STF retoma julgamento de demarcações de terras quilombolas
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- Tiago Henrique, Conexão Planeta (texto e fotos)
- 08/02/2018
Atualização:
Por 10 votos a 1, o STF reconheceu a legitimidade do Decreto 4887/2003 e negou a ADIN. Com isso, os quilombolas têm reconhecido seu direito de permanência nas terras.
No dia 1 de Setembro de 2016, recebi um telefonema:
— Tiago, você viu o que fizeram? Isso vai ser muito ruim pra gente, tenho certeza. O governo pode acabar com todo o nosso trabalho, não pode?
A ligação estava ruim e não durou muito. Fora realizada do único ponto onde se consegue sinal de telefonia no alto da serra do Fasola, zona rural de Buíque, entre o agreste e o sertão de Pernambuco. Do outro lado da linha, Walter Sampaio de Matos, 53 anos, servente de pedreiro e esposo de Josefa Bezerra de Matos, 52 anos, presidente da Associação dos Quilombolas e Descendentes do sítio Mundo Novo.
A região está situada a 27 km do centro do município de Buíque, 300 km de Recife. Saindo do centro, no sentido sul, após a Praça de Eventos, se inicia uma estrada vicinal; por ali se dá o principal acesso à comunidade quilombola do Mundo Novo (na foto acima, uma das primeiras casas construídas por lá). A estrada de barro segue até um cruzamento. À direita do cruzamento, seguindo em direção ao conhecido “pé da serra”, qualquer pessoa te informa o local designado como “sítio dos quilombolas” — embora existam descendentes de quilombolas morando em praticamente todo o município de quase 60 mil habitantes. O alto da serra limita, geograficamente, os sítios Mundo Novo e Fasola.
Lá vivem aproximadamente 25 famílias, um pouco mais de 100 pessoas num terreno de mais ou menos 20 hectares.
A ligação de Walter, um dia após a cassação do mandato de Dilma Rousseff, ficou marcada. Por um lado, pelo tom de preocupação em sua voz, certamente um reflexo das incertezas que pairam sobre o futuro abstrato do país desde 2 de dezembro de 2015, por outro, por seu questionamento se comprovar redondamente certo, meses depois.
Sua pergunta fazia referência ao processo de demarcação e titulação das terras da sua comunidade, iniciado em 2014. Mal sabia ele que o presidente recém-empossado, que já dava sinais de sua política quanto às demarcações de áreas quilombolas (vale lembrar que, em maio daquele ano, a responsabilidade das demarcações foi de três ministérios diferentes!), naquele mesmo mês, sentaria com diferentes agências governamentais para discutir a suspensão das demarcações.
Oito meses depois daquele telefonema, em abril de 2017, Josefa e Walter anunciavam em uma reunião extraordinária da associação:
— Pessoal, o governo mandou suspender os processos de demarcação de áreas quilombolas.
Esta é a primeira vez que um governo federal suspende as titulações de áreas quilombolas por tempo indeterminado desde que essas terras começaram a ser regularizadas, em 1995.
O julgamento, que coloca em risco o futuro das comunidades quilombolas, será retomado pelo STF em 8 de fevereiro. Vejamos o que está em jogo.
E o direito a terra?
Com o governo desmoronando, já nos primeiros meses de mandato, e a popularidade cada vez mais baixa, Temer encontrou na bancada ruralista a estratégia perfeita para manter-se no poder. Foi graças aos votos da Frente Parlamentar da Agropecuária, por exemplo, que foi possível barrar as denúncias de corrupção passiva, levantadas contra o presidente na Câmara dos Deputados.
Além de explicitar as barganhas feitas pelo Poder Executivo para ter o apoio do Poder Legislativo, o episódio evidenciou o poder político da bancada ruralista que, por sua vez, se agarrou à oportunidade para fortalecer uma agenda gestada há anos. Mudanças legislativas, levadas à frente via canetadas presidenciais, medidas provisórias favoráveis aos seus interesses e até um decreto que renegocia dívidas de multas ambientais, demostram como a abertura para o setor – que sempre existiu, diga-se – no governo Temer se transformou gradualmente na ideologia dominante.
A reunião extraordinária da Associação dos Quilombolas e Descendentes do Sítio Mundo Novo, foi convocada após a notícia veiculada pela BBC Brasil, em abril de 2017, sobre a suspensão das demarcações até que se conclua julgamento de uma ação sobre a legalidade do processo de demarcação que está tramitando no STF (Supremo Tribunal Federal).
Segundo a reportagem, um ofício foi enviado pela Casa Civil da Presidência ao Ministério Público Federal informando que a determinação da interrupção do processo teria sido decidida durante uma reunião entre diferentes agências do governo, em setembro de 2016.
Assinado pelos assessores Alexandre Freire e Erick Bill Vidigal, o órgão diz que a legalidade da demarcação de áreas quilombolas foi posta em dúvida pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.239, levada ao STF em 2004 pelo PFL, atual DEM. Ela questiona a validade do decreto presidencial 4.887, assinado em 2003 pelo então presidente Lula, que definiu os ritos e critérios para essa demarcação territorial.
Nela, entre outros pontos, o DEM diz que a demarcação dessas áreas não deveria ter sido regulamentada por um decreto presidencial e, sim, pelo Congresso, e também questiona a possibilidade de que as comunidades quilombolas se autoidentifiquem.
O julgamento começou em 2012 e está empatado em um a um. O relator do caso, ministro Cesar Peluzo (que deixou o STF naquele mesmo ano), concordou com o pedido do DEM e votou pela inconstitucionalidade do decreto.
Já a ministra Rosa Weber avaliou que o decreto é legal. O julgamento foi paralisado em 2015, quando o ministro Dias Toffoli pediu vista do processo para estudá-lo melhor.
Após ter sido suspenso por três vezes em 2017, o julgamento tem data prevista para o próximo dia 8 de fevereiro.
Os desfechos possíveis para essa história ainda são nebulosos nos dois sentidos: Se o STF decidir pela constitucionalidade do decreto, as regras não mudam e tudo continuará como está. O que não necessariamente é uma boa notícia.
O Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária trabalha com sucessivos cortes no orçamento que, em sete anos, apresentou uma queda de 94%. No ano passado, o órgão dispôs de apenas 4 milhões para titulações de árias quilombolas (em 2010 eram 64 milhões). Este foi o menor orçamento desde 2003.
Dados obtidos pela Comissão Pró-Índio, junto ao Incra, indicam que, em 2017, 9 das 30 Superintendências Regionais do órgão tiveram verba inferior a R$ 10 mil para a regularização de terras quilombolas.
Atualmente, há 1536 comunidades aguardando análise técnica, algumas desde 2007.
No caso contrário, julgar inconstitucional o decreto deixa o país sem uma norma específica para definir áreas quilombolas. Provavelmente, o governo poderia concluir processos que não têm litígio, porém os demais teriam que ser analisados um a um.
Apesar do direito às terras quilombolas continuarem assegurados pela Constituição, isso colocaria em xeque a sustentação jurídica de terras já tituladas e inviabilizaria novas titulações, levando em consideração a força ruralista no Congresso, que não está inclinada a aprovar qualquer lei que substitua o decreto presidencial.
O conceito de quilombo, uma questão
Um dos pontos que mais chamam a atenção na ADI 3239 é o que questiona a autoidentificação, um dos princípios para se iniciar o processo de titulação quilombola. O DEM e a bancada ruralista afirmam que o decreto abre margens para fraudes e deve ser derrubado. Para eles, o processo deve ser avaliado com base em documentos históricos.
O que fica evidente nesse processo são as divergências quanto à interpretação do conceito de quilombo. No passado, o termo era associado no Brasil a grupos de escravos fugidos e seus descendentes. A Constituição de 1988 tratou do tema ao determinar que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”.
Em sua petição ao STF, o DEM diz que a Carta exige a comprovação “da remanescência – e não da descendência – das comunidades dos quilombos para que fossem emitidos os títulos”. Ou seja, o partido diz que as comunidades devem provar que são oriundas de grupos de escravos fugidos.
Já a Associação Brasileira de Antropologia (Aba) divulgou, em 1994, um documento defendendo que a expressão remanescente de quilombo não se referia apenas a grupos “constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados”, mas também a comunidades “que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar”.
Segundo essa interpretação, hoje predominante entre os quilombolas brasileiros, o termo quilombo se aplica aos contextos de várias comunidades negras de diferentes partes do país.
Para a família de Josefa, por exemplo, seria difícil provar com documentos a remanescência: “Meu pai e meu avô nunca deixaram rastros, tinham medo. Nós mesmos, desde pequenos fomos criados pra ter medo de gente branca. Meu pai só foi ter um documento de identidade no fim da vida”.
Quanto às terras, a situação é ainda mais complicada. Dona Zilda, irmã mais velha de Josefa, conta que muitas terras foram invadidas por fazendeiros com escrituras falsas: “A gente ainda fica sabendo de coisas desse tipo por aqui. Botam gado na nossa terra e logo depois vem a cerca. As terras aqui, muitas não têm registro e, na época de pai, os negros trocavam terra por comida”.
As narrativas dos familiares de Josefa confirmam que havia “caboclos e outros negros fugidos” morando nas “locas de pedra”, quando seus antepassados ali chegaram. O local expandiu-se com a formação de famílias que resistiam ao regime de escravidão e tinham procedências de diversas fazendas produtoras de açúcar, fumo, gado e leite.
Josefa me contou que foi seu avô, Antônio Martiniano Bezerra, escravizado que após se empreender em fuga chegou ao município de Buíque onde constituiu família e passou a morar. Antônio Martiniano casou-se com Cândida Maria da Conceição e tiveram 12 filhos. O único retrato de Antônio – uma foto 3×4 (foto abaixo) – é guardado numa caixa de fósforos que é carregada por ela quando vai para o trabalho na roça.
Foi feito já no fim de sua vida, na década de 50, quando tinha mais de 100 anos de idade. “Tenho certeza de que ele me protege e olha por nós. Sabe o que estamos passando e vai nos ajudar lá com os ministros”, disse.
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Tiago Henrique é fotojornalista e colaborador do Conexão Planeta, onde este artigo foi originalmente publicado, além do EveryDay Projects e outros meios de comunicação.