Correio da Cidadania

“É o pior início de governo desde o fim da ditadura”

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O governo de Jair Bolsonaro completa três meses e os tradicionais 100 dias de paz política para apresentar suas credenciais passaram longe de ser a marca do período. Em meio a episódios confusos e constrangimentos quase diários, a insólita prisão do ex-presidente Michel Temer. Em entrevista ao Correio, o sociólogo Ruda Guedes Ricci afirma que “Bolsonaro não conseguiu assumir a investidura de presidente da República. Ele não dirige o Executivo. Há um vazio de poder que os militares tentam ocupar. Isso precisa ficar muito claro”.

Sobre a breve prisão de Temer, Ruda enquadra como uma revelação das disputas entre o novo e o antigo bloco de poder. Com vantagem para as velhas raposas da política brasileira.  

“Isso veio numa toada de ataques e pressão ao Governo Federal, uma vez que Maia tentava aumentar seu espaço e de seu partido, através da diminuição de espaços do governo e imposição de algumas derrotas em votações. Bolsonaro não cedeu e o Executivo resolveu atacar com a prisão de Temer. Deu errado, porque Maia cercou o governo.”, analisou.

Além de criticar a visita de Bolsonaro aos Estados Unidos, na qual nada de concreto foi trazido ao Brasil, Ricci também comenta o atual momento da oposição de esquerda, desmantelada pela dinâmica política dos anos em que teve livre acesso ao governo e a crise dos sindicatos. Mas afirma que há um “retorno aos eixos” do país após o avanço da extrema-direita nas ruas e urnas.

“Em primeiro lugar, é grande a falta de coordenação. Os ministérios parecem, vários deles, um governo solo, que não compõem um conjunto de ministérios liderados por um governo (....) A saída parlamentar já é tratada por alguns com desenvoltura. Os militares não querem golpe, não querem uma ação fora das lógicas e regras constitucionais, pois sabem que têm a imagem maculada depois do regime militar”, sintetizou.

A entrevista completa com Ruda Guedes Ricci pode ser lida a seguir.


Correio da Cidadania: Como você avaliou a prisão e soltura de Temer em poucos dias? O que significa no atual contexto?

Ruda Guedes Ricci: A prisão, como várias da operação, não ocorreu dentro da normalidade. Em momento algum Temer sinalizou possível fuga do país ou se verificou algum ato de obstrução de justiça. Não há motivo para prendê-lo por indícios de corrupção antes do direito à defesa e sem nenhuma situação que gera dificuldade na apuração de fato aparentemente ilícito. No estado democrático de direito há procedimentos a cumprir, nos quais a pessoa é inocente até prova em contrário. É um cidadão com plenos direitos.

A prisão do Temer foi mais uma ação de uso do Judiciário e da lei para atacar e pressionar politicamente algum poder constituído. No caso, ficou evidente uma ação deliberada do Executivo federal contra o Legislativo, em especial a Câmara dos Deputados, considerando também a prisão do Moreira Franco, que tem parentesco com o Rodrigo Maia.

Isso veio numa toada de ataques e pressão ao Governo Federal, uma vez que Maia tentava aumentar seu espaço e de seu partido, através da diminuição de espaços do governo e imposição de algumas derrotas em votações, como no caso da Medida Provisória que impedia acesso à informação pública federal. Ele derrotou aquela MP e em seguida afirmou que “o DEM está disposto a melhorar o fluxo do governo na Câmara e no Senado”, duas casas dirigidas pelo DEM, em troca de mais espaço. Bolsonaro não cedeu e o Executivo resolveu atacar com a prisão de Temer. Deu errado, porque Maia cercou o governo.

É uma prisão muito estranha e extemporânea, embora haja indícios de que, de fato, Michel Temer tenha cometido crimes. Mas temos de seguir as regras democráticas.

Correio da Cidadania: O que dizer da Lava Jato a esta altura?

Ruda Guedes Ricci: Não resisto ao trocadilho: está fazendo água. Não é intenção do Bolsonaro, tanto que tem Moro como ministro, mas desde que assumiu são derrotas atrás de derrotas da Operação. É possível que aquele arco de alianças que apoiava a Lava Jato contra o PT tenha compreendido que a operação já cumpriu a tarefa de tirar o antigo governo e se seguir em frente vai pegar os alvos não petistas. Assim, já teria “batido no teto”.

Tenho a impressão de que daqui em diante vamos ter várias mudanças no clima político vivido pelo Brasil desde 2015. Para lembrar, o ápice da extrema-direita no Brasil e mobilização da população contra pautas de esquerda foi, segundo o Vox Populi, dezembro de 2015. A partir de então, começou a cair a parcela da população que pede volta da ditadura, prega o ódio etc. O voto conservador se estabilizou, mas não o radical de extrema-direita.

Significa que, lentamente, o país começa a voltar aos eixos e deixar os arroubos de lado, cujo ápice foi 2015. A Lava Jato de certa forma está no bojo deste retorno do bumerangue político-ideológico brasileiro. Foi ao limite do espaço aberto pela extrema-direita em 2015 e começa a voltar ao normal. Nisso, vemos a queda acelerada de popularidade do governo Bolsonaro, fruto de tal contexto.

Correio da Cidadania: Nesse sentido da queda da popularidade do presidente, qual avaliação pode ser feita no momento em que serão completados os primeiros 100 dias de governo, tradicionalmente um período de maior compreensão por parte do público?

Ruda Guedes Ricci: Um desastre completo. É o governo de início mais desastroso desde o fim do regime militar. Em primeiro lugar, é grande a falta de coordenação. Os ministérios parecem, vários deles, um governo solo, que não compõem um conjunto de ministérios liderados por um governo. Fica evidente que nunca houve projeto político estratégico.

Dessa forma, começa a ser corroborada uma tese forte do ano passado: o bloco que o levou ao poder não imaginava que venceria a eleição. Só no final do primeiro turno começou a perceber a possibilidade. É um governo sem coordenação e projeto, que perdeu as bases no Congresso. E há um discurso nos bastidores de que os militares de dentro do governo já começam a discutir internamente a saída parlamentarista, a fim de diminuir o poder de Bolsonaro. É o início de uma situação constrangedora para o Exército.

A situação do presidente é a pior possível, inimaginável para quem viu sua vitória. Uma vitória emocional, jogando muito pesado em cima da história da facada e também da onda de fake news, em especial na reta final do primeiro turno e início do segundo.

Mas, de fato, há uma diferença muito grande entre ganhar uma eleição e ter poder para governar. Ele conseguiu ganhar uma eleição, mas não tem base política e nem social para dar rumo ao governo.

Correio da Cidadania: As especulações de que o mercado pode pular fora da barca do governo, além do tratamento que alguns empresários deram ao general Mourão em evento na Fiesp na última semana, significam o que em sua visão?

Ruda Guedes Ricci: Em primeiro lugar, em fevereiro, no período de recuperação pós-operatória de Bolsonaro, o Relatório Reservado, publicação criada em 1966, uma das mais longevas do país e voltada ao empresariado, já destacava que os militares tinham decidido pelo que se chamava de “tutela militar do governo”. Já havia uma cisão no governo.

Vale lembrar que os militares têm cerca de 130 cargos de primeiro e segundo escalões, oito ministros e o vice-presidente. É o principal bloco no interior do governo, em termos de coesão. Depois tem o bloco dos empresários, capitaneado pelo Paulo Guedes, e os evangélicos. Mas nenhum dos dois tem a mesma força.

A saída parlamentar já é tratada por alguns com desenvoltura. Os militares não querem golpe, não querem uma ação fora das lógicas e regras constitucionais, pois sabem que têm a imagem maculada depois do regime militar.

A situação é: Bolsonaro está isolado. É o pior momento de sua vida política. Os filhos atrapalham; há relações com milícias; nomeações obscuras de assessores; a morte da Marielle; gastos com cartão de crédito corporativo; pronunciamentos indevidos, com ataques a outros países descabidos para a maior autoridade nacional, como se estivesse no palanque de campanha. Isso tudo afeta sua liderança de forma acelerada e hoje ele está na mesma altura de antes: um mero parlamentar.

Bolsonaro não conseguiu assumir a investidura de presidente da República. Ele não dirige o Executivo. Há um vazio de poder que os militares tentam ocupar. Isso precisa ficar muito claro.

Quanto aos empresários, eles pressionam pela Reforma da Previdência, mas ao que parece não será aprovada se colocada em votação. Possivelmente, será fatiada para que os itens mais caros sejam negociados e preserve-se o conjunto da obra. O que é central nela? A capitalização da Previdência e a criação da previdência privada, principalmente para segmentos da população de renda média ou média-alta.

Paulo Guedes negocia com sindicatos de servidores públicos federais a volta de uma contribuição parecida com a CPMF e com ela os empresários deixariam de recolher sua parte para o financiamento da Previdência. E com este fundo se bancaria a previdência pública dos mais pobres. Quase sempre as notícias não revelam as negociações efetivamente em curso, que dão a entender que a reforma não tem voto no Congresso Nacional hoje.

Correio da Cidadania: Sobre a visita de Bolsonaro aos Estados Unidos o que você comenta e como ela coloca o Brasil regional e globalmente?

Ruda Guedes Ricci: Ficou a impressão de que Bolsonaro achava que estava na Disneylândia. Ele não trouxe nada ao país. E o que parecia estar trazendo para a área econômica o agronegócio rejeitou. Ele voltou com um boné. Essa foi a grande vantagem da viagem: um boné do Trump.

Não houve vantagem ou liderança nenhuma, ele subordinou a liderança do encontro ao Trump e não obteve nada. Como dito, foi passear na Disney.

Correio da Cidadania: Considera que já existem respostas oposicionistas ao que está em andamento? Como enxerga o papel de setores de esquerda que foram governo por mais de uma década e agora se encontram nesta posição?

Ruda Guedes Ricci: O que se percebe é: temos um bloco de extrema-direita que avançou muito nas eleições em queda, em desestruturação. O PSL, a segunda bancada, é um partido sem liderança, rachado, desestruturado. Vemos novo avanço de setores conservadores e de centro-direita. Mas não vemos uma esquerda ocupar espaço. Vemos eventos políticos da esquerda, mas esta não tem projeto estratégico unificado. E ainda sente muita dificuldade para lidar com a base da sociedade brasileira.

Isso porque durantes os governos lulistas os movimentos sociais se concentraram nas negociações com o Estado. O movimento de habitação sentava pra negociar com a Caixa Econômica Federal; o de educação com o MEC; o da agricultura familiar com o Ministério do Desenvolvimento Agrário; o de luta pela terra com o INCRA etc. Tal lógica de fragmentação, que tem como base a focalização das políticas sociais, e não mais sua universalização, calou fundo nos movimentos sociais. Por isso está tão difícil unificar a agenda.

Paralelamente, temos uma crise no movimento sindical e sua fonte de financiamento, dado que a Reforma Trabalhista tirou o imposto sindical e agora se exige que a mensalidade decidida em assembleia seja paga pelo trabalhador em boleto, individualmente.

Finalmente, há uma mudança de características da sociedade, conforme dados do Vox Populi. O eleitorado de esquerda tem hoje a mesma dimensão do de direita, cerca de 30%. A antiesquerda, do discurso de ódio, só 8%. O restante configura 40%. Esses 40%, dependendo do lado para o qual penderem, dão a eleição para algum candidato. Lula conseguiu abocanhar grande parte desta faixa e seu partido venceu quatro eleições.

Com a esquerda desgarrada de sua base social após o desgaste de seus governos, Bolsonaro conseguiu atrair parte significativa deste bloco, somado ao percentual já de direita. E quem saiu da base lulista e foi para a base de Bolsonaro? Os evangélicos, principalmente as mulheres. Haddad teve leve vantagem entre católicos. Entre evangélicos(as) a vantagem de Bolsonaro era quase o triplo. E este eleitorado se preocupa com a questão da família, sobre a qual a esquerda não consegue falar. A esquerda sabe falar de direitos coletivos dos trabalhadores, não de família.

Mas tal eleitorado está preocupado com a família, sua unidade mais básica. Por isso durante a onda das fake news o grande alvo não eram os comunistas ou a esquerda; eram mulheres e gays que querem “horrorizar” a vida das famílias, crianças e “mulheres honestas”. A questão sexual que divide esquerda e direita é o fundamento da disputa ideológica de valores da sociedade. A esquerda, sindicatos e movimentos sociais (os últimos até conseguem) não falam deste tema e assim perdem espaço.


Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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