Da “explosão demográfica” ao “envelhecimento populacional”: 220 anos de falácias
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- Henrique Júdice Magalhães
- 05/04/2019
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A contrarreforma previdenciária tem como pretexto o envelhecimento populacional. Da mudança do perfil etário da população pela queda da natalidade e aumento da expectativa de vida, todo o arco parlamentar e seus intelectuais orgânicos concluem ser preciso aumentar idade e tempo de contribuição para aposentadoria e reduzir seu valor. Se cresce o número de idosos – dizem – , devem-se reduzir seus direitos. O objetivo é congelar a parcela da renda nacional destinada a eles.
Na exposição de motivos da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 6/2019, o ministro da Economia, Paulo Guedes, diz que ela atende à “indispensável busca por um ritmo sustentável de crescimento das despesas com previdência em meio a um contexto de rápido e intenso envelhecimento populacional”. Na PEC 287/2016, do governo Temer, o então ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, dizia que o Brasil “vem passando por um processo acelerado de envelhecimento populacional”.
Já Guido Mantega, Garibaldi Alves Filho e Miriam Belchior – ministros, respectivamente, da Fazenda, Previdência e Planejamento de Dilma Rousseff – , pretenderam justificar, no fim de 2014, a Medida Provisória 664 (contra inválidos, deficientes e viúvas) alegando “aumento da participação dos idosos na população total e uma piora da relação entre contribuintes e beneficiários”.
Nenhum deles leva em conta que 1/3 dos assalariados brasileiros trabalha sem carteira assinada, como mostram sucessivas edições da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE. Nem que, somando a isso os 12% de desemprego aberto (só pessoas que procuraram trabalho na semana de referência da PNAD), chegamos a quase metade da população assalariada. Ou que os exportadores estão isentos de contribuir para o INSS. A revogação desse privilégio, a criação de empregos e uma fiscalização trabalhista eficiente cobririam, no todo ou em boa parte, o déficit que o governo diz que o INSS tem.
Mas deixemos tudo isso de lado.
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O indicador da proporção entre as pessoas em idade de trabalhar e aquelas que não devem fazê-lo e a quem o Estado deve prover cuidados pagos com o produto do trabalho das demais se chama razão de dependência. O IBGE considera que a idade de trabalho é dos 15 aos 64 anos, apesar de a Constituição determinar escolarização obrigatória até os 17 e a Organização Mundial de Saúde (OMS) considerar que, em países “em desenvolvimento”, uma pessoa é idosa a partir dos 60. Mesmo inexatos à luz desses aspectos, os dados abaixo retratam bem como evoluiu no tempo a razão de dependência em nosso país:
Ano | Razão de Dependência (%) |
1940 | 87,5 |
1950 | 85,5 |
1960 | 90,2 |
1970 | 89,3 |
1980 | 79,7 |
1990 | 71,7 |
2000 | 61 |
2010 | 55,2 |
2020 (projeção feita em 2008) | 50,9 |
Fonte: IBGE (https://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=CD95)
Fonte: IBGE (https://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=CD95)
Como se vê, ela cai fortemente desde 1940. Em 2020, será a menor da história. Mesmo que se considerem as projeções para anos mais distantes, chegaria a 75,1% em 2050. Não está num horizonte visível que volte sequer ao que era em 1980 (79,7%).
Mas como, se a “a expectativa de vida ao nascer passou de 45 anos em 1940, para 76 anos hoje” e a “expectativa de sobrevida aos 65 anos cresceu de cerca de 10,6 anos em 1940, para 18,7 anos em 2017”, segundo dados do IBGE citados na PEC 6?!
Simples: pela forte queda da taxa de natalidade, que “em 1960, era cerca de 6 filhos por mulher, reduzindo-se para menos de 1,8 atualmente”, como consta da mesma proposta. A proporção de idosos cresce num ritmo menor que aquele em que a cai a de crianças. Logo, a elevação da despesa pública relacionada à terceira idade é compensada (ainda que não se possa calcular precisamente em que medida) pela redução quantitativa da demanda concernente à infância e à adolescência.
