O enterro da “democracia utópica”
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- Luís Felipe Miguel
- 22/02/2018
Promulgação da Constituição de 1988 em Brasília. Ao centro, presidindo a sessão da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães.
Quando o bloco soviético entrou em colapso, a ciência política estadunidense entrou em festa. Era o triunfo simultâneo do capitalismo e da democracia, enfim unidos como par indissociável. Uma democracia, é claro, plenamente equiparada à sua efetivação nas sociedades ocidentais. Samuel Huntington, o veterano cold warrior de Harvard, escreveu que a “terceira onda” de democratização, no último quarto do século 20, punha fim à polêmica sobre o sentido da democracia, em favor de sua versão concorrencial, limitada.
Ainda mais ousado, Francis Fukuyama, então estrela em ascensão no neoconservadorismo, decretou a chegada do fim da história, com uma eternidade de economia de mercado e instituições políticas liberais nos aguardando pela frente.
Huntington e Fukuyama nunca foram santos de devoção da esquerda, mas ela também não ficou imune ao novo clima. Um debate que começara no meio dos anos 1970, no eurocomunismo italiano, e que chegou ao Brasil no final daquela década, por meio de um famoso artigo de Carlos Nelson Coutinho, foi resolvido meio de supetão: a democracia estava alçada à condição de valor universal.
Aliás, sem nenhuma das ponderações que o próprio Coutinho apresentava, sobre a necessidade de avançar para uma “democracia pluralista de massas”, superando os obstáculos que a ordem capitalista impõe à ampla participação popular. A parafernália institucional do liberalismo foi aceita como alfa e ômega do ordenamento político e, mais, foi aceita em seus próprios termos, como fórmula para resolver as disputas em paz e em igualdade de condições.
Não por acaso, naquele momento a teoria política crítica aderia a modelos também convergentes com o enquadramento liberal e cada vez mais despreocupados com o impacto político das desigualdades sociais. O ideal da “democracia deliberativa”, que colonizou o espaço das visões democráticas radicais, assumia que, estabelecidas as condições para um diálogo abrangente, franco e igualitário, seria alcançado um autêntico consenso racional sobre todas as questões polêmicas. As relações sociais de dominação eram transcendidas por um ato de vontade teórica e nossa meta passava a ser uma versão sofisticada do velho “conversando a gente se entende”. Os instrumentos para o tal diálogo franco, como os teóricos da corrente não tardaram em indicar, já estavam nas instituições da própria democracia liberal.
No Brasil, a disseminação do enquadramento liberal fez com que nossa própria transição política fosse avaliada tendo como único metro as instituições formais que dela emergiram. O resgate da imensa dívida social podia ser considerado importante, até mesmo crucial, mas formava um capítulo à parte. A convivência entre democracia e desigualdade aparecia como natural e pouco problemática. A crença num céu político completamente desvinculado de sua base material, que Marx já denunciava, tornou-se artigo de fé geral.
Quando as nuvens do golpe de 2016 já sombreavam o horizonte, a maior parte da ciência política brasileira ainda via nossa democracia como “consolidada”. E mesmo hoje, quando o som dos coturnos em marcha alcança nossos ouvidos, muitos ainda se perguntam como pôde ter acontecido o que aconteceu e não vislumbram nenhum projeto além da restauração da ordem que foi derrubada junto com a presidente Dilma Rousseff.
Mas tal restauração, caso alcançada, padecerá da mesma fragilidade que foi congênita à institucionalidade instaurada com a Constituição de 1988. A coexistência entre democracia e desigualdade só é tranquila caso a democracia contenha a cada momento seu impulso igualitário. Num país como o Brasil, cujas classes dominantes são tão arredias a qualquer diminuição da distância que as separa do resto da população, isto significa uma democracia que, na tentativa sempre frustrada de se afirmar consolidada, nega permanentemente a si mesma. Como 2016 demonstrou de forma cabal, mesmo o programa reformista mais tímido possível, aquele que o PT no poder adotou, foi demasiado.
Não é errado ver na democracia um método para a resolução pacífica dos conflitos sociais. Mas só ver isso é deixar de lado sua outra face, ao menos igualmente importante. A democracia traz, em seu próprio nome, um paradoxo: é o governo do povo, isto é, o governo daqueles que são governados. Seu princípio é conferir poder a quem não o tem. É um regime que, para ser digno de si mesmo, deve entrar em combate contra todas as formas de opressão e dominação vigentes na sociedade. Talvez o que nos permita alcançar uma democracia mais consolidada não seja a minimização de suas ambições, a fim de não ameaçar os dominantes, mas, ao contrário, a construção de uma sociedade mais igualitária.
A obra apresenta uma discussão sobre o sentido da democracia e sua relação com os padrões de dominação presentes na sociedade. A ordem democrática liberal não pode ser entendida como a efetiva realização dos valores que promete, pois a igualdade entre os cidadãos, a possibilidade de influenciar as decisões coletivas e a capacidade de desfrutar de direitos são sensíveis às múltiplas assimetrias que vigoram na sociedade.
Porém, tampouco pode ser lida segundo a crítica convencional às “liberdades formais” e à “democracia burguesa”, que a apresenta como mera fachada desprovida de qualquer sentido real.
Assim, a democracia não é um ponto de chegada, e sim um momento de um conflito que se manifesta como sendo entre aqueles que desejam domá-la, tornando-a compatível com uma reprodução incontestada das assimetrias sociais, e quem, ao contrário, pretende usá-la para aprofundar contradições e avançar no combate às desigualdades.
Portanto, o conflito na democracia é um conflito também sobre o sentido da democracia, isto é, sobre quanto ela pode se realizar no mundo real como projeto emancipatório e quanto as instituições vigentes contribuem para promovê-la ou refreá-la.
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Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Lançará em breve o livro “Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória”.
Retirado do Blog da Boitempo.