Procurando entender, para depois agir
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- Chico Whitaker
- 12/11/2018
Um amigo japonês que vive na França me escreveu perguntando: “mas o que aconteceu que um país que há pouco mais de dez anos elegeu Lula, um operário, como presidente da República, colocou agora em seu lugar um militar fascista”? Na verdade, estamos todos nos fazendo essa mesma pergunta.
E, se quisermos impedir que sejamos efetivamente empurrados para o fascismo – até como consequência de um provável insucesso administrativo de Bolsonaro - precisamos de fato procurar entender o que se passou no Brasil.
No festival de interpretações em que estamos todos envolvidos – ao mesmo tempo em que nos defendemos dos muitos retrocessos que já começam a tomar forma - cabem evidentemente muitas e variadas hipóteses, todas tendo sua parcela de verdade.
A ferramenta
Este texto pretende focar uma dessas interpretações, a que já me referi em textos anteriores, mas tratarei agora em mais detalhe: o uso perverso dos novos meios de intercomunicação social de que hoje dispomos. A meu ver, esse foi o instrumento decisivo para a vitória de Bolsonaro e dos candidatos a outras funções que nele também surfaram.
Em muitas das interpretações existentes, apontam-se erros cometidos nas gestões de Lula e sua sucessora Dilma, que descompensaram, no sentimento dos eleitores, os acertos dos seus 13 anos e meio de governo. Com isso prevaleceu, nesta eleição, o antipetismo disseminado pelos meios de comunicação de massa até a destituição de Dilma. Assim como foi ressuscitado o anticomunismo dos tempos da Guerra Fria, já usado no golpe militar de 1964.
Muitos lembram também de circunstâncias da própria campanha eleitoral. Como, no segundo turno, a utilização por Bolsonaro da condição de vítima de atentado para se esquivar dos debates finais da campanha (usual em todas as eleições brasileiras depois da redemocratização). Seu não comparecimento o salvou de ser literalmente destruído, tal o seu despreparo para ser presidente e o desnível, nesse aspecto, com Haddad.
Ninguém está esquecendo, igualmente, que o resultado desta eleição foi previamente articulado, usando-se para impedir a candidatura de Lula, seguramente vitoriosa, a Lei da Ficha Limpa, de iniciativa popular, que ele mesmo tinha promulgado e decisões questionáveis do STF que o levaram à prisão, desconsiderando inclusive o princípio constitucional da presunção de inocência. Sendo que o juiz que coordenou a operação anticorrupção da Lava-jato, e executou as várias manobras desta articulação, desmascarou-se a si mesmo ao assumir um superministério do governo que ajudou a eleger, maculando ainda mais a imagem já combalida de nosso judiciário.
Mas além de todas essas interpretações, ficou cristalino para mim que o Brasil foi a terceira grande vítima (depois do Brexit na Inglaterra e de Trump nos Estados Unidos) da “máquina de ganhar eleições” - manipulando a vontade coletiva - inventada por mentes doentias de matemáticos e psicólogos do Primeiro Mundo. Que tem ademais o objetivo de usar a própria democracia para que a ultradireita tome o poder.
Trump só decidiu utilizá-la de fato depois de constatar que ela surpreendeu os próprios ingleses com a aprovação do Brexit. Um sucesso que agora coloca em risco, quando se conte com dinheiro para utilizar essa máquina, todos os processos eleitorais em qualquer parte do mundo.
Cheguei a essa convicção logo depois das eleições vendo um vídeo brasileiro (https://youtu.be/VUTiRx9wD34) e um documentário europeu (https://vimeo.com/295576715), a que já me referi em outros textos. Eles mostram de forma completa, mais do que me tinham informado antes sobre essa máquina diabólica, quais os atores de sua montagem e sua força eleitoral, direcionando mentiras a pessoas desinformadas ou indecisas quanto ao seu voto.
Isso se tornou possível com o desenvolvimento da informática para cálculos com grandes números, combinado com novos sistemas de comunicação e intercomunicação, mais rápidos e menos controláveis pelo poder publico e pela própria sociedade. E com a multiplicação ao infinito dos celulares, popularizados como o figurado no desenho acima, de autor para mim desconhecido, que um dia me chegou de não sei onde no meu próprio celular.
O gênio do mal
O norte-americano Steve Bannon, principal operador da “máquina de ganhar eleições”, já foi apresentando em capa da revista Time de 13/02/2017 como “O Grande Manipulador”, e em matéria com o título “Steve Bannon é o segundo homem mais poderoso do planeta?”. Depois do seu terceiro sucesso (em que infelizmente a vítima fomos nós) ele não poderia, portanto, deixar de começar a preparar, segundo as informações disponíveis, mais um experimento eleitoral: as eleições no fim de maio de 2019 para o Parlamento Europeu, para que seja dado mais um passo para a ultradireita conquistar “democraticamente” o poder político no mundo, deixando para trás (como ele mesmo indicou) os “donos do mundo” que se reúnem em Davos. E para isso ele se instalou nas imediações de Roma, de onde provavelmente, com o apoio do episcopado mais conservador e mais desinformado dos países católicos, pretende atacar o Papa Francisco e as conferências episcopais desses países.
Face ao tamanho dos riscos que se avizinham, é importante conhecer em mais detalhe como essa máquina funcionou nestas eleições brasileiras. Até porque ela pode ser usada para outros fins, além dos eleitorais, como o aumento do ódio e da intolerância, como ocorreu no uso do Facebook para incitar a violência étnica em Myanmar (Folha de 9/11/2018).
Para quem montou a “máquina de ganhar eleições”, uma campanha eleitoral é uma competição como todas as outras, em que ganha quem chega em primeiro lugar no final da corrida ou no final do jogo, às vezes por um só segundo ou um só gol.
Os estrategistas de Bolsonaro (entre eles diretamente Bannon, que o filho de Bolsonaro encontrou em agosto em Nova York?) devem ter calculado que chegar com vinte milhões de votos à frente do adversário seria mais do que suficiente para ganhar a eleição (dez milhões o foram). Para isso poderiam contar com os votos dos antipetistas e anticomunistas ferrenhos, dos fascistas por opção e dos evangélicos que obedecem cegamente às ordens de seus pastores.
Para maior certeza quanto a estes, o pastor talvez mais poderoso, Edir Macedo, declarou solenemente seu voto em Bolsonaro, com os ombros devidamente cobertos por uma pequena capa de “cardeal” da sua igreja, de dentro do seu enorme Templo de Salomão em São Paulo (quatro vezes maior do que o Santuário Nacional de Aparecida), com suas doze oliveiras centenárias importadas do Uruguai e, segundo a VEJA-SP, uma esteira rolante que leva o dízimo pago pelos fiéis diretamente para uma sala-cofre...
Os estrategistas de Bolsonaro sabiam também que suas “fakenews” difundidas aos milhares eram bem recebidas também pelos insatisfeitos com os políticos em geral e com a corrupção, que desvia recursos do atendimento das necessidades sociais. E pelos que sofrem em nosso país com o aumento da desigualdade social, do desemprego e da miséria, o cotidiano de grande número de brasileiros que ficou mais grave no governo Temer.
Mas para garantir se voltaram para os muitos indecisos que existiam (ao final da campanha, feita a apuração dos votos, eles eram ainda pelo menos 38 milhões de eleitores, somando-se as abstenções aos votos brancos e nulos). E seus robôs “dispararam”, como se diz, ininterruptamente, nos celulares desses eleitores as acusações e mentiras que melhor os influenciariam, segundo recomendava a análise psicológica dos seus perfis.
Provavelmente nunca saberemos o conteúdo dessas “informações”, a não ser que nos contem os arrependidos do voto em Bolsonaro que as tenham recebido. Porém, uma dessas notícias falsas pode nos dar uma ideia do nível a que puderam chegar. Depois da Folha de São Paulo publicar uma matéria sobre o Caixa 2 de Bolsonaro, para financiar esses “disparos”, os “Indecisos” e os fieis seguidores foram “informados” de que “tudo agora se explica: Lula é dono de 52% das ações da Folha, ou seja, ele é o dono desse jornal”... (a Folha publicou um desmentido, que no entanto não foi nem imediato nem enviado às mesmas pessoas...).
Fraude histórica
O esforço a ser intensificado com o dinheiro do Caixa 2 denunciado (em tempo: o que fez o TSE com essa denúncia?) talvez compensasse o risco criado por Bolsonaro com seu discurso por videoconferência na Avenida Paulista, de São Paulo, no domingo anterior ao dia 28. Especialmente violento e ameaçador, em que parecia ter perdido o controle da dosagem de suas declarações, ele quase anunciava a implantação de um regime ditatorial se fosse eleito. Confiante em sua vitória, pretenderia ele somente reforçar, junto a seus eleitores já decididos, a sua imagem de homem duro?
Arriscou-se, porque foi a partir desse domingo que choveram apoios a Haddad, de figuras públicas sem vínculos com o PT e com credibilidade na sociedade. E que pegou força a “virada” tentada pelos seus apoiadores, que preocupou até o próprio Bolsonaro, segundo disse depois de eleito. Se pronunciado uma semana antes do que foi, seu discurso poderia ter assustado muitos, levando-os a desistirem de lhe dar seu voto. Mas é certo também que muito pouca gente sabe no Brasil o que é uma ditadura, com suas torturas e mortes de opositores, e menos ainda o que foi o fascismo, o nazismo e o Holocausto, lá na longínqua Europa.
Onde Trump foi buscar os votos que fariam esse tipo de diferença a seu favor?
