“Precisamos considerar a quebra da carapuça democrática do Estado Brasileiro depois das eleições"
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- 24/07/2018
Raphael Sanz, da Redação
Perto de ver Michel Temer completar seu mandato-tampão, o Brasil ainda vive um clima político bastante instável e se esforça para entender as causas e consequências deste momento tão desfavorável para os trabalhadores e setores populares em geral. Sobre esta dura conjuntura nacional e suas perspectivas, conversamos com o jornalista Pedro Marín, que recentemente publicou o livro “Golpe é Guerra: teses para enterrar 2016”.
“A chave para entender o golpe na concepção desse livro não é se há crise política ou Operação Lava Jato. Isto, é claro, teve uma importância, mas a chave é o fato de que os golpistas tinham um projeto e realmente empregaram seus planos sem titubear, corajosamente, levaram às últimas instâncias e não se dispuseram a negociar. Infelizmente, acredito que tem faltado essa audácia na esquerda brasileira”, afirmou.
A partir da análise da prisão do ex-presidente Lula, Marín discute mudanças no pensamento de esquerda e projeta possíveis cenários futuros. “A prisão do Lula demonstrou que as bases mobilizadas têm vontade de resistir e a cúpula vai evitar a resistência até o último momento. Por outro lado, mostrou também que não basta simplesmente que uma injustiça ocorra, ou um avanço contra uma figura popular, para que as pessoas – aquelas que não estão nos movimentos sociais – se mobilizem. E em terceiro, demonstrou que realmente a concepção de confiar na via institucional, na resolução dos conflitos por via judicial não tem limites dentro do Partido dos Trabalhadores – e o Lula reiterou isso justamente no momento em que estava sendo preso, dizendo confiar na justiça”, afirmou.
Em relação às eleições nacionais de outubro, o jornalista não acredita em uma reviravolta na candidatura de Lula e preocupa-se com o fato de diversos agrupamentos estarem se mobilizando intensivamente em torno de uma eleição praticamente perdida, enquanto o outro lado já pode até ter articulado alguma coisa próxima de uma ‘saída autoritária’, como define.
“É um cenário muito indefinido e instável. As esquerdas não deveriam estar pensando tanto em eleições. Desde que Temer tomou o poder o papel dos militares na política brasileira tem crescido muito. É um paradoxo muito grande e a esquerda não está trabalhando com a possibilidade de uma quebra dessa carapuça democrática – isso pode nos custar muito, muito mesmo, não só em termos de projeto, mas em termos de liberdades políticas básicas”.
Leia, a seguir, a entrevista com Pedro Marín na íntegra.
Inserir foto: Pedro Marín
Correio da Cidadania: No seu livro “Golpe é Guerra” você aponta alguns fatores que auxiliaram a construção de um clima político propício para a quebra da legalidade/normalidade, o que permitiu que uma série de eventos outrora extraordinários pudesse acontecer em sequência. Resumidamente, como descreve tal processo?
Pedro Marín: Para começar, tínhamos o início de uma crise econômica que já aparecia como mais dura do que as enfrentadas durante os governos Lula. E em momento de crise econômica, também aparece a crise política.
Além disso, um fator importante na minha concepção é que nas eleições de 2014, por conta da crise, tivemos uma diferença entre os votos de Dilma e Aécio que foi muito pequena. Isso deixou a disputa política muito acirrada e eu acredito que nesse momento se definiu que ‘se há um momento para retomar o nosso projeto e impedir que o projeto petista se arraste por mais quatro anos, é agora, pois temos um governo enfraquecido pela crise econômica e pelo aumento de manifestações’.
Houve junho de 2013, o movimento no campo também estava dando uma reativada, houve também mobilizações na cidade no sentido de construir greves. Era um momento perfeito para os golpistas, pois seu inimigo, o governo petista, estava enfraquecido. Gostaria de dizer também que este momento poderia ter sido aproveitado pelo governo para se fortalecer, mas o que ocorreu foi o contrário.
Agora, na construção do golpe, tivemos uma série de momentos-chave. Aquela votação da flexibilização do orçamento foi muito importante, e as pessoas não costumam dar a importância devida porque foi logo depois das eleições, da vitória da Dilma. Também naquela época o Aécio Neves já falava em ‘deixar a Dilma no chão’, a oposição foi se organizando, começou a formar seu conluio que, em última instância, foi dar na eleição do Eduardo Cunha para presidente da Câmara.
Correio da Cidadania: Qual o papel dos grandes meios de comunicação?
Pedro Marín: Os meios de comunicação tiveram um papel-chave – e isso não sou eu que falo, nem só radicais de esquerda que falam – até o Repórter Sem Fronteiras afirmou que os meios de comunicação no Brasil trabalharam ativamente pela derrubada da Dilma. E aí o que acho interessante analisar é que se formou, por um lado, um conluio entre o Judiciário, a Operação Lava Jato e a imprensa.
Ao passo que a Lava Jato era tema na imprensa, ela se fortalecia com a cobertura. Por outro lado, houve um conluio entre os movimentos ‘sociais’ (com muitas aspas) que surgiram de última hora – como o MBL, o Vem Pra Rua e outras siglas – e a mídia, que também colocava gasolina na fogueira deles, incitando realmente as pessoas a tomarem parte nas manifestações. Uma coisa que só tinha acontecido na história recente em 2013. A partir de uma certa época de 2013, mais para o fim de junho, quando a Globo por exemplo ‘muda’ a opinião dela, junto com a Folha e o Estadão, da noite pro dia. Não por acharem que as pautas fossem justas, mas com vistas a criar este clima do qual estamos falando.
O problema é que os governos petistas não se libertaram da aliança suja com os grandes meios, ainda que tivessem uma política de incentivo a veículos menores, no fim do primeiro e no segundo mandato do Lula, mesmo tal política sendo algo muito pequeno perto do grande problema.
As pessoas precisam ter em mente que a família Marinho, por exemplo, surge com o jornal O Globo, mas se fortificou na ditadura com um movimento completamente ilegal, que foi um investimento da Time. Isso possibilitou à família Marinho ser a mais poderosa do Brasil hoje. Um problema gravíssimo para ser enfrentado. É uma fortuna que está calculada em torno de 28 bilhões de dólares, uma coisa absurda que infelizmente os governos petistas não enfrentaram.
É óbvio que se tivessem enfrentado iam ter contra si a revolta dos que recentemente deram o golpe, mas é melhor ter essa revolta contra si quando o governo estava fortificado, ou seja, quando tinha acabado de eleger uma figura notória como o Lula ou mesmo no primeiro mandato da Dilma, do que ter de enfrentar tal situação quando está fragilizado, a posteriori, sendo golpeado e não golpeando.
Correio da Cidadania: Como avalia a Operação Lava Jato? Acredita na noção de um novo patamar de judicialização e midiatização da política?
Pedro Marín: O que acho interessante da Lava Jato é que ela parece realmente o centro da organização de tudo isso. Ela cria a figura estranhíssima do delator. A maior parte dos empresários que estava envolvida nos esquemas de corrupção acabou se colocando em situação muito favorável para si em relação aos crimes que cometeram, por conta da delação.
Outra coisa digna de citação – não vou cravar pois não analisei profundamente – é a relação que a Operação Lava Jato tem com os Estados Unidos. O Moro mesmo fez um treinamento financiado pelo Departamento de Estado norte-americano justamente sobre combate a corrupção, cartéis etc.
Voltamos para a questão anterior, pois a Lava Jato fortifica e é fortificada pela mídia, e no fim as duas fortificam um discurso que naquele momento era pró-golpe. O que acho importante notar é que a gravidade da judicialização da política por um lado permite que você perceba seus inimigos abertamente, e por outro cria uma carapaça de legalidade e normalidade.
Ou seja, está enfrentando inimigos, mas parece que é tudo do jogo democrático e que se se estiver cumprindo a lei está tudo normal. Ao mesmo tempo, é muito estranho que uma Operação Lava Jato, por exemplo, tenha ido tão profundamente nos mandatos petistas sem ter se aprofundado tanto em outros partidos.
Correio da Cidadania: Acredita ser possível uma repetição desse processo ou algo semelhante, como você até descreve no primeiro capítulo do livro, após as eleições desse ano, uma vez que novamente não vemos um grande consenso eleitoral sendo construído nas bases da sociedade?
Pedro Marín: Realmente o cenário eleitoral é bastante obscuro. Quando eu coloco a questão da eleição é porque por um lado existia uma divisão real na sociedade, mas o mais importante é que aquilo explicitou para setores que já tinham interesses em se movimentar para derrubar o governo que era o momento certo para tal. Se não estou enganado, na eleição anterior foram 12 pontos percentuais de diferença na votação do segundo turno e na de 2014 foram apenas 3, uma margem muito pequena.
A grande questão para as eleições é que pode, sim, haver algo parecido. Com a sociedade bastante dividida, os golpistas têm um problema: o plano econômico deles não se sustenta politicamente a médio prazo. Terão de criar farsas e colocar novas fantasias para ver se conseguem levar a casa.
Por um lado o Bolsonaro, por outro o Alckmin, que é o representante ‘A’ dessa coisa velha, mas que também tenta se renovar. Se houver uma divisão grande, ou seja, uma pequena diferença na margem de votos, a questão é se as esquerdas ou os democratas vão ter a audácia de levar a cabo seu projeto como os golpistas levaram o deles em 2015.
A chave para entender o golpe na concepção do livro não é por ter muita divisão, crise política ou Operação Lava Jato. Isto, é claro, teve uma importância, mas a questão é que eles realmente empregaram seus planos sem titubear, corajosamente, e levaram às últimas instâncias – e não se dispuseram a negociar.
Se tivermos uma eleição no mínimo similar à de 2014 e tivermos coragem de fazer isso, entre as esquerdas, aí sem dúvidas poderíamos repetir o expediente, para o “nosso lado”. Mas infelizmente acredito que tem faltado a audácia necessária na esquerda brasileira.
Correio da Cidadania: Ao longo dos capítulos 2 e 3, você apresenta uma tese, a partir de uma reflexão de perspectiva histórica, de que quem não está pronto e com vontade de lutar, acaba perdendo a disputa – justifica por aí, inclusive, o triunfo do golpe, por conta de uma espécie de recusa ao confronto político por parte das forças de esquerda. A partir dessa visão, como explicamos o fato de que apenas um ano depois da posse de Michel Temer é que tivemos uma chamada de greve geral?
Pedro Marín: É um ponto delicado porque é aquela coisa: eu não sou dirigente de central sindical, de modo que podem vir me acusar de alguma coisa. Mas nesse momento, em que as bases petistas estão percebendo que realmente a inação dentro do partido, as lideranças têm repetido muito o discurso de que ‘dirigente sabe de coisas que vocês não sabem, tem que confiar neles’.
O próprio Lula já deu declarações no sentido de que ‘podíamos ter mobilizado as pessoas, podíamos ter feito o enfrentamento, mas não fizemos porque eu acredito muito na institucionalidade, na Justiça etc.’, ou seja, o próprio Lula reconhece que não era uma falta de capacidade de mobilizar, mas uma falta de vontade.
E mesmo que tivesse ocorrido uma dificuldade das centrais sindicais de mobilizar, também seria algo grave e sintomático. O cálculo era o seguinte: a gente conquista o governo e daí precisamos de alguém para nos ajudar a levar a cabo nosso projeto. As centrais sindicais e o MST eram esses atores, só que o que aconteceu à medida que o PT conquistou o governo foi o contrário.
O Aldo Fornazieri fala de um dirigente petista que, reunido com ele, disse que tinha um certo momento em que achavam que os movimentos sociais causariam problemas ao governo. O governo e os dirigentes petistas tentaram acalmar os ânimos, ao invés de fazer o contrário. Ao invés de fazer, por exemplo, a concepção que o Brizola tinha, de criar a cisão, o movimento querer ir mais pra frente e o governo deixar avançar.
Nesse sentido é gravíssimo que só em 2017 tenha tido uma greve geral, que foi importante. Na época o governo Temer saiu dando declarações de que a greve tinha sido um fracasso, mas não dá pra comprar o discurso. Eu estava em Santos e acompanhei a movimentação dos estivadores.
Vejamos por exemplo a greve de caminhoneiros, ao que tudo indica dirigida, sim, por organizações patronais, mas também por trabalhadores, mobilizada de uma forma meio maluca, por whatsapp etc. Ainda assim, a greve dos caminhoneiros teve um resultado desastroso para o governo Temer, muito mais do que qualquer greve que tenha partido da esquerda nos últimos tempos. Acho isso desastroso, mas a História ainda vai demonstrar se de fato podia ter havido mobilização ou não. De toda forma, reitero, há responsabilidade política.
Mesmo que a afirmação do Lula seja incorreta (de que não se quis mobilizar), e no caso seria uma falta de capacidade de mobilização, a situação diz muito sobre o PT, tendo em vista que o partido nasceu de mobilizações e realizou mobilizações inacreditáveis na década de 80. É grave.
Também houve aquela acomodação no governo, o discurso de que ‘a gente não precisa mais fazer disputa política, porque conseguimos o poder’. É importante frisar que eles conseguiram o governo, mas o poder, em última instância, nunca consegue totalmente, tem sempre de brigar porque sempre vai ter alguém querendo tomá-lo.
Portanto, deixaram os movimentos sociais de lado, militaram muito na institucionalidade, na resolução de conflitos por meio de negociações, na tese republicana e abandonaram o que era fonte prioritária, tanto de identidade quanto de força do Partido dos Trabalhadores, que eram os movimentos populares.
Correio da Cidadania: Como analisa a recente prisão do ex-presidente Lula em meio a essa conjuntura e a reação popular a este evento de enorme peso histórico?
Pedro Marín: Primeiro quero registrar que apesar das minhas críticas, que podem ser tomadas como muito fortes, tenho um apego pelos governos do PT que chega a um ponto quase sentimental porque fui um beneficiado direto desses governos. Só pude entrar na universidade, por exemplo, por conta do Prouni. É inegável que a minha situação pessoal, e da minha família, melhorou durante os governos. E o Lula, sem dúvida, é uma liderança importante. Tanto é que mesmo preso lidera as pesquisas.
E justamente por conta disso, por ser uma figura hábil na política apesar dos erros, é que tinham de dar um jeito de tirá-lo da corrida eleitoral. A prisão foi a maneira encontrada. Acredito que realmente não tem essa de insistir na candidatura do Lula, pois ainda que tenha um sentido político, não vai acontecer. Eu espero que o PT, apesar de afirmar que está com Lula até o final, tenha isso em mente. Porque não faria sentido os golpistas se mobilizarem todo esse tempo, desde o final de 2014, derrubarem a presidência, destruírem as organizações de esquerda e prenderem o Lula para, aos 45 do segundo tempo, deixarem o Lula se candidatar e muito provavelmente ganhar as eleições. Não faria sentido os golpistas agirem assim, seria como eles darem um passo atrás, sem que a gente tenha um dado à frente. E na política, e em especial em tempos de crise, o inimigo só dá um passo atrás se você der um pra frente.
É evidente que a prisão do Lula tem um sentido: impedir que ele ganhe as eleições.
Em relação à reação popular, quando houve a prisão dele ali no sindicato dos metalúrgicos, vi duas coisas interessantes. A primeira é que as pessoas que foram até lá tinham posições políticas muito amplas, muito diferentes umas das outras, demonstrando que existe uma importância histórica ali que vai além do projeto petista.
A segunda coisa interessante nesse caso é que teve uma mobilização no sentido dele não se entregar quando teria de se entregar. Um grupo bloqueou o portão e não queria deixá-lo sair. Isso demonstra, ainda que seja um caso pequeno, e ainda que realmente não tivesse muito o que se fazer em último caso, que existe uma vontade nas bases pelo conflito, que as bases entenderam que vai ter um momento em que vai precisar bater o pé e que não adianta ficar na mesma ladainha de tentar resolver as coisas pela via institucional.
Aquele era um momento, na minha concepção, em que os policiais federais iam ter que cumprir o mandato e prender o homem. Mas se houvesse resistência seria criado um fato político. Se o Lula por exemplo falasse que não ia, que eles teriam de buscá-lo lá, seria criado um fato político e poder-se-ia repercutir a mobilização popular em torno disso e ao mesmo tempo jogar um problema na mão do Moro – não o contrário.
Outra coisa que acho engraçada: o Moro decretou a prisão um dia depois do julgamento no STF e ao que parece, pelas informações que tive, inclusive da grande imprensa, as cúpulas petistas achavam que ele iria demorar mais para decretar a prisão. E isso é realmente um erro muito pueril – Maquiavel tratou disso insistentemente. Quando o Príncipe tinha que fazer alguma maldade ou tomar uma medida que não fosse popular, ele tomava logo, e tudo de uma vez, todas as que teria que tomar.
Em resumo, é mais ou menos o seguinte: a prisão do Lula demonstrou que as bases mobilizadas têm vontade de resistir e a cúpula vai evitar a resistência até o último momento. Por outro lado, mostrou também que não basta simplesmente que uma injustiça ocorra, ou que um avanço contra uma figura popular ocorra, para que as pessoas no geral – que não estão nos movimentos sociais – se mobilizem. E em terceiro, demonstrou que realmente a concepção de confiar na via institucional, na resolução dos conflitos por via judicial – e o Lula reiterou isso justamente no momento em que estava sendo preso – não tem limites dentro do Partido dos Trabalhadores.
Correio da Cidadania: Você tem a sensação de que a esquerda aqui abordada teve a chance de empurrar o mandato de Temer para o precipício e por alguma razão não quis assim?
Pedro Marín: Se não houve essa chance nos últimos dois anos, houve agora com a greve dos caminhoneiros. Essa greve realmente teve um impacto muito grande sobre o governo Temer, tão grande que até deputados do PSDB se mobilizaram na Câmara, falaram com o Rodrigo Maia, dizendo que o governo vai cair, que precisavam fazer algo. Temos informações de que tanto no Senado quanto na Câmara o clima era de que o governo iria cair e havia certo desespero por parte dos parlamentares em entender o que aconteceria.
Por um lado tivemos a greve dos petroleiros. A FUP chamou a greve naquele momento, o que eu achei uma decisão acertada. Mas tenho a impressão de que aos 45 do segundo tempo a CUT e os movimentos sociais decidiram ser um pouco mais cuidadosos com as mobilizações deles, por medo – e acho que é um medo legítimo, ainda que politicamente seja inócuo – da reação dos militares. Naquele momento não só tinham os grupos que faziam a ideia de intervenção militar aparecer e influenciar os caminhoneiros, como paralelamente – e a Abin está investigando – havia aparentemente a participação de militares de baixo escalão, de polícias militares e exército.
De toda forma foi um erro, pois houve a chance de jogar o Temer no precipício e não o fizeram. Acho legítimo o medo, entendo, mas é um erro, pois quando a gente deixa de se mobilizar por medo da reação do inimigo, é sinal de que já estamos sob seu controle.
O momento era de mobilizar as bases e apostar na greve dos petroleiros com toda força para realmente derrubar o Temer. Era completamente possível, era o melhor momento, evidentemente representava certos riscos, mas política é isso. Tem até uma frase do Sêneca sobre o assunto: a coragem leva às estrelas e o medo à morte. E realmente, não tem outra saída. Pode ser que tenhamos medo, mas temos de ter coragem.
Correio da Cidadania: O que é preciso mudar no debate de esquerda em geral, tendo em vista os sucessivos fracassos políticos e discursivos?
Pedro Marín: Um ponto que eu sempre reitero é que a esquerda tem uma certa mania de tentar lidar com as questões, mesmo quando são essencialmente práticas, de uma maneira muito abstrata. Tenta fazer com que a realidade se encaixe nas abstrações teóricas (que são realmente importantes para pensar outros projetos) e não o contrário.
Na minha concepção, com a redemocratização surgiu naquele momento um movimento de esquerda que não era exatamente a continuação do movimento de resistência que se formou em 1964 (e teve como representantes Lamarca e Marighella, por exemplo, tanto a guerrilha urbana quanto rural, a entender que se se houve a quebra da legalidade, havia de se recorrer às armas, pois era um direito inalienável resistir a um governo sem legitimidade). O que entendo é que no final da década de 70, e na seguinte, começou a se formar, inclusive e principalmente em setores da burguesia, a necessidade de fazer uma abertura. E a esquerda foi completamente encampada ideologicamente nesse momento, quando nasceram as teses do republicanismo, da conciliação de classes. A meu ver, algo grave.
O grande ponto é que a esquerda precisa entender que os inimigos dela vão estar sempre pensando estrategicamente, na dinâmica do poder, em como fortalecer o seu poder ou como fragilizar o inimigo. É uma coisa que as esquerdas não podem deixar de fazer nunca, justamente pela condição delas: de esquerda. Elas vão ter, ao contrário dos representantes do establishment, independentemente de filiação partidária, todo o status de inimigo. Vão ter todos os setores do establishment contra si, portanto, é fundamental ter pensamento estratégico. Não tem como a esquerda continuar com essa coisa de pronunciar que ‘vai ficar tudo bem’. Não vai ficar tudo bem a não ser que tomemos o destino nas nossas mão.
Correio da Cidadania: Na sua avaliação, o que podemos esperar do cenário político-eleitoral brasileiro para esse ano?
Pedro Marín: A princípio acho que as eleições têm um paradoxo muito grande: ao passo que são as eleições mais importantes talvez dos últimos 30 ou 40 anos, são também as menos importantes. Porque por um lado houve um golpe e isso traz importância para às eleições, mas por outro lado elas não vão definir nenhum rumo a não ser o rumo dado pelo golpe.
O que eu acho é que o Lula não vai conseguir sair candidato e nesse cenário vamos ter um problema porque por um lado temos o crescimento da candidatura do Bolsonaro, que é forte, ainda a médio prazo não se sustente; por outro lado, na esquerda, pelas pesquisas temos pouquíssimas forças sem o Lula. Temos o Ciro Gomes que tem se mobilizado no sentido de conseguir fazer alguma conciliação – pra mim a escolha do vice demonstra que ele não planeja ir muito além do projeto de conciliação. Talvez ele tenha mais preocupação com setores estratégicos, pense mais nesse tipo de coisa, mas o fato é que ele ficaria refém da política de conciliação que em última instância nos levou ao golpe. Isso sem contar candidaturas como do Alckmin, entre outros.
É um cenário muito indefinido e instável. As esquerdas não deveriam estar pensando tanto em eleições, porque o que realmente me assusta é o seguinte: desde que o Governo Temer tomou o poder o papel dos militares na política brasileira tem crescido muito, muito mesmo.
Em geral, as pessoas foram perceber com a intervenção federal no Rio de Janeiro, mas temos de lembrar que em 2017 tivemos aquela rebelião do sistema prisional no RN, acompanhada por uma greve policial no ES: naquele momento o exército interviu em ambos os estados. Tivemos o renascimento do gabinete de segurança institucional sob o governo Temer e a figura do Etchegoyen, ao que parece o principal conselheiro político do Governo: um militar que tem histórico familiar um pouco sujo, pra usar de um eufemismo. Depois, tivemos o General Mourão dando declarações de que se o problema político não for resolvido nas instituições o exército teria de fazer alguma coisa – uma declaração em um encontro privado que acabou vazando pra imprensa.
Temos ainda o General Villas-Boas que muitos viam como um democrata, mas que tem mostrado nos últimos meses que não é nada disso. Em pleno julgamento do Lula no STF, deu uma declaração ameaçando o STF; cinco minutos depois a declaração saiu no Jornal Nacional, uma coisa realmente espantosa. As equipes de reportagem do Jornal Nacional realmente são muito rápidas e conseguem definir a importância da pauta apesar de todo o imobilismo que a TV impõe aos jornalistas...
Mas, de qualquer maneira, me parece que os golpistas não estão dispostos a conceder. E eles têm a carta autoritária na manga. Até o momento todas as movimentações deles realmente têm se travestido de movimentações democráticas e institucionais. O golpe foi dado em conluio entre a mídia, movimentos sociais (entre muitas aspas) e a operação Lava Jato. Por um lado é a mídia reportando, uma mídia que ‘sempre apresenta os dois lados’ – como se vende; em segundo lugar, a Lava Jato está ‘defendendo o legal’, ela não passa a ideia de que está atacando a legalidade e cometendo irregularidades, pelo contrário, para a maior parte das pessoas, pelo menos naquele momento, a Operação Lava Jato realmente era moralíssima; e por um terceiro lado, esses tais movimentos também se manifestam pacificamente com ampla cobertura e apoio.
Ou seja, se fantasiaram de democratas para levar a cabo o golpe. E temos de nos lembrar que muitas vezes isso aconteceu. O golpe de 64 não nasceu do nada e também naquela ocasião tivemos a Marcha da Família com Deus, que parecia muito democrática, mas foi financiada pelo IPES-IBAD por meio da campanha da Mulher pela Democracia, para criar a cisão naquele momento.
O que precisamos entender é que as elites não são essencialmente ou abertamente autoritárias e nem essencialmente e abertamente democratas. Elas têm alguma essência autoritária porque o projeto delas pra maioria, pra 99% da população, é autoritário, mas se fantasiam de democráticos e às vezes enganam. E no momento atual há a possibilidade de ter um candidato que, eleito, pode quebrar o projeto deles, pode fazê-los despir dessa carapuça democrática. Aí teremos um problemão, pois vamos ter passado meses nos mobilizando para fazer campanha política para eleger um presidente, enquanto eles já vão ter a carta das armas e do autoritarismo na manga. Já vão ter pensado nas armas e não em delicadezas, como disse Maquiavel.
É um paradoxo muito grande e eu acredito realmente que a esquerda não está trabalhando com tal possibilidade, de uma quebra dessa carapuça democrática – e isso pode nos custar muito, muito mesmo, não só em termos de projeto, mas em termos de liberdades políticas básicas.
As pessoas realmente não imaginavam os militares retomando esse poder, e em última instância, era um tabu – e era para ser um tabu – inclusive quando se tem regulamentos internos do exército regulando tal tipo de postura, mas ao mesmo tempo vemos militares do alto escalão fazendo declarações políticas. Era impensável há quatro anos, agora não é mais. É muito grave, pois estaremos nos mobilizando, dando todo nosso sangue e suor para eleger alguém e, se conseguirmos eleger esse alguém, não tenho dúvidas de que as elites irão quebrar a carapuça democrática.
Raphael Sanz é jornalista e editor-adjunto do Correio da Cidadania.
Raphael Sanz, da Redação