Pombas no monturo: evangélicos, obras faraônicas e favelas
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- 05/04/2019
Noite de sexta-feira no morro do Timbau, na megafavela da Maré, a uns duzentos metros da populosa avenida Brasil, sempre saturada de ônibus e automóveis. Um pequeno grupo de seis pessoas conversa frente a um minúsculo comércio que oferece cervejas artesanais. Pela rua estreita que faz parte do labirinto urbano, se apressam motos, carros e transeuntes que sobem e descem quase esbarrando nas cadeiras e calçadas. A música dos frequentadores que se concentram na ruela é tão potente que conversamos gritando.
“A música alta incomoda as classes médias quando vêm à favela”, comenta Timo, com um sorriso irônico e um olhar que pretende nos incluir na provocação. Mas a distinção de classes é mais complexa, já que, nos últimos anos, todos os seus amigos favelados estão cursando as universidades federais ou estaduais. Entre os condutores de carros e motos, despontam armas, algumas de cano longo, que portam com indiferença, como um acessório qualquer. Ninguém se altera, nem sequer quando um menino faz corcovear a moto numa finta improvável pelo parco espaço.
O ambiente é de festa, como todos os dias no Timbau. Ninguém poderia dizer que existe a menor preocupação pela ascensão de Jair Bolsonaro. Só os que compartilhamos a mesa falamos de política, os demais se movem no ritmo lento e pesaroso da favela.
Subindo o morro, aparece um grupo de pessoas, homens e mulheres, mestiços e negros, ao redor dos 30 anos, bem vestidos, mas não elegantes, que distribuem panfletos em todos os comércios. Amavelmente, explicam que estão nos convidando para um “congresso de jovens” no enorme espaço da Assembleia de Deus, três quadras abaixo. O panfleto é pequeno, mas está muito bem impresso, em cores, com fotos das cerimônias religiosas e pouco texto.
“Um grande coro de 200 jovens e uma bela orquestra estarão adorando Deus com lindos hinos”, pode-se ler no verso. “Você é nosso convidado e será um enorme prazer receber sua visita”. Logo abaixo, o endereço e os horários das missas diárias, que, invariavelmente, são às 7 da noite, quando as pessoas voltam do trabalho.
Impossível não se pôr a pensar no silêncio e no respeito que inspiram. As igrejas evangélicas e pentecostais estão muito enraizadas na favela, ao ponto de que, no caminho até a casa de Timo, apenas cem metros morro acima, reparamos que, no trajeto, há três igrejas pequenas, do tamanho de uma garagem, onde meia dúzia de vizinhos ouvem música e conversam. Contrastam com as igrejas grandes, enormes galpões capazes de abrigar milhares de fiéis.
Em algum momento, alguém oferece outro panfleto, com o dobro do tamanho daquele dos evangélicos. Uma sopa de letras em branco e preto, com um discurso ideologizado. “Democracia = participação do povo”. “Bolsonaro = defende a ditadura = povo não participa = trabalhador sem direitos”, reza o escrito abaixo de um cabeçalho onde se lê: “A Maré de Trabalhadores, que vota na democracia”. Nenhum partido o assina, mas é evidente que se trata de propaganda do PT.
O complexo de favelas batizado Maré (já que está numa área inundável da baía da Guanabara) está formado por 15 bairros ou favelas na zona norte do Rio de Janeiro e conta com 150 mil habitantes. Timbau foi o primeiro bairro a ser povoado, por volta de 1940, por estar numa área não inundável, e tem certa altura da qual se divisam as demais favelas.
Complexo do Alemão
O menino de uns 7 anos foge correndo sob a sombra do edifício abandonado que se ergue, imponente, como um monumento ao nada. Escutam-se foguetes, ou tiros, a curta distância, e o menino chora, desconsolado. Alguns vizinhos dizem a ele que vá para sua casa, mas seus amