Terceira Onda flerta com ruptura institucional
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- 30/05/2018
Hamilton Octavio de Souza
A mais ampla e longa paralisação dos caminhoneiros da história recente causou não apenas a interrupção do transporte de combustíveis, de alimentos e de toda a gama de mercadorias, como também afetou duramente a cadeia produtiva em diferentes setores industriais. Os prejuízos são incomensuráveis: atingiu a economia, as empresas, os serviços públicos, os trabalhadores e a vida das pessoas nos grandes centros urbanos e no interior do país. Quase nada escapou dos efeitos da paralisação, mesmo porque o sistema nacional de transportes é majoritariamente dependente da malha rodoviária e dos combustíveis tradicionais dos veículos automotores.
Embora não se tenha um balanço completo dessa paralisação, que alcançou praticamente todos os estados brasileiros, já se pode considerar que além de danos econômicos existem também as consequências políticas, em especial no processo eleitoral de 2018. O movimento dos caminhoneiros apresentou no início, em 21 de maio, reivindicações tipicamente econômicas (baixar o preço do óleo diesel) e de condições de trabalho (mudança no mecanismo de reajuste do diesel), que têm a ver com a política adotada pela Petrobras nos últimos anos. No decorrer do movimento foram incluídas outras demandas de natureza política, como a redução de impostos e dos pedágios, o “fim do governo Temer” e pedido de “Intervenção Militar Já”, conforme faixas expostas em inúmeros bloqueios.
Quem viajou pelo país nos últimos dias pode constatar in loco que o movimento dos caminhoneiros recebeu apoio expressivo de várias categorias econômicas (proprietários rurais), categorias de trabalhadores autônomos (proprietários de vans, de táxis e moto-táxis) e de trabalhadores assalariados, que se manifestaram pelas redes sociais e nas ruas e estradas com atos de apoio. Em inúmeros bloqueios e manifestações pelo interior de São Paulo e Minas Gerais, os caminhoneiros e grupos de apoiadores empunhavam a bandeira do Brasil, cartazes de protestos conta o governo e, quase sempre, o pedido de “Intervenção Militar”.
Tentando compreender o ânimo popular
Está claro que a paralisação dos caminhoneiros conseguiu unificar diferentes setores, em alguns lugares com movimentos sindicais e sociais mais vinculados ao campo político e ideológico progressista e de esquerda; mas, na maioria das situações a unificação aconteceu com grupos descontentes com as instituições (Executivo, Legislativo e Judiciário), com os partidos políticos e contra todos os envolvidos nos escândalos de corrupção. Tais manifestações deixam claro que a apatia e o silêncio político estão sendo rompidos por segmentos e setores sociais que caminham para a oposição aos mecanismos da incipiente democracia brasileira, a ponto de defenderem propostas como a “Intervenção Militar Já”, que prega a ruptura institucional e a defesa do autoritarismo.
Pode parecer chocante e assustador que parcela da população brasileira tenha se esquecido da Ditadura Militar (1964-1985) e defenda saídas para a nossa atual crise política-institucional fora dos caminhos democráticos, entre os quais a destituição do governo e a volta dos militares ao poder máximo na República.
Parece evidente que o atual Estado Democrático de Direito não tem sido eficiente no atendimento das demandas da população, por não atender o que o povo quer e não conseguir dar respostas satisfatórias; assim a “ordem democrática” acaba por empurrar parcelas da população para o terreno do desalento e da descrença generalizada, o que só alimenta as ideias totalitárias e o uso da força e da violência na resolução de problemas que são de ordem política. “Intervenção Já” radicaliza o “Fora Temer” proclamado pelo PT e seus aliados, pois “Intervenção Já” significa tirar o Temer e colocar no lugar de imediato um governo militar sem levar em conta a agenda das eleições presidenciais deste ano.
Ganha força em ano eleitoral uma proposta de ruptura institucional, que pode canalizar a favor ou contra determinadas candidaturas e pode também criar respaldo para a não aceitação do resultado eleitoral. Se o movimento por “Intervenção Militar Já” fosse a expressão de revolta popular dos trabalhadores e dos pobres, provavelmente alguns analistas tenderiam a considerar como sendo um movimento progressista e até de esquerda, em situação pré-revolucionária, que se contrapõe ao sistema capitalista dominante e propõe a substituição do atual governo por um processo de socialização do país.
Mas não. O que tem caracterizado até agora esse movimento por “Intervenção Militar Já” é a junção de diferentes setores descontentes com o viciado jogo político dos poderes da República, e que denunciam o chamado Estado Democrático de Direito de manter os eternos privilégios das elites (econômicas e políticas), sustentar a corrupção e não dar o devido atendimento das demandas essenciais dos brasileiros. Esse movimento não trabalha com a lógica de que a democracia precisa ser preservada e aperfeiçoada todos os dias, mas com a lógica de que só resta apelar para o regime de força.
Portanto, não há que se falar em existência de processo pré-revolucionário ou em avanço político e social das massas. O que está na ordem do dia dos que pregam a “Intervenção Militar Já” é substituir a falha e cansativa lengalenga democrática das elites brasileiras por uma ditadura, que, convenhamos, já tivemos não faz muito tempo e não é nenhuma saída positiva e construtiva para a crise de representação política que o país vive.
Com muito boa vontade até dá para entender, dialeticamente, porque a radicalização de determinadas posições caminhou para essa direita autoritária. Uma hipótese bem provável está em analisar o comportamento da população na sequência de manifestações ocorridas nos últimos anos, com as perspectivas criadas e seus resultados, com as fantasias e as frustrações, entre as quais podemos destacar as maiores mobilizações de diferentes segmentos sociais ocorridas nos últimos anos.
Primeira onda
A primeira onda mostrou a maior insatisfação generalizada contra a ordem estabelecida desde o impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1992. Aconteceu em junho de 2013 com a iniciativa do Movimento Passe Livre (MPL), que durante meses mobilizou contra a exploração dos transportes urbanos e pelo direito de mobilidade especialmente para as classes trabalhadoras e para a juventude estudantil completamente desprovida de recursos financeiros. A partir das marchas do MPL, milhões de pessoas foram para as ruas em centenas de cidades brasileiras para reivindicar de tudo, especialmente melhorias na educação e na saúde, programas de moradia, fim da corrupção, e com críticas duras a todos os partidos, em particular ao governo de Dilma Rousseff, do PT.
Muita gente alimentou a esperança de que bastava ir para as ruas que as coisas iriam mudar. O governo Dilma encenou o atendimento de alguns pontos do extrato das reivindicações, mas não demonstrou empenho em levar adiante medidas efetivas para atender o clamor popular. O Congresso Nacional desconversou sobre todas as questões apontadas nas ruas. Nada mudou efetivamente e, em 2014, a presidente Dilma foi reeleita com discurso cheio de promessas vazias e com os votos de apenas 38% do eleitorado, uma base política bastante frágil.
A segunda onda ocorreu em 2015 e 2016 com foco no impeachment da presidente Dilma Rousseff, depois do estelionato eleitoral de 2014. Foi conduzida principalmente por setores das classes médias, mas com repercussão na maioria da população. O desemprego e o descontentamento com o discurso dos partidos políticos deram força para as grandes manifestações, que deram um salto em relação aos protestos reivindicatórios de 2013 na medida em que o foco principal, inclusive mais radicalizado, era uma proposta de natureza política – o impeachment da presidente da República.
Mesmo que já tenham aparecido nessas manifestações os defensores da “Intervenção Militar Já”, era uma palavra de ordem visivelmente minoritária, sem maior expressão e até isolada e contestada pelos demais manifestantes. Fica claro agora, diante do que está ocorrendo, que as manifestações pelo impeachment ainda guardavam respeito à ordem constitucional e ao chamado Estado Democrático de Direito. Embora os petistas e seus aliados tenham apelidado o processo de “golpe”, o fato é que o vice-presidente constitucional assumiu o governo com o respaldo do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional.
Segunda onda
Nas manifestações de 2015 e 2016, os setores conservadores das classes médias queriam mudanças, mas não defenderam o fim da democracia ou a ruptura com o atual Estado Democrático de Direito. A troca de Dilma por Michel Temer não resolveu a crise econômica, não acabou com o desemprego, não acabou com a corrupção e ainda por cima desmontou o papel do Estado em inúmeros programas sociais. Ou seja, o impeachment serviu para aumentar a frustração com a política e com o governo.
Agora não se busca saída pela via constitucional. O movimento dos caminhoneiros carrega junto, com a conivência ou não da categoria, com “infiltrados” ou não, diversos setores que foram para as ruas em 2013, depois em 2015 e 2016 agora com posição mais radicalizada, na qual não se fala mais em processo eleitoral e na defesa da democracia, mas dá nome e sobrenome ao que se quer: nada mais nada menos do que “Intervenção Militar Já”. Não dá para negar e nem esconder que esse grupo descontente, que é crítico e se opõe ao regime atual, está crescendo rapidamente com proposta bem mais radicalizada.
A terceira onda está em andamento e é a expressão viva dos setores mais afinados com a direita e não guardam compromissos com as liberdades democráticas. São aqueles que pedem “Intervenção Militar Já” ou que manifestam saudades da Ditadura Militar. Esses segmentos estão crescendo há vários anos principalmente porque os governos eleitos democraticamente – Executivo e Legislativo – não dão respostas às principais demandas das classes médias e do povo. Quando as eleições e as manifestações de protestos não mudam as políticas públicas, reforça-se em boa parte da população a busca por saídas autoritárias. Essa onda pode estremecer a institucionalidade e provocar rupturas à incipiente democracia brasileira.
Se as instituições da República (Executivo, Legislativo e Judiciário) não conseguem conquistar credibilidade e estabelecer maior coerência nas vantagens do regime democrático, resta um grande esforço de partidos políticos e candidatos em consolidar, no processo eleitoral deste ano, o máximo de legitimidade. É preciso dar o máximo de transparência e veracidade aos programas dos candidatos, encarar a construção da democracia com seriedade, respeitar as regras eleitorais sem manobras oportunistas, de maneira que a eleição democrática seja tão respeitada que a tentação autoritária possa ser descartada.
Ao contrário, todas as ações para desmoralizar a realização de um processo eleitoral legítimo e democrático só vai fortalecer o caminho da “Intervenção Militar Já”. Por favor, gente, ditadura nunca mais.
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Hamilton Octavio de Souza é jornalista e professor universitário.
Hamilton Octavio de Souza