“Seguimos na negação da história recente, o que tende a piorar e legitimar acontecimentos da ditadura”
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- Gabriel Brito, da Redação
- 31/10/2018
Jair Bolsonaro será o próximo presidente da República, eleito neste domingo com 55% dos votos válidos. Se de lado um o desgaste que sofreu na última semana de campanha parece ter esfriado a euforia com sua vitória, por outro aqueles que o repudiaram seguem atônitos. Ainda é difícil fazer qualquer avaliação sobre uma possível mudança de patamar da história brasileira com uma chapa de entusiastas da ditadura militar. Dessa forma, o Correio publica entrevista com Ivo Herzog, engenheiro e filho de Wladimir, uma das vítimas mais lembradas do período militar, a fim de tentar uma primeira reflexão.
“O país não escolheu nada nesse sentido (de voltar a algo parecido com a ditadura). O país é totalmente ignorante a respeito da ditadura. Nenhum governo, desde FHC, passou a limpo este passado. Não escrevemos as páginas desta história. Escrevemos alguns prefácios apenas. Pra usar palavra da moda, nunca houve uma reflexão mais profunda, nem do governo e nem dos brasileiros”, analisou.
Assim, a eleição de Bolsonaro parece coroar um momento em que as mais importantes instituições e representações políticas do pós-ditadura perderam sua credibilidade, a última delas o judiciário e mais especificamente o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
“Os grandes partidos, que foram os principais protagonistas da história recente – PT e PSDB – tem que ajudar a reconstruir nossa estrutura democrática. Descarto o PMDB aqui pois sempre se preocupou em colar em quem estivesse no poder”, afirmou.
De toda forma, o quadro é obscuro e há poucas razões para se apegar ao otimismo, numa eleição em que, mesmo diante de outras opções conservadoras, o país escolheu a mais truculenta dessas. “Virou uma percepção positiva na sociedade se dizer de direita”, lamentou.
A entrevista completa com Ivo Herzog pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como você está digerindo a vitória de Jair Bolsonaro? O que ela representa numa perspectiva histórica?
Ivo Herzog: A expectativa é a pior possível, obviamente. Luto com minha família há mais de 40 anos por justiça e a construção de uma agenda socialdemocrática, e nesse sentido Bolsonaro representa 50 anos de retrocesso.
Não dá pra saber o que vai dar, mas temos de observar o que ele fala. Desde o começo da campanha ele usou uma estratégia de se apresentar como uma pessoa mais moderada. Mas essa “moderação” sempre foi diante da câmera e da imprensa. Quando falou para seus seguidores e redes sociais, não teve nada de moderado. É fascista, pra usar uma palavra bem simples. Faz discurso de exclusão, de perseguição ideológica, a exemplo desse absurdo de estimular alunos a filmar professores em sala de aula, o que configura quase um Estado de sítio.
Mas ainda é tudo novo, não sabemos quem serão os ministros e suas pautas práticas. Sabemos de seu passado e um discurso, em especial da primeira fase da campanha, muito ruins. A expectativa é a pior possível.
Correio da Cidadania: É possível falar deste resultado sem atrelá-lo à relação que o país aceitou estabelecer com o seu passado recente de ditadura militar?
Ivo Herzog: O país não escolheu nada nesse sentido. O país é totalmente ignorante a respeito da ditadura. Nenhum governo, desde FHC, passou a limpo este passado. Não escrevemos as páginas desta história. Escrevemos alguns prefácios apenas.
Pra usar palavra da moda, nunca houve uma reflexão mais profunda, nem do governo e nem dos brasileiros. Temos apenas algumas manifestações isoladas das forças armadas, sempre no pior sentido. Assim como foi péssima a manifestação do ministro do STF, Dias Toffoli, ao dizer que não houve ditadura, mas um processo democrático.
Seguimos na negação da história recente, o que tende a piorar e legitimar algumas coisas que aconteceram na época, já que teremos um representante desta ala da sociedade na presidência.
Mas não é que a sociedade deu um aceite à ditadura. Deu um aceite ao desconhecido. No entanto, não tem a vaga ideia do que foi a ditadura militar.
Correio da Cidadania: Já que você menciona a declaração recente do ministro Dias Toffoli, como enxerga o papel das instituições democráticas neste último período? O que comenta do papel do TSE nas eleições?
Ivo Herzog: Vou tentar considerar um marco temporal mais amplo. O Estado é formado por três poderes e o primeiro, a meu ver, a desrespeitar sua finalidade foi o legislativo, com corrupção, ações em causa própria, desmonte da Constituição, falta de presença no próprio Congresso...
A seguir veio o Executivo, em forte processo de desconstrução, o que se intensificou no breve governo Temer, que despachou no Palácio do Jaburu, o do vice, e se guiou por interesses absolutamente antirrepublicanos. Por último, infelizmente, aquele que antes se protegia bem e se preservava melhor, o judiciário, entrou na mesma lógica.
Sobre o TSE, voltemos ao ano passado: quando houve o voto de minerva na questão da cassação Dilma-Temer, vimos o ministro dizer que foi contra a cassação total (o que exigiria a saída de Temer da presidência) “porque acho melhor para o Brasil”. Ali já vimos um desvio. Não cabe esse tipo de declaração ao judiciário. Este precisa interpretar a lei. Todo mundo acha alguma coisa em relação ao que é melhor para o Brasil, começando pelos diferentes representantes do Legislativo. Se ele se prestasse a concorrer a um cargo neste poder teria mais legitimidade em afirmar o que considera melhor para o Brasil.
A questão do judiciário é séria. O ápice talvez seja a declaração do Dias Toffoli, ao negar o caráter do golpe de 1964, algo absolutamente grave.
Voltando ao TSE, melhor aguardar. Acho que houve muitas ameaças do candidato eleito durante todo o processo, mas o tribunal só se manifestou quando a ameaça foi contra sua presidente. Quando as ameaças se dirigiram a mim, a você, a setores vulneráveis do povo brasileiro a reação foi vergonhosa.
De todo modo, as investigações seguem abertas. Ele não é presidente ainda, precisa ser diplomado. Aliás, a imprensa se equivoca em usar essa forma. Não dá pra ter dois presidentes ao mesmo tempo, ele é um presidente eleito, não em exercício.
Correio da Cidadania: Por que as elites econômicas e políticas não puderam apresentar uma direita menos truculenta e belicista em seus modos de fazer política?
Ivo Herzog: Elas apresentaram. Tinha Alckmin, Meirelles e Amoêdo. A população que não foi no discurso deles. E seus partidos mantiveram grandes espaços no poder. O candidato vencedor vem trabalhando sua candidatura desde 2014, quando decidiu concorrer, importante destacar isso, pois temos de reconhecer que ele foi absolutamente eficaz no uso das mídias sociais. E, pra fazer um paralelo, foi por aí que o Trump pavimentou sua vitória nos EUA. As direitas tinham até mais candidatos que a esquerda.
Uma coisa que se inverteu é que na minha época de jovem, tenho 52 anos, as pessoas batiam no peito pra dizer que eram de esquerda. Hoje fazem isso pra se dizerem de direita. Não se inverteu tal lógica completamente, mas virou uma percepção positiva na sociedade se dizer de direita.
Correio da Cidadania: O que fazer para começar a responder a isso? Voltar à carga pela abertura total da documentação relativa ao período militar seria um bom começo?
Ivo Herzog: Já se tentou trabalhar nesse sentido e deve continuar a ser feito, na cultura, nas escolas, nas artes etc. Mas é uma questão política maior. Os grandes partidos, que foram os principais protagonistas da história recente – PT e PSDB – têm de ajudar a reconstruir nossa estrutura democrática. Descarto o PMDB aqui, pois sempre se preocupou em colar em quem estivesse no poder.
O PSDB, a partir da ascensão de Doria, praticamente acabou. Um sujeito que se elege com um discurso de extrema-direita num partido que nasceu sob o ideal da socialdemocracia, uma orientação humanista, é triste. Sobrou o quê? FHC, Serra, que não se manifestam mais? Goldman, que era do PCB, se manifesta de forma mais fiel ao partido e quando faz isso é ameaçado de expulsão.
O próprio PT passa por um momento muito sério. Tem um cara lúcido e respeitador das instituições, como o Haddad, e tem a Gleisi Hoffman, que quando se manifesta as desafia. Inclusive não ajudou na campanha, só atrapalhou, como quando disse que ganhariam a eleição pra tirar Lula da cadeia, o que o próprio Haddad teve de desmentir, respondendo que Lula seria julgado pelas instâncias seguintes – STJ e STF.
Fora isso, existem vários porquês na vitória do Bolsonaro. Um deles a rejeição ao PT. Basicamente dois terços da população repudiam o partido de forma intensa, e incluo aqui os que votaram nulo ou deixaram de votar. O estigma do partido foi construído ao longo dos anos, sem entrar no mérito de ser bom ou ruim, mas com um discurso muito radical em vários aspectos, o que pegou em cheio a população. Eu não concordo com a ideia de que o PT é o partido mais corrupto, pra deixar bem claro, mas não é essa a discussão, e sim o estigma que se criou. E nesse sentido era muito difícil ter uma candidatura majoritária encabeçada pelo PT.
Todas as simulações já indicavam que o partido que tinha menos chance de bater Bolsonaro era o PT. O PT tinha de desistir da candidatura? Não necessariamente, mas o fato era esse.
Sobre a abertura de arquivos, não temos acesso àquilo que está sob poder das forças armadas e, segundo elas, foi destruído. Realmente, pouco foi recuperado. Mas tem uma quantidade monumental de arquivos publicados, como o relatório final da Comissão da Verdade, o site Memórias da Ditadura, com filmografia e livros, que já dão uma noção enorme do que foi o período etc.
Correio da Cidadania: Como acha que ficará o Estado brasileiro diante da chamada comunidade internacional?
Ivo Herzog: Não está bem na foto, né? E faz tempo. Não seguiu as recomendações do caso Araguaia e outra série de coisas. Agora piorou bastante. Mas piorou em função dos discursos e da temperatura de tais discursos. Há um desafio para o ano que vem, quando será apresentada denúncia do caso Herzog em função da sentença da OEA, a partir da abertura de investigações pelo Ministério Público.
Vamos ver como respondem as instituições responsáveis pelo Estado democrático de direito no país. Não condeno nada nem ninguém por antecipação, podemos nos surpreender pelo lado bom também.
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.