Conforme o documentário acima indicado, em somente três estados do seu país. Nestes, o número dos que poderiam ser convencidos a apoiá-lo já lhe daria um score superior, no cômputo geral de votos dos “grandes eleitores” do sistema eleitoral norte-americano. Ele então direcionou a esses indecisos, intensamente, pelas redes sociais, precisamente os argumentos e mentiras que queriam ouvir, com as informações de que dispunha sobre suas tendências e preferências, pessoa a pessoa. E surpreendeu o mundo com sua vitória. O presidente do Facebook, que passou à Trump uns tantos milhões de perfis de seus usuários, teve que se explicar porque os cedeu, perante o Congresso dos EUA. Mas Trump já estava eleito...
Se forem corretas as considerações acima sobre o poder das redes sociais, que deixam para trás a tradicional influência dos grandes jornais e da TV e mesmo das manifestações de rua, precisamos alertar o máximo possível de cidadãos e cidadãs em todos os países do mundo. De fato é a democracia representativa – que é o regime político de que dispomos para respeitar os anseios da maioria - que está sendo mortalmente ameaçada. Se estas novas tecnologias continuarem a ser usadas impunemente em eleições, o poder político no mundo dito democrático estará logo somente nas mãos de aventureiros ou psicopatas.
Temos que agir
Por isso espero que aqueles que concordarem com este texto o difundam para mais longe do que a nossa pequena “bolha” que será alcançada pelo facebook não “impulsionado”. Mas principalmente que recomendem amplamente o vídeo e o documentário que indiquei acima. Seria possível utilizá-los em discussões de forma organizada, junto a diferentes grupos sociais, como atividade de formação politica. Não nos esqueçamos que 57 milhões de brasileiros deram seu voto a Bolsonaro, mas 89 milhões não o fizeram, votando em Haddad, ou em branco e nulo e se abstendo de votar.
Caberia um apelo especial aos que exerçam funções de assessoria a diferentes autoridades – de governo ou de igreja – para que vejam o documentário e convençam seus chefes da importância de vê-lo também. Tudo indica que nossas instituições não terão a coragem necessária para não diplomar nem empossar Bolsonaro, como exigiriam os crimes eleitorais que cometeu. Mas esperemos que com as informações dadas no documentário as coisas não passem em imaculada nuvem.
Aos brasileiros que moram no exterior, a quem chegue este texto, eu sugeriria que divulgassem o documentário junto àqueles que os acolhem, para que em mais países se acorde para os riscos da perigosa tecnologia que se apoia nos celulares.
Sugiro também aos eleitores de nossos deputados federais e senadores que os convençam a se articularem para logo propor uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o escândalo do uso da máquina de Bannon nestas eleições, como já o fizeram os parlamentos dos Estados Unidos e da Inglaterra depois da eleição de Trump e da decisão sobre o Brexit. É preciso também saber se os resultados das eleições do dia 6 último para a Câmara dos Deputados norte-americana significam que já se está, naquele país, cerceando o funcionamento da máquina de ganhar eleições e o uso perverso dos supostamente inofensivos celulares que todos carregamos conosco, cujas pequenas telas podem seduzir e nos aliciar.
Por último, nesta tentativa de identificar ações possíveis para que não percamos a esperança, valeria dar uma atenção especial a um tipo de comportamento que já mostrou sua eficácia na história do mundo: a objeção de consciência, como recusa a participar de atividades ou ações contrárias aos nossos princípios de vida. Quem de nós pode aceitar que se atente contra valores das sociedades humanas civilizadas como o diálogo, a tolerância, a paz, a justiça e a solidariedade?
Em muitas situações reagir pode exigir muita coragem e ter custos difíceis de assumir. Mas há muitas histórias pelo mundo afora, há muito tempo – as mais conhecidas são as de recusa a atividades militares - que mostram que esse comportamento é possível, mais ainda quando se conta com apoio e divulgação.
Pode-se fazer objeção de consciência tanto com o simples silêncio e a recusa a executar determinadas tarefas como deixando de assistir silenciosa ou passivamente o que se passa e tomar posições publicamente. Ou ainda resistir a ações que ferem nossa consciência de seres humanos. Tal atitude pode ser até um alívio para quem se utiliza do direito de objetar. Um exemplo recente desse alívio foi explicitado no documentário acima indicado: um jovem cidadão britânico decidiu, para ficar em paz com sua consciência, não mais prestar serviços, como especialista em informática, à empresa inglesa Cambridge Analytica, peça importante da “máquina de ganhar eleições” montada para a eleição de Trump, e denunciou a empresa ao Parlamento do seu país.
Quem sabe um dia surge no Brasil, paralelamente às muitas redes já criadas para resistir à violência autoritária e proteger e apoiar os perseguidos, uma rede de objetores de consciência pela sobrevivência da democracia.
Chico Whitaker é arquiteto e urbanista, coordenador do Fórum Social Mundial e fundador do MCCE - Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral.