? O sentimento que se pode captar nas pessoas seria de maior descrença em relação a outros momentos em que se solicitou a presença das Forças Armadas em áreas da cidade?
Vera Malaguti: Penso que há um total descrédito. Na minha área de atuação e meios onde circulo, pessoas com quem convivo no dia a dia, no transporte público, fico com a impressão de ser uma operação envergonhada. Há consciência crítica, mas as forças armadas sentem-se atiradas pelo Executivo em mais uma aventura.
Tivemos a experiência da Maré que não foi um sucesso, e o exército sabe. Morreram um soldado e vários civis e o problema persiste, já que é muito mais profundo, é econômico, social, político, cultural, geográfico, estratégico. Enfim, complexo. Por isso penso que existe um descrédito geral. Não tenho pesquisa, mas é minha sensação. Mas acredito que se tivesse uma pesquisa a mostrar aprovação popular já teria sido primeira página dos jornais faz tempo. É fracasso de público e de crítica.
Correio da Cidadania: Qual o quadro geral da segurança pública neste ano e que balanço você faz das UPPs, agora que chegaram os tempos da austeridade?
Vera Malaguti: Fui uma crítica implacável das UPPs quando se implantou a primeira. E paguei o preço, apanhei muito por isso. Toda a criminologia sociológica e acadêmica do Rio alegava ser um projeto social, enquanto eu falava desde aquela época ser uma intensificação da ocupação militarizada dos bairros pobres do Rio, na perspectiva de ocupação dos EUA em outros países, com uso de tecnologia já decadente, como nas ocupações de Iraque, Afeganistão, na gestão israelense dos territórios palestinos, passando pela Colômbia...
Mas aqui havia uma espécie de consenso total, todos achavam o máximo, enquanto já havia uma crítica forte nos locais e países citados. Não existe uma técnica neutra para resolver a segurança pública. Toda política de segurança pública faz parte de um projeto de sociedade, como se vê em colégios públicos militarizados, por exemplo. A do Brizola era investir muito mais em educação pública, integral, laica e de qualidade do que em militarismo. E pagou um preço bem grande. Mas era o projeto político dele: evitar um Estado policial com grande expansão do encarceramento, ampliação do extermínio, laudos de resistência, encarceramento em massa e criminalização. A ideia era conter isso de um lado e expandir investimentos em cultura, educação, saúde...
As UPPs são a falência do projeto político do PMDB e suas noções de segurança.
Correio da Cidadania: Como você resume o quadro social do Rio de Janeiro, desde o fim das Olimpíadas?
Vera Malaguti: Como professora, sei o que é a crise na universidade pública. Mas os trabalhadores da segurança e a segurança de modo geral não estão sem recursos, até receberam aporte por esses dias. E isso gera insegurança! Se o custo da atual operação das forças armadas fosse inteiro ao hospital Pedro Ernesto, da UERJ, que tem uma história bonita de atendimento ao povo, talvez os cariocas se sentissem mais seguros, entende? Que bom que alguém recebe em dia, os policiais merecem receber bem mais que membros do judiciário e do MP, já que têm um trabalho muito mais duro, enquanto os ganhos astronômicos desses operadores da justiça estão em dia. Mas é só pra lá que vai o dinheiro...
As UPPs já eram há muito tempo, a PM já tinha feito alterações em sua concepção... Enfim, foram um projeto de marketing, guindado por aquela festa do capitalismo esportivo e transnacional que tomou conta da cidade. Agora estamos no pós-festa.
Eu nunca vi o Rio de Janeiro tão pobre, perdido, miserabilizado, violento, abandonado, é uma devastação. Todas as estruturas esportivas estão largadas, suas gestões semiprivadas não deram certo, é uma tristeza. O Rio está devastado.
Correio da Cidadania: Quem são os grandes responsáveis por essa crise? Por que o estado que mais surfou na onda do Brasil que decolava para o primeiro mundo da economia e até da geopolítica é onde a crise ganha contornos mais eloquentes?
Vera Malaguti: Era um capital predatório. Houve uma grande ilusão do governo federal, que de fato investiu muito no Rio. Mas o parceiro deles era o capital predatório. Esse capital vem, arrasta tudo, configura todo o Estado na direção privatizante e depois larga na lona. O Rio vai demorar anos pra levantar.
Correio da Cidadania: Por que parece não haver grande comoção entre os movimentos sociais da cidade e também das esquerdas?
Vera Malaguti: O Rio está deprimido. No tempo da pacificação, parecia que estava pacificando, mas não era assim. Agora estamos atordoados, muito na lona, veremos quando levanta. Tenho visto uma quebra, uma miserabilidade, um negócio que nunca tinha visto. E olha que já sou avó, trabalhei a vida toda em política pública, sou professora há bastante tempo. Vejo uma certa ressaca disso tudo.
Correio da Cidadania: É possível discutirmos outro projeto de país e segurança pública ou depois dessa tempestade a penúria tem tudo pra ser longa?
Vera Malaguti: Temos de discutir outro projeto de Brasil e Rio de Janeiro. Devemos desconstruir o conceito de segurança que afirma que alguma técnica irá resolver o problema. Temos nossa pauta, mas por mais resistência que façamos tem a questão do monopólio dos meios de comunicação. Na TV aberta ou a cabo vemos novelas, séries, programas de presídio, tráfico, polícia entrando, Datena, JN, tudo um uníssono deste modelo. E a esquerda no poder perdeu a oportunidade de mudar o projeto político em seu todo.
Teríamos de discutir segurança em cima de uma desconstrução. E como a questão se encontra exatamente neste ponto, poderíamos dizer que nos últimos 20 anos “o Brasil prendeu determinado número de pessoas”. Agora, “tem a terceira maior população carcerária”, “disputamos com a Indonésia a maior taxa de crescimento”, “temos a polícia que mais mata no mundo”, onde o Rio brilha, e aquelas máximas fascistas (“mata mais”, “bandido bom é bandido morto”) já não se sustentam também. Enquanto não reconhecermos que 40 anos de fracasso já está bom, não vamos inventar uma nova forma de ver isso.
Precisamos de novas visões para tudo no Brasil. Por exemplo, na Previdência: qual a novidade das esquerdas para discuti-la? Não pode oferecer a mesma proposta dos anos 70. O que mudamos depois de todas as derrotas históricas? Acabamos de fazer um seminário na UERJ chamado “Política criminal sem derramamento de sangue”, onde construímos coletivamente uma proposta concreta de política criminal. É um pouco do caminho para sairmos dessa.
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Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.