Correio da Cidadania

Legítima defesa e autos de resistência (I)

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O artigo 292 do Código de Processo Penal determina a lavratura de um auto – ou seja, a formalização de um procedimento – sempre que houver resistência a uma prisão em flagrante ou cumprimento de mandado de prisão. No mesmo artigo, quem realiza o flagrante ou executa o mandado de prisão está autorizado a utilizar os meios necessários para se defender ou vencer a resistência.

A princípio, trata-se de um artigo que autoriza um policial a fazer o que lhe for possível para efetuar uma prisão. Esta é uma questão que precisa ser bem demarcada, uma vez que, em situação de flagrante delito ou de resistência a cumprimento de mandado, o estrito cumprimento do dever legal é prender. Portanto, a análise do que sejam os meios necessários diz, fundamentalmente, respeito à realização de uma prisão e não mais do que isso.

Afinal, como no Brasil não existe ainda o dever legal de matar (a exemplo do que ocorre com os executores de pena de morte em outros países), há que se compreender que o art. 292 obedece a uma finalidade estrita, ou seja, realizar uma captura. Assim, em situações em que a prisão se torna inviável, desaparece a finalidade da atuação policial, cuja única saída legal possível deveria ser a formalização de um relato sobre a impossibilidade de cumprimento do dever. Os meios são, obrigatoriamente, circunscritos aos fins, quando o assunto é eficácia. Os primeiros, portanto, não poderiam extrapolar os últimos, uma vez que a missão do policial nas situações de flagrante delito ou execução de mandado não é fazer qualquer coisa que lhe pareça moralmente justificável, mas única e exclusivamente prender. Qualquer resultado que extrapole a captura não se insere na definição de estrito cumprimento do dever legal.

Dito isto, passa-se ao problema da defesa. Das situações em que a resistência à prisão coloca, para o agente público, a necessidade de se defender ou defender outras pessoas presentes no momento dos fatos, emerge a discussão sobre legítima defesa. Assim como o estrito cumprimento do dever legal, a legítima defesa é o que se chama de excludente de ilicitude, ou seja, uma situação em que a ação está juridicamente justificada de forma que o resultado não pode ser considerado crime.

No caso do estrito cumprimento do dever legal, pode o policial, por exemplo, imobilizar o sujeito que está em flagrante delito ou é alvo do mandado de prisão, sem que isto resulte, para o policial, qualquer criminalização, já que o meio é adequado à finalidade de prender. No caso da legítima defesa, como a finalidade é defender a si mesmo ou defender outra pessoa de uma agressão realizada ou prestes a se realizar, os meios adequados perdem a limitação que possuem no caso de estrito cumprimento do dever legal. Assim, na legítima defesa, passam a ser admitidos juridicamente todos os meios disponíveis para preservar a vida, a integridade física ou o patrimônio de alguém.

A legítima defesa é uma excludente de ilicitude que, na legislação atual, aparece nos artigos 23 e 25 do Código Penal. Ela não diz respeito, especificamente, à ação policial, embora a inclua quando necessário. Em outras palavras, qualquer pessoa pode agir em legítima defesa e isto implicará a inexistência de um crime, o que é diferente da inexistência de formalização da ocorrência, como informa o já citado artigo 292 do Código de Processo Penal para os casos que envolvam ação de policiais. Ainda que alguém aja em legítima defesa, sendo policial ou não, haverá necessidade de procedimento legal para registar e apurar os fatos.

O instituto da legítima defesa, embora possua limites mais amplos que o estrito cumprimento do dever legal, também possui uma finalidade já indicada pelo próprio nome do instituto. Trata-se, por óbvio, de defender, ou seja, de fazer cessar uma agressão ou impedir que ela ocorra. Toda ação que extrapole a finalidade de parar uma agressão ou evitá-la, é considerada, nos próprios termos do Código Penal, um excesso. E todo excesso é punível, segundo o artigo 23, parágrafo único, do mesmo Código.

Vale dizer que, se numa dada situação, um disparo de arma de fogo na perna do agressor é suficiente para fazer cessar ou evitar uma agressão, não está juridicamente justificado seguir atirando até causar a morte. Se assim acontece, abre-se a possibilidade de responsabilização penal de quem agiu em excesso. Quando o artigo 25 do Código Penal utiliza a expressão “usando moderadamente dos meios necessários”, o que se impõe é a existência, ainda que de forma bastante ampla e plástica, de algum limite à ação de quem se defende ou defende outra pessoa. Este limite se aplica às ações de policiais já que o instituto também abriga estas ações. Como qualquer outra pessoa em situação de defesa, policiais serão abrangidos pela excludente de ilicitude e não serão criminalizados por suas ações, porém, desde que obedeçam aos referidos limites.

O que se produziu, até o momento, no Brasil, foi uma maneira distinta de formalizar situações que invocam o instituto da legítima defesa em favor de policiais. Se, por exemplo, qualquer pessoa do povo age em legítima defesa e, com isso, causa a morte de alguém, haverá um inquérito policial, simplesmente classificado como homicídio que, ao final, no relatório da autoridade competente (neste caso, um delegado da polícia civil), deve indicar a presença da excludente de ilicitude para que, ato contínuo, o Ministério Público peça ao Judiciário, o arquivamento do procedimento (o próprio delegado não possui autoridade para arquivá-lo segundo legislação em vigor hoje).

Quando, no entanto, quem alega legítima defesa é um policial que estava em serviço no momento em que causou a morte de uma pessoa, invoca-se o art. 292 do Código de Processo Penal para produzir um procedimento que se tornou conhecido como “autos de resistência”, “resistência seguida de morte” ou, de acordo com a Resolução Conjunta 03/15, do Ministério da Justiça, Polícia Federal e Conselho Superior de polícia, “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”. Embora esta resolução, e mesmo a legislação anterior, obriguem à instauração de inquérito, a própria classificação a constar na abertura do procedimento é diferente, posto que não será simplesmente “homicídio”. A Resolução 03/15, inclusive, confere a estes procedimentos tramitação prioritária.

Desta forma, apenas com a observação estritamente jurídica da combinação destes dispositivos, é possível inferir que a comunicação, a elaboração, a organização e a tramitação dos procedimentos que narram situações de legítima defesa já são, hoje, diferentes quando a alegação parte de um policial que estava em serviço e quando se trata de qualquer outra pessoa do povo na mesma situação.

Estas diferenças procedimentais não são por acaso e também possuem finalidades históricas, políticas e sociais que extrapolam a mera interpretação dos dispositivos da legislação. É disto que pretendo tratar mais adiante, em outro texto.


Aline Passos é advogada, professora de Direito Penal e Processo Penal. Doutoranda em Sociologia pelo PPGS-UFS.

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