Como o sistema educacional e a saúde materno-infantil não são financiados por contribuições específicas, ninguém pensou, na década de 1960, em calcular o “déficit” desses serviços públicos, nem quantos contribuintes diretos ou trabalhadores aptos a gerar riqueza havia para cada criança, como fazem, hoje, com as aposentadorias e pensões. O resultado teria sido bem mais aterrador que a projeção de um contribuinte por beneficiário que consta da PEC 6 para a Previdência em 2040.
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O que não muda é o terrorismo demográfico baseado em falácias. Desde que Thomas Malthus escreveu seu primeiro Ensaio sobre o Princípio da População, e por uns 200 anos, seu foco foi as crianças. Há pouco mais de 20, são os idosos. O capitalismo tem um problema insolúvel com ambos: a existência de pessoas que não produzem, não compõem reservas de mão de obra para baixar salários, não estão aptas a matar numa guerra e precisam de cuidados é disfuncional para ele.
Por isso, quer jogá-las ou mantê-las no mercado de força de trabalho. No Brasil, fez isso com as crianças baixando a idade mínima legal de trabalho para 12 anos em 1967 e deixando, desde sempre, de coibir o trabalho antes dela. Com a elevação da idade mínima constitucional explícita de trabalho para 16 anos (14 como aprendiz) e a existência, hoje, de um pouco de fiscalização e consciência quanto ao trabalho infantil, ataca os idosos, impondo ou aumentando idades de aposentadoria.
A redução da natalidade foi, no Brasil, uma política extraoficial do Estado pós-64, imposta pelos EUA a partir do Memorando 200 de seu Conselho de Segurança Nacional, intitulado “Consequências do Crescimento da População Mundial sobre a Segurança e os Interesses Transcontinentais dos Estados Unidos” [1]. Que os mesmos grupos de interesses se mostrem agora tão preocupados com o envelhecimento (consequência do que fizeram), traz à mente a tradicional advertência: “cuidado com os seus desejos, eles podem se tornar realidade”.
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No interessante estudo As tendências da população mundial: rumo ao crescimento zero [2], os demógrafos Fausto Brito, José Alberto Magno de Carvalho, Cássio Turra e Bernardo Lanza Queiroz observam que “especialistas, instituições e países envolvidos com as questões demográficas sequer imaginavam que os anos 1980 poderiam apresentar inflexão no crescimento absoluto da população mundial. Estavam extremamente preocupados com a velocidade do crescimento, tendo como referência as taxas das três primeiras décadas da segunda metade do século”.
“Caso prevalecesse a taxa de crescimento dos anos 1960” – prosseguem – , “chegar-se-ia, em 2050, a uma população próxima de 18,5 bilhões de habitantes, um pouco mais que o dobro das projeções revistas da Organização das Nações Unidas, 9,1 bilhões”.
Se as projeções baseadas na alta natalidade dos anos 50/60 não se concretizaram, não há porque pensar que as de agora, relacionadas em sua queda, necessariamente se concretizarão. Ambas só retratam a tendência do momento em que são formuladas. Um país menos inóspito que o Brasil de hoje atrairia imigrantes jovens e despertaria neles e nos brasileiros o desejo de ter mais filhos – algo que muita gente não se permite na horrível situação atual.
Notas:
[1] Ver https://anovademocracia.com.br/no-36/252-crimes-de-guerra-em-tempos-de-qpazq . Íntegra do documento em inglês: https://pdf.usaid.gov/pdf_docs/Pcaab500.pdf
[2] http://www.ufjf.br/ladem/files/2009/05/As-tendencias-da-população-mundial6.pdf
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Henrique Judice Magalhaes é jornalista e advogado. Texto também publicado em A Nova Democracia e gentilmente cedido ao Correio pelo autor.