“A democracia burguesa resolveu sair do armário e assumir seu lado fascista”
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- Gabriel Brito, da Redação
- 20/09/2018
Foto: AFP
“A democracia burguesa acabou se tornando isso mesmo e entrou em contradição profunda com seus próprios referenciais passados. Seu conceito de tolerância se expandiu para a escória, com suas declarações racistas, homofóbicas, machista. Imagine, porém, se um(a) indígena, um(a) negro(a), um(a) trabalhador(a) qualquer, sem teto, sem-terra, resolver postar nas redes alguma foto armado(a) e declarar que vai sair matando a burguesia e seus servidores?”, disse ao Correio a socióloga Maria Orlanda Pinassi.
Na entrevista, Pinassi discute o tenso cenário eleitoral brasileiro, aguçado após o episódio do atentado contra o candidato ultradireitista Jair Bolsonaro – acontecimento que a socióloga classifica como conveniente a diversos setores. Antes disso, porém, contextualiza seu pensamento e afirma que tal cenário é consequência de anos de esvaziamento da política parlamentar e da democracia representativa.
Para além do fenômeno da chapa militar, Pinassi também questiona o progressismo das demais alternativas, todas distantes de tocar nos pilares do sistema socioeconômico afundado em crise. E reitera sua descrença nas soluções institucionais. Ainda mais quando a própria chapa militar vaticina que sua derrota configuraria fraude.
“Para combatê-los, não basta ir às urnas. Também é preciso muito mais do que ir às ruas protestar. É preciso transcender as soluções desenvolvimentistas, é preciso reaprender a transgredir as regras, ressensibilizar os sentidos humanos, compreender mais as necessidades urgentes das massas. Saber ouvi-las mesmo quando desafinam e se perdem no caminho. As mulheres de todas as nacionalidades, de todas as etnias e credos se arriscam cada vez mais nesta tarefa gigantesca. Como li recentemente num muro: ‘Menos eleições, mais luta’”.
A entrevista completa com Maria Orlanda Pinassi pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Primeiramente, como enxerga este Brasil que chegou às eleições após dois anos e alguns meses sob o governo mais repudiado da Nova República?
Maria Orlanda Pinassi: Antes de entrar propriamente na questão e arriscar uma análise conjuntural das eleições de 2018, gostaria de levantar precedentes que podem ajudar a compreender a minha linha de pensamento.
Em primeiro lugar, esclareço que há um bom tempo não deposito qualquer expectativa no sistema parlamentar e a decadência atual do quadro reafirma meu distanciamento dessa linha de atuação.
Com exceção do levante de mulheres contra um determinado candidato misógino, racista, homofóbico, fundamentalista, subserviente ao sionismo e fascista, levante cujo potencial transcende a conjuntura eleitoral – vejam-se, por exemplo, os avanços na luta pela legalização do aborto e o protagonismo feminino na organização de movimentos expressivos do último período - temos um cenário politicamente miserável.
O fenômeno não é novo. Ele é resultado das sucessivas reestruturações econômicas e políticas que há décadas fragilizam as classes trabalhadoras; do desemprego e do empobrecimento material e cultural das massas seguidos de individualismo exacerbado e competitividade encarniçada.
Segundo o IBGE, o Brasil já conta com 27,7 milhões de pessoas desempregadas, que gostariam de trabalhar e que desistiram de procurar emprego. Entre elas, 14,7 milhões procuraram emprego em vão e mais de 10 milhões se encontram na faixa da extrema pobreza.
Tem ainda a política de conciliação de classes – o lulismo - que pacifica e embaralha os campos ideológicos. O desmonte das funções sociais do Estado, sobretudo em relação à seguridade, à educação e à saúde públicas; a desregulamentação de leis trabalhistas, de proteção ambiental e terras indígenas; a corrupção generalizada; a fusão promíscua entre capitais legais e o submundo do tráfico de drogas, armas, de gente, de bicho; a exposição ostensiva da violência e o medo-pânico estimulado pelas mídias sintonizadas todas na mesma frequência.
Por fim, essa breve introdução é para dizer que a cena brasileira, à luz de um processo muito mais amplo, provém de um desenvolvimentismo nefasto, que dilapida os recursos naturais e humanos, e convoca o país ao genocídio das populações originárias. O processo, iniciado na ditadura e sequenciado pelos sucessivos governos democráticos, mergulhou o país num caos absoluto durante o qual se moldou uma sociabilidade correspondentemente deformada.
Isso quer dizer que a gravidade social do país desemboca num profundo rebaixamento da consciência de classe contingente, cujos homens, mulheres, crianças e idosos são lançados ao inferno da luta pela sobrevivência de cada dia.
Essa perda de esperança é o esterco do “mito”, um tipo de liderança acéfala, truculenta, antípoda dos direitos humanos de cariz liberal, da igualdade formal e do ilusório “empoderamento” da mulher, negros, indígenas, dos indivíduos LGBTQ, numa sociedade estruturalmente competitiva e substantivamente desigual.
Bolsonaro pisa e cospe no contrato social, transgride todo e qualquer limite do que outrora se convencionou chamar de cidadania e pacto social. Bolsonaro é a expressão da barbárie e da crise estrutural no Brasil. O “mito” de um poderoso segmento social cuja “rebelião” é votar na ordem (do caos); um guia no desespero, na desilusão, na distopia.
Correio da Cidadania: Como avalia as repercussões eleitorais da facada em Jair Bolsonaro, candidato a presidente do PSL, em evento em Juiz de Fora?
Maria Orlanda Pinassi: Ao mesmo tempo em que é popular, Bolsonaro pode ser a solução da burguesia transnacionalizada, interessada em aprofundar meios de exploração e práticas predatórias. Para isso, precisa controlar o fosso social que ela própria cria e demanda de um golpe ao outro.
Na minha opinião, é aí que entra a facada. Até então, Bolsonaro aparecia como candidato do agronegócio e fabricantes de armas. Os representantes “mais polidos” do capital, como o bancário e financeiro, instalados em centros empresariais sofisticados e que não sujam as mãos com sangue diretamente, torciam o nariz para ele. Alckmin seria seu preferido. Só que não deu. O fracasso tucano jogou foco em Bolsonaro, uma opção sedutora para administrar a crise com a força dos quarteis legitimada nas urnas como uma “escolha democrática”.
Na história do atentado, tudo se encaixa e soa muito conveniente. Afastaram o capitão dos debates, silenciaram suas asneiras e mantiveram-no ainda mais vivo na mídia incumbida de forjar-lhe uma suposta simpatia. Como num reality show hospitalar, o candidato surge numa UTI de luxo do Hospital Israelita Albert Einstein, amplia nas alturas seu tempo de exposição e cresce nas pesquisas. Uma articulação de mestre, com certeza.
Correio da Cidadania: O que pensa da postura do PT em segurar no limite a candidatura de Lula? E o que pensa da chapa Fernando Haddad-Manuela D’Ávila?
Maria Orlanda Pinassi: Haddad e Manuela são os herdeiros diretos da conciliação, da confusão ideológica, do otimismo com um “Brasil feliz de novo”. A expectativa criada em torno da candidatura Lula atraiu a atenção e os votos que, em sua maioria, irão beneficiá-los.
O Brasil, porém, é outro. Se eleitos não conseguirão sequer se aproximar do mar de rosas no qual navegou Lula em seus governos patrocinados pelo capital financeiro para melhorar as condições do crédito popular, endividar e despolitizar a classe que lhe entregou representação e fidelidade.
Vale lembrar que, antes de Haddad/Manuela, o segundo governo Dilma já enfrentou obstáculos intransponíveis para manter as políticas sociais do seu criador e precisou fazer um severo ajuste fiscal, impedir a auditoria da dívida pública e dar o pontapé inicial às prerrogativas da Ponte para o Futuro (nome do programa de austeridade lançado pelo governo Temer). Nem com todas as concessões, no entanto, conseguiu manter-se no Planalto.
Pergunto eu, então, o que acontecerá se Haddad e Manuela vencerem as eleições? Um novo golpe? Alerta: o general Mourão faz movimentações neste sentido.
A socióloga Maria Orlanda Pinassi
Correio da Cidadania: Sim, a chapa militar já lançou o discurso de deslegitimação da eleição em caso de derrota. Isso não revela um tremendo descompromisso com a via democrática e não deveria ser combatido no mesmo sentido, isto é, com uma retórica de jamais reconhecer um governo que não esconde seus pruridos racistas, machistas e classistas?
Maria Orlanda Pinassi: Pois é, a última de Bolsonaro é colocar dúvida sobre a lisura da urna eletrônica, abrindo espaço para questionar o resultado das eleições e também um possível aquartelamento da sociedade.
Na verdade, eu acho que a democracia burguesa acabou se tornando isso mesmo e entrou em contradição profunda com seus próprios referenciais passados. Seu conceito de tolerância se expandiu para a escória, com suas declarações racistas, homofóbicas, machista. Imagine, porém, se um(a) indígena, um(a) negro(a), um(a) trabalhador(a) qualquer, sem teto, sem-terra, resolver postar nas redes alguma foto armado(a) e declarar que vai sair matando a burguesia e seus servidores?
Temos de entender que a democracia burguesa resolveu sair do armário e assumir seu lado na contenda. É essa mesma democracia que reprime manifestação popular, bate em professor, estudante, trabalhador, mata índio, atiça o homem contra a mulher, incita o justiçamento, faz apologia da tortura.
Por isso Mourão, Bolsonaro, Alexandre Frota, Kim Kataguiri et caterva saem cometendo toda sorte de prevaricações sem que sejam punidos. Eles estão no mundo deles, à vontade, constrangendo com afirmações provocativas e estapafúrdias.
“Mudar a constituição sem o povo”, “casa só com ‘mãe e avó’ é fábrica de desajustados”. A boçalidade toda é jogada na nossa cara por uma imprensa indigente que divulga os impropérios e sai assoviando, irresponsavelmente.
Li muito sobre a violência fascista ao longo da minha vida, mas não tinha a menor ideia da sua capacidade de ser tão articuladamente irracionalista. Só posso dizer uma coisa sobre tudo: é estarrecedor.
Correio da Cidadania: Como analisa as demais candidaturas até este momento da corrida? Ciro ou Marina são mesmo alternativas interessantes para contrapor a agenda dos últimos anos?
Maria Orlanda Pinassi: Difícil falar desses dois, até porque não consigo ver nada de interessante em nenhum deles. Ciro Gomes é, de longe, o candidato mais articulado e mais erudito dessas eleições. Suas críticas são certeiras, mas as propostas turvas. Basta ver quem é a vice de sua chapa.
Marina Silva já teve seus 15 minutos de fama quando era novidade abraçar a causa ambiental. Surgiu como alternativa nas últimas eleições com votação muito expressiva, mas morreu na praia, perdeu a verve. Suas vacilações ideológicas não passam despercebidas. Apoiar Aécio e ser contra o aborto definharam seu potencial nas urnas.
Sobre ambos, lembro aqui algo que eles gostam de mencionar em suas campanhas. O episódio da transposição do Rio São Francisco, quando foram ministros de Lula. Marina no Meio Ambiente e Ciro na Integração Nacional fizeram enorme pressão sobre os movimentos populares contrários à aprovação do projeto articulado justamente para favorecer, entre outros, o polo industrial do Ceará (leia-se Tasso Jereissati, padrinho político de Ciro Gomes).
Em nenhum momento se importaram com o esgotamento do rio castigado há tempos por barragens sem fim, nem com a população ribeirinha, pobre, faminta e ainda mais miserável sem a água do Velho Chico.
Correio da Cidadania: Como avalia a campanha de Guilherme Boulos até este momento? O PSOL está conseguindo se apresentar como uma alternativa contra-hegemônica?
Maria Orlanda Pinassi: Boulos é o único candidato que tem em mãos uma significativa base popular urbana demandante de importante questão social: a luta por moradias. É o único que, neste sentido, teria condições de se apresentar de modo ofensivo e antitético ante o fascismo de Bolsonaro. Mas, alguma coisa não funcionou na campanha dele e não estou falando só de tempo exíguo de exposição e boicote da mídia que, de fato, são fatores a se considerar. Foi mais do que isso.
Estamos falando aqui de eleições e, neste caso, se Boulos tinha base social, ele não tinha partido. Foi entronizado de modo questionável no PSOL, o que desagradou fortemente parte da militância. Tendo a concordar com a crítica que lhe fazem: Boulos tem forte aproximação com Lula e pode representar uma linha de transmissão entre sua candidatura e o lulismo no interior do PSOL, fundado justamente para fazer-lhe oposição. Acho que já ouvimos alguém dizer que, pelo voto, vai subir a rampa do Alvorada com o povo. Só que, uma vez no poder, o povo permaneceu do lado de fora.
Melhor seria se continuasse a representar um movimento de sem-teto em luta direta contra a especulação imobiliária e os despejos. Infelizmente, para ele e para o PSOL, sua candidatura não conseguiu decolar, nem se apresentou com força no campo popular.
Correio da Cidadania: Voltando ao ponto das discussões recentes predominantes, há de fato uma “onda fascista” em eclosão no Brasil? Refletiria ventos globais?
Maria Orlanda Pinassi: O quadro que eu descrevi no início não moldura a cena brasileira especificamente. O caos social é do mundo e a onda fascista internacional, reflexo do aprofundamento da crise estrutural que assola o planeta. Por isso, Bolsonaro é cover de Trump. Eles são o fenômeno da vez. Galhofeiros, perigosos e vestidos para matar.
Para combatê-los, não basta ir às urnas. Também é preciso muito mais do que ir às ruas protestar. É preciso transcender as soluções desenvolvimentistas, é preciso reaprender a transgredir as regras, ressensibilizar os sentidos humanos, compreender mais as necessidades urgentes das massas.
Saber ouvi-las mesmo quando desafinam e se perdem no caminho. As mulheres de todas as nacionalidades, de todas as etnias e credos se arriscam cada vez mais nesta tarefa gigantesca. Como li recentemente num muro: “Menos eleições, mais luta”. Que seja!
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.