Correio da Cidadania

Paul Singer, uma entrevista

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Paul Singer.

Recebemos com profunda tristeza a notícia do falecimento de Paul Singer na noite de 16 de abril de 2018. Na esteira das homenagens a esse excepcional economista e intelectual público, o Blog da Boitempo disponibiliza a entrevista completa com ele que abre o número #26 da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda. Conduzida por Luiz Bernardo Pericás e Paulo Barsotti, a entrevista foi realizada em São Paulo, no dia 5 de março de 2016, e contou com a transcrição e o apoio técnico de Silvia Letícia Marques. Abaixo, o texto integral; o leitor também tem a opção de baixar a entrevista completa diagramada em PDF clicando aqui.

Apresentação

O entusiasmo de Paul Singer é notável quando o tema é a economia solidária. O movimento cooperativista que se espalha e se desenvolve por todos os cantos do planeta é o objeto central de suas pesquisas e de sua prática militante há mais de uma década. É a sua aposta para o presente e para um futuro socialista, como se observa em Introdução à economia solidária (Fundação Perseu Abramo, 2003), obra em que considera o movimento como um novo regime que se desenvolve no interior do capitalismo.

A prudência e a clareza se manifestam quando o assunto é o complexo e trágico momento por que passa nossa triste república. No centro de seu diagnóstico, está o que chama de greve dos investidores, há muito tempo em curso no país.

O que é constante em todos os temas tratados nesta entrevista, concedida sob o impacto do day after da condução coercitiva de Lula, determinada pelo juiz de primeira instância Sérgio Moro, é a sua autenticidade.

Paul Israel Singer, cidadão brasileiro naturalizado, nascido na Áustria em 1938, chegou a São Paulo em 1940, ao lado de tantos outros judeus fugidos das perseguições nazistas.

Seu envolvimento com a política começa aos dezesseis anos, no movimento kibutziano de São Paulo, onde foi secretário. Após formar-se em eletrotécnica pela Escola Técnica Getúlio Vargas (1951), exerce a profissão por cinco anos, período em que inicia sua militância sindical. Como filiado do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, participa ativamente da Greve dos 300 mil (1953) que contou também com outras categorias, como gráficos, vidraceiros, tecelões e marceneiros. Foi membro da Comissão de Salários do comitê grevista, que escreveu uma das páginas mais significativas da história do movimento sindical brasileiro.

Após essa experiência profissional e política, sua vida muda de curso. Ingressa na Universidade de São Paulo, onde irá se formar em economia, e no Partido Socialista Brasileiro (PSB), na companhia de intelectuais como Antonio Candido, José Honório Rodrigues e Sergio Buarque de Holanda, entre outros.

Torna-se professor da FEA-USP em 1960 e, no ano seguinte, participa da criação da Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (OMR-Polop), fruto da fusão de dissidentes da ala esquerda do PSB e militantes trotskistas e luxemburguistas que se opunham à política do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que até então detinha a hegemonia da esquerda no Brasil.

Sob a orientação de Florestan Fernandes, sua tese de doutorado, de 1966, é publicada em 1969 com o título Desenvolvimento econômico e evolução urbana, pela Editora Nacional. Em seguida, vai para a Universidade de Princeton (EUA), onde realiza estudos sobre demografia (1966-1967) e, ao retornar ao Brasil, torna-se professor-titular na USP, apresentando como tese de livre-docência Dinâmica populacional e desenvolvimento (1968).

Com o golpe civil-militar de 1964, sofre perseguições que culminam, em 1968, na cassação de seus direitos políticos, sendo submetido à aposentadoria compulsória.

A nova frente de luta de combate ideológico à ditadura passa a ser o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), fundado em 1969 por professores da USP que, assim como Paul Singer, haviam sido cassados.

Nesse período, produz seus textos mais substanciais de crítica à política econômica da ditadura, publicados nos Cadernos Cebrap, na Debate e Crítica e no semanário Opinião, que são mais tarde agrupados no livro A crise do Milagre: interpretação crítica da economia brasileira (Paz e Terra, 1976). Singer só voltará a lecionar entre 1979-1983, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), à época orientada por uma política generosa de acolhida a professores perseguidos e cassados pela ditadura.

Em 1980, em meio à retomada das lutas sociais, participa da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT). Integra a equipe de Luiza Erundida na prefeitura de São Paulo como secretário de planejamento (1989-1992), encerrando sua atuação no Cebrap.

Participa, em 1998, da criação da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP e desde então vem se dedicando quase que exclusivamente à economia solidária e ao cooperativismo. Desde 2003 atua na Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes) do Ministério do Trabalho, conjugando mais uma vez militância política e trabalho intelectual.

A entrevista

[O PT, Lula e o governo Dilma]

Margem Esquerda – Professor, nosso assunto não poderia ser outro: a crise generalizada que vivemos hoje no Brasil, em especial a econômica e a política. Em suas últimas entrevistas, em relação à crise econômica, o senhor coloca que o que está no centro é a existência de uma greve dos investidores. Essa seria a razão do fracasso do governo Dilma? Quando essa greve dos investidores começou? Antes ou depois das últimas eleições presidenciais?

Paul Singer – Tenho a impressão de que foi antes, já na primeira eleição da Dilma. O fato é que a gente sabe que a economia deixou de crescer. No governo Lula, a economia brasileira cresceu ao redor de 5% ao ano, o que é relativamente pouco olhando a história brasileira. Deixe-me contar do começo, porque aí tem uma história. É o neoliberalismo, coisa criada recentemente, e em função disso eu chamei de greve dos investidores.

O fato de o PT ter vencido as eleições presidenciais chocou imensamente os investidores, que são todos especuladores. Você pode acompanhar o sentimento deles pelo movimento da bolsa. Se o dólar sobe, é sinal que eles perderam totalmente a confiança na economia brasileira; aí vão trocando reais por dólares, com a suposição de que o dólar vai ficar mais alto. O valor das moedas é resultado de pura especulação sobre o futuro de cada uma das nações que as emitem.

Quando o senhor fala de greve dos investidores, está se referindo mais ao capital industrial ou ao capital financeiro?

Acho que nem um nem outro. Na verdade, me refiro aos dois. Os especuladores estão em tudo: na agricultura, na indústria, no comércio, onde você quiser. A classe capitalista vive ao redor da bolsa de valores, o capitalismo recente é assim no mundo inteiro, não só no Brasil. Assim, eles usam seu dinheiro para apostar; também investem, erram de vez em quando. Toda classe capitalista é especuladora financeira, não dá para falar de um único ramo exclusivo. O conjunto dos capitalistas de todos os ramos tem de apostar. Eles não têm outra opção, têm o dinheiro e aplicam no jogo. Nos anos 1970 houve várias crises do capitalismo, ninguém mais lembra direito.

Mas, principalmente, o que aconteceu nos anos 1970 foi a crise do petróleo. Os países exportadores de petróleo tentaram boicotar os Estados Unidos, por causa da guerra entre judeus e palestinos. O efeito econômico foi fulminante. Por causa do boicote, o preço do petróleo quintuplicou várias vezes, a primeira vez em 1974, depois em 1979. E o capitalismo passou por um processo de lucros em queda. Isso é uma das coisas que a burguesia não aguenta, ela tem dívidas; fizeram investimentos, não ganharam dinheiro e não podem nem pagar para o banco.

Daí a ideia, hoje muito forte na esquerda, de que o capitalismo virou capital financeiro: ele não é nem sequer o capitalismo que sempre foi. Fica evidente é que o banco hoje tem uma importância maior que tinha no passado, e eles estão levando na cabeça, porque seus clientes não conseguem pagar.

Estão falando o tempo todo de crise mundial, o que eu discordo. O que há é uma crise na Europa, e não mundial; não é a Europa inteira, mas de vários países que seguem a política que a Dilma está fazendo no Brasil. É o que a Grécia está fazendo e, apesar dos pesares, eles ganharam as eleições no referendo, e ainda assim não conseguiram mudar a política por causa dos bancos: eles são devedores dos grandes bancos franceses, alemães etc. Portugal, Itália, França, todos esses países estão em situação igual ou pior que a nossa.

Com relação à crise política atual, alguns falam de uma “crise de representatividade política”, que afeta os partidos políticos, da forma como se desenvolveram no século XX (em relação aos partidos operários, da socialdemocracia e comunistas, por exemplo, alguns faliram e outros estão em profunda decadência). O PT apresentava uma proposta de democracia participativa. O que ocorreu desde então?

Eu diria que a democracia participativa não foi um fracasso, tanto é que ela existe. A Constituição de 1988, sem dúvida, é a mais participativa que o Brasil já teve, desde D. Pedro I. Não vejo fracasso na democracia participativa…

Em outras entrevistas, o senhor havia dito que o PT pode perder sua base social…

Acho que já perdeu (quando eu falei, ainda não havia perdido). Hoje, nessa situação de maior desemprego da história brasileira, onde o povo é mais sacrificado, é o PT que está no governo.

O PT em aliança com o PMDB…

Eles fizeram essa aliança, e o PMDB rompeu rapidinho. Na verdade, não chegou a ser realmente uma aliança, foi mais um “toma lá, dá cá”. Com os acontecimentos recentes, isto é, a condução coercitiva de Lula e a sua ação e reação, parece que ele saiu das cordas. Saiu da posição mais recuada que se encontrava e, ao menos no discurso, parece que vai partir para a ofensiva. E considero significativo que quase automaticamente houve uma reação positiva em seu apoio, manifestações em vários lugares no Brasil, até mesmo uma vigília na casa dele...

Inclusive, quando a polícia foi buscá-lo para fazer o depoimento obrigatório forçado, houve uma reação por parte da população, deu briga. Um amigo meu chegou a me perguntar se eu não iria reagir, pois é uma afronta.

O senhor acha que ele teria condições de reagrupar o PT?

Acho que não, porque não há por que reagrupar o PT; o partido está dividido, é o que eu enxergo. O resultado é tão desastroso, do ponto de vista da economia popular, que eu deduzo que o PT já deve ter decepcionado seu público trabalhador... Mas é uma dedução, não tenho certeza.

Na ausência de lideranças populares, o senhor não vê nenhuma possibilidade de Lula tentar reagrupar, refazer uma aliança, aproximar-se dos setores da esquerda, diante de uma possível ameaça de golpe, na medida em que Dilma não tem mais condições de governar e a oposição não apresenta nenhuma alternativa de governo. Assim, estamos diante de uma crise de hegemonia, o que é um prato cheio para tentativas de golpe.

Neste momento, não vejo perspectivas de golpe...

E se houver o impeachment da Dilma?

Se houver o impeachment, as coisas dificilmente poderão piorar. A Dilma nos traiu com a melhor das intenções; estava querendo ver se ganhava confiança exatamente dos investidores, sem os quais não há crescimento possível.

O senhor acha que ela perdeu totalmente o apoio do PT?

Está perdendo. O PT, inclusive, fez um documento que eu gostei muito. Tem muito a ver com o que eu penso; eu não participei de nada, só vi depois. Estou feliz, já que a Dilma deu aquela reviravolta, foi eleita e, no dia seguinte, começou a aplicar o programa do Aécio, para ganhar confiança dos investidores. Começou a fazer o ajuste fiscal, que é a bandeira da extrema-direita no mundo inteiro; toda a Europa está fazendo ajuste fiscal, e está uma porcaria, todos sabem, muito desemprego etc. etc. O Brasil imitou a Europa sem necessidade alguma. O PT foi o maior partido de esquerda no Brasil, não há a menor dúvida disso. Minha queixa com a Dilma é que ela deu essa reviravolta após as eleições sem ter dado explicação a ninguém.

Porque, se deveria fazer o ajuste fiscal, ninguém sabia. Só se fosse para ganhar os investidores, só para isso serve. Só mais uma observação: quando o PT deu sua reviravolta para a direita, adotando a plataforma de quem ele havia vencido nas eleições, ficou vários meses desarvorado, não havia nenhuma reunião, não se discutia nada dentro do partido. Não havia chance de coisa alguma, ninguém sabia o que estava acontecendo.

Mas o PT conseguiu sair dessa situação de aparelhamento, o que pessoalmente me deixa mais feliz. O partido tomou uma posição, principalmente exigindo de Dilma que cuide da crise e não do ajuste fiscal, só que ela não abandona essa posição de ganhar a confiança dos investidores, é a personalidade dela. Ela é uma economista, conhece economia a fundo.

Por isso mesmo tenho dificuldade de entender por que insiste em uma política que é evidentemente um fracasso – fracasso enquanto ajuste fiscal. Ajuste, de acordo com o que meu amigo FHC mostrou, é o superávit: o governo gasta menos do que arrecada. Isso é receita para a crise. O governo brasileiro arrecada algo em torno de 37% sobre o PIB, é muito dinheiro. Se ele não gasta o que arrecada, é uma receita infalível de crise. Aí a indústria automobilística está mandando embora em massa, outras indústrias fazendo a mesma coisa... Não é possível que Dilma não esteja percebendo.

Qual é o papel dos movimentos sociais nessa situação? O MST, os movimentos urbanos, de mobilidade, que tipo de forças poderiam ter?
Poderiam indicar alguma direção, seja para o governo Dilma, seja para as lutas populares, que certamente vão se intensificar daqui em diante?

Bom, deixe eu dar minha análise. Acho que os movimentos sociais são importantíssimos hoje, no Brasil e também em outros países: o movimento de mulheres, dos negros, dos homossexuais… Nunca houve tantos movimentos relativamente bem organizados como hoje. Não é fogo de palha. Eles têm objetivos claros e definidos; são, a meu ver, o que nos resta.

Diria que há dois movimentos sociais grandes na esquerda, e que dão esperança de que a esquerda saia desse ponto morto: um é o MST e o outro é a CUT, ao menos em seu papel sindical junto à classe trabalhadora. O que quero dizer é que os movimentos sociais são extremamente importantes, não só no Brasil. Para mim, os movimentos sociais são praticamente as mulheres e os jovens. Minha impressão é a de que a juventude do mundo inteiro tem uma sede enorme por democracia.

O senhor acha que eles estão bem articulados entre si ou são setoriais?

São setoriais. Considero que deveriam se articular, pois têm demandas comuns, como direitos humanos, mas não tenho notícia de que o façam.

A CUT, nestes últimos anos, não esteve subordinada ao PT e ao governo?

Tenho hoje uma impressão diferente: ela está forçando o PT a romper com Dilma…

Mas antes a CUT tinha uma relação com o governo federal bastante forte...

Você tem toda razão, principalmente com Lula, mas ele está mudando, está começando a romper com a Dilma. Não gosto disso, mas é melhor que nada.

Na medida em que ele rompe com Dilma, se aproxima mais de setores como a CUT?

Sim, e com o MST também. O MST é um grande movimento. Eles são um dos nossos principais aliados.

E o PSOL?

Acho o PSOL uma boa influência sobre o PT.

[Ditadura militar]

O senhor viveu o pré-1964. O clima era mais acirrado do que agora?

Muito mais, não havia nenhuma Dilma em 1964. O principal porta-voz de Jango era Darcy Ribeiro. Darcy era provocador mesmo, ele anunciava o golpe antes mesmo de acontecer. A burguesia via os partidos comunistas como traidores, a quinta coluna da ditadura stalinista.

Como o senhor via Luiz Carlos Prestes?

Eu diria que Prestes era uma figura notável, mostrou talento militar, coragem etc. etc.  Depois engoliu o stalinismo por inteiro. O stalinismo foi um produto das guerras; é bom lembrar que a revolução russa foi vitoriosa depois de três anos de guerra, das guerras mais violentas... O próprio Trotsky se dizia leninista. O leninismo era o contrário de democracia. Lenin falava que, para construir o socialismo na União Soviética, todos teriam de se submeter à vontade da maioria – todos tinham de aceitar e obedecer. Lenin tinha essa vantagem: ele era franco.

O senhor foi preso em 1974. Como foi essa experiência?

Sim, fui preso na última fase da repressão da ditadura. Um amigo nosso que era professor da USP, na área de política, aceitou um convite para estudar, para passar algum tempo na Escócia, e, até ir para lá, resolveu mandar a si próprio pelos Correios um material que ele havia enterrado no jardim de sua casa, para não ser descoberto. Acontece que ele trabalhava no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e entregou o pacote para um office boy levar até uma agência dos Correios.

O pacote, contudo, estava empapado de água e os funcionários dos correios acabaram abrindo e perceberam que era material “subversivo”. Resultado: fui preso. Mas não tinham ideia de quem era o responsável por aquilo no Cebrap. Aparentemente, havia sido eu e o Vinícius Caldeira Brant...

Mas por que escolheram o senhor e não outros do Cebrap?

Não sei. Quando fui preso e comecei a ser interrogado, perguntei por que aquilo estava acontecendo. Eles provavelmente não sabiam… E me ameaçavam dizendo: “É você que vai nos contar por que você foi preso”. Fiquei preso acho que duas ou três semanas, sofrendo ameaças de torturas que não chegaram a acontecer.

Mas o Vinícius Caldeira Brant foi torturado…

Sim, ele foi. Depois que a gente foi posto em liberdade, conversando no Cebrap, contando uns aos outros o que tinha acontecido, o Vinicius atribuía o fato de ter sido torturado porque se mostrou arrogante. Ele dizia para eles: “Olha, vocês me torturaram meses a fio e eu não abri a boca. O que adianta? Agora o que vocês vão fazer?” Aí eles torturavam de novo.

Isso foi na Operação Bandeirante (Oban)?

Sim, era na Oban. Levaram-me de casa até o quartel na rua Manoel da Nóbrega, sem dizer nada a não ser que eram do Exército. Eu também não estava disposto a resistir. Minha mulher tentou me visitar, levar livros e coisas assim, e foi muito maltratada. Ela falava: “Meu marido está aqui, eu queria levar essas coisas pra ele”. Eles respondiam: “Qual é a patente dele?”. Faziam questão de dizer que ali só havia militares.

[Cuba ontem e hoje]

A Revolução Cubana foi um marco para toda uma geração de intelectuais e militantes. Qual foi o impacto que ela provocou no senhor?

Entusiasmo. Foi a primeira vez que vi acontecer uma revolução na América Latina. Golpes que derrubaram governos eram frequentes, mas nunca significaram uma transformação mais ampla. Cuba realmente me entusiasmou.

O senhor acompanhou várias experiências socialistas ao longo do século XX, diferentes modelos econômicos do socialismo real, o do socialismo de mercado, a autogestão na Iugoslávia, o modelo cubano, que está se modificando bastante, e hoje o senhor aposta na economia solidária…

Não quero ser pretensioso, mas algumas pessoas me disseram que Cuba agora está lutando por uma economia solidária. Estive em Cuba várias vezes e foi uma surpresa muito agradável. Cuba tem hoje uma lei que permite a qualquer agrupamento de trabalhadores montar uma cooperativa a partir de seu próprio trabalho, desde que aprovada pelo governo, o que demonstra que os trabalhadores são capazes de captar o próprio capital. Pelo que li, na maior parte das vezes essas iniciativas recebem o ok do ministro. Eu jantei em um restaurante cooperativo, que é bem típico do que está acontecendo.

Essas novas cooperativas não agrícolas só existem em Cuba. As cooperativas sempre foram do regime, sempre apoiaram Fidel Castro e foram premiadas. Cheguei a ter reuniões com eles, só que agora Cuba está em um processo consciente de desestatização. Uma economia centralmente planejada, como a União Soviética teve e Cuba também, só tem sentido em época de guerra. Se se está em guerra é bom concentrar tudo com aquele objetivo, ou é derrota. No tempo de paz, é um fracasso. Houve um caso em Cuba onde havia um espaço para jovens dançarem, ouvirem música, namorarem, enfim se divertirem. Como qualquer estatal, o resultado era que a coisa andava às moscas.

Assim, os empregados daquele espaço resolveram criar uma cooperativa, submeteram ao ministro, e agora está lotado de jovens; é um verdadeiro sucesso. E isso não é um caso isolado. Eu diria que é óbvio que quando se criam monopólios em nome de um partido político o atendimento da população será sempre ruim, ainda que não seja proposital.

Em Cuba, o senhor participou de reuniões, deu palestras?

Sim, a convite da Universidade de Havana. Tive reuniões encantadoras, muito boas.

Isso em que ano?

Recentemente, nos últimos dois anos.

Durante o governo Raúl Castro, portanto. Sendo assim, o senhor faz parte dessa mudança com a entrada de Raúl.

Por incrível que pareça, sim. Eu não esperava que isso tivesse tanta influência, nas discussões que tive nas universidades, nas perguntas que me fizeram; mostraram que sabiam do que estávamos falando.

[Os intelectuais]

O professor Emir Sader mandou-lhe um abraço e duas perguntas: como evoluiu, na sua cabeça, a ideia de socialismo, desde os austro-marxistas, passando por Rosa Luxemburgo, até chegar à economia solidária? Ela seria, para o senhor, a alternativa socialista em escala mundial? E quais os autores que até hoje o senhor considera fundamentais para pensar o mundo?

Difícil responder a uma questão tão boa em poucas linhas. O que posso dizer é que o que há em comum entre o pensamento dos austro-marxistas e o meu é apenas a história e a geografia: nasci e fui criado na Áustria, mas só me envolvi em política, desde muito cedo, no Brasil.

Sobre Rosa Luxemburgo, a relação é o futuro do cooperativismo, discutido profundamente por ela e por Bernstein. Mas, diferente deles, entendo que as cooperativas têm todas as condições de constituir uma economia socialista, já que elas são autônomas e democráticas. E isso tem tudo a ver com economia solidária. Sem dúvida, Rosa Luxemburgo é uma autora que considero fundamental para pensar o mundo; também o subcomandante zapatista Marcos, pelo tipo de homem que era, sempre modesto. Eu diria que é um bom exemplo do revolucionário que a gente precisa. É preciso deixar claro que Marcos, pelo que sei, não é um autor, apenas um líder político militar.

O que importa aqui é seu exemplo. Algo que admiro muito no movimento zapatista é o fato de não se levarem a sério demais e serem integralmente democráticos. Além disso, realizam um trabalho importante junto às comunidades indígenas e promovem a emancipação feminina. Daí a relação com a economia solidária.

O Brasil teve grandes pensadores, intelectuais com uma visão de país e de “nação”, intérpretes sofisticados de nossa realidade, homens como Darcy Ribeiro, Caio Prado Jr, Nelson Werneck Sodré, Celso Furtado, Florestan Fernandes. No Brasil de hoje, há algum político ou intelectual que seja um exemplo de seriedade, de trabalho, alguém que o senhor admire?

Há uma porção de gente boa na esquerda brasileira. Eu tenho a percepção hoje de que o mundo aspira por mais liberdade, mais democracia, e os porta-vozes são os jovens, a nova geração que vem aí poderá fazer melhor que nós. Embora não sejam brasileiros, duas figuras que considero inspiradoras são Rosa Luxemburgo e o Papa Francisco.

Na linha do que Emir perguntou, sobre as suas influências, Ignácio Rangel e Celso Furtado seriam dois nomes importantes? Você podia falar um pouco da relação intelectual e de amizade entre vocês?

Os dois eram amigos meus, especialmente o Celso Furtado. O filho dele, que também é economista, foi trabalhar no Cebrap, tornou-se um discípulo meu, trabalhamos juntos. Fui convidado para dar aulas na PUC-SP e o Celso também ministrava aulas no curso de pós-graduação. Aí, nos encontramos, cumprimentamos e lembro que ele se queixou amargamente dos paulistas – achava que os paulistas eram muito orgulhosos; ele era paraibano, mas vivia mais no Rio.

E como foi o seu encontro com o Florestan Fernandes?

Florestan tinha um centro de estudos do trabalho e, como sociólogo, ficou interessado em entender o processo de diferenciação das cidades brasileiras, tanto as mais ricas, como São Paulo, como outras, muito mais pobres. Ele queria deixar de lado os aspectos econômicos, queria focar os aspectos sociológicos, sociais etc. Aí falou para seus assistentes que estava procurando um economista, e eles me indicaram. Ele me convidou, e eu aceitei como trabalho profissional.

Fiz uns estudos de Porto Alegre, de Blumenau, de Recife e de Belo Horizonte, levantei histórias nessas cidades, o que foi fácil fazer porque geralmente os que tomam conta dos documentos se sentem honrados quando são procurados por um intelectual. Foram cinco relatórios. Quando entreguei o último, que era sobre São Paulo, ele disse que aquele poderia dar uma tese. E assim ele se tornou meu orientador do doutorado.

Quando surgiu, o PT contou com o senhor, com Mario Pedrosa, Francisco Weffort, Plínio de Arruda Sampaio e Chico de Oliveira, entre outros. Como era o convívio entre esses intelectuais nos primeiros anos na construção do partido?

As coisas giravam bastante em volta do Cebrap, especialmente com Chico de Oliveira, já que éramos colegas de trabalho. De todo modo, todos eram intelectuais influentes no desenvolvimento do PT como polo político dos movimentos sociais de esquerda no Brasil. É importante incluir no grupo Maria da Conceição Tavares, devido a sua atuação como economista e militante de esquerda.

O Cebrap forneceu quadros intelectuais tanto para a formação do PT quanto para a do PSDB (José Serra, FHC, Bresser-Pereira, Weffort). O Centro foi, usando a expressão do Caio Navarro de Toledo, a “fábrica de ideologias” dos anos 1970.

Sei que nós desenvolvemos fortes laços de amizade; Fernando Henrique até hoje é meu amigo, por mais que divirja – não tenho discutido política com ele para não brigar. O que posso recordar de muito significativo foi o estudo de O capital, de Marx, na USP. O professor Gianotti foi o pai dessa ideia; ele havia passado alguns anos na França, voltou com sotaque francês... Eu o conheci nessa ocasião. E ele veio com a ideia de que o O capital não é um livro só sobre economia, é muito mais do que isso. E que deveria ser estudado por pessoas de diferentes áreas.

Vocês chegaram a debater o Althusser nessa época?

Não. Quem poderia debater o Althusser seria somente o professor Gianotti.

Como era o trânsito dos intelectuais na formação do PT com o Lula e os sindicalistas?

Era intenso e agradável; lembro-me de dar seminários para os sindicalistas, ao lado de Marilena Chauí. Coincidíamos, em linhas gerais, sobre o entendimento do socialismo.

Um pouco antes desse período, como foi sua relação com Caio Prado Jr.? Ele era mais velho, mas como vocês se conheceram e que tipo de influência os livros dele tiveram sobre o senhor?

Uma influência enorme. Realmente me tornei fã de Caio Prado por causa do livro História econômica do Brasil. Celso Furtado também foi outro intelectual que me influenciou muito. Rangel foi uma figura que também me influenciou, desenvolvemos relações bastante amistosas.

Mas o senhor chegou a frequentar a casa de Caio?

Lembro-me de conversas… Em uma dessas ele desabafou, demonstrando profunda decepção com Celso Furtado, que em seu livro não citou o Caio.

Você foi amigo de Maurício Tragtenberg?

Fomos amigos na adolescência, eu era secretário do movimento kibutziano.

Como o senhor vê Moniz Bandeira e sua obra? Vocês estavam juntos na Polop, nos anos 1960.

Com o Moniz Bandeira tive pouco contato, primeiramente porque ele vivia no Rio de Janeiro e eu aqui em São Paulo. Não há muito a acrescentar, exceto o fato de que tenho grande admiração pelo trabalho do jornalista.

[Economia solidária]

Qual é o balanço que o senhor faz a respeito da economia solidária?

Quando nós começamos com os estudos acerca da economia solidária, fui literalmente convidado para o mundo todo: aceitei convites para falar na África, na Ásia, na América Latina praticamente toda. Uma das grandes alternativas da esquerda mundial é a economia solidária, que hoje é um movimento mundial.

A ideia de economia solidária remete bastante a uma série de movimentos dos tempos da Primeira Internacional. Naquele rico movimento do socialismo do século 19 temos a alternativa de Marx e Engels pela ação política, do Proudhon pelo mutualismo…

Quem eu andei lendo desse período e vejo como meu antecessor é Robert Owen (1771-1858). Ele é simplesmente o inventor do socialismo, do cooperativismo, que depois se transformou numa doutrina.

Hoje em dia, do ponto de vista do capital, se fala muito em empreendedorismo; isso dentro de uma lógica do capital. A economia solidária é algo como o processo do desenvolvimento do socialismo que não é mais tomada de assalto do poder político, mas pelo movimento na economia… É isso?

As cooperativas já configuram um novo regime. Elas configuram o socialismo, em primeiro lugar, porque os donos da cooperativa sempre são aqueles que nela trabalham e não têm patrão, ou seja, ninguém manda em ninguém. A essência do socialismo é esta: total democracia e igualdade entre todos. Além disso, a realidade das cooperativas mostra ser possível uma organização de trabalhadores em que os valores do socialismo são integralmente praticados.

É um regime que está se dando dentro do próprio capitalismo? Como está o movimento cooperativista no Brasil?

Muito vigoroso.

Em termos numéricos, só para termos uma ideia…

Vou dizer os números do mapeamento da economia solidária da minha secretaria: no Brasil, na ordem de 30 mil.

Mais no Sul, Nordeste, Sudeste?

Mais no Nordeste, e mais no campo. A maior parte das cooperativas brasileiras é de camponeses; portanto, o MST é economia solidária. Levou um tempo para perceberem que são.

E o caso da Iugoslávia de Tito, como você entende?

É um caso muito interessante. Eu andei lendo por causa da economia solidária, fui ler em detalhe. Embora estivesse sob um regime ditatorial, a organização de trabalho era uma coisa muito democrática. As cooperativas que lá foram generalizadas estavam em grande medida submetidas ao poder local, tinham de aceitar as injunções do poder local.

Onde você destacaria o papel da economia solidária?

Não sei se vocês sabiam, mas a Argentina era o país mais rico do mundo. A Argentina é europeia, não vou dizer que é latino-americana; eles têm uma cultura europeia, é um país culto. Estou falando isso, pois tenho um contato muito estreito tanto com a Argentina quanto com Cuba, por causa da economia solidária. Na Argentina há grandes intelectuais que tratam do assunto. Um em particular, que é muito amigo meu, chama-se José Luis Coraggio, tem vários livros escritos e é meu companheiro na economia solidária. Vale a pena ler os livros dele. Ele foi reitor da Universidade José Sarmiento, que fica na periferia de Buenos Aires.

Mas também é possível encontrar exemplos na África do Norte, e eu diria que o movimento é bastante vigoroso na Ásia, onde fica a coordenação mundial do movimento. A economia solidária tem organizações mundiais, a sede é nas Filipinas. Fiquei algumas semanas lá e encontrei muita gente atuante em relação à Economia Solidária.

O movimento cooperativista tem várias linhas…

Creio que sim, é um movimento grande. Mas como é descentralizado, não dispomos de informações sobre que linhas seriam essas.

[Israel e Palestina]

Como o senhor vê Israel ontem e hoje, não só nas relações sociais dentro do Estado de Israel, mas aquelas mais amplas com os palestinos?

Fui membro do movimento juvenil que visava os kibutz. Meus companheiros, inclusive brasileiros, criaram movimentos kibutz que estão aí até hoje. Pelo que sei, está acontecendo com esse movimento a mesma coisa que está acontecendo no Brasil. Eles estão se adaptando ao capitalismo, por questões econômicas, e não ideológicas, muito parecido com a Dilma. Mas continuam coletivistas e muito democráticos.

Agora a questão da democracia com relação aos palestinos. Percebe-se uma crise da democracia, e a impressão que se tem é que está havendo um retrocesso. Há uma ofensiva dos setores mais conservadores. Encontram-se na Turquia, em Israel ou nos Estados Unidos, por exemplo, figuras como Trump. Também na América Latina, na Argentina, na Venezuela, em vários países...

Israel é um desses casos de retrocesso. No caso específico de Israel, é uma nova geração, de fanáticos religiosos que dizem “Os palestinos são todos fanáticos, e Deus nos prometeu essa terra, ela é nossa, não vamos abrir mão de um centímetro sequer”.


Entrevista concedida a Luiz Bernardo Pericás e Paulo Barsotti à Revista Margem Esquerda, editada pela Boitempo.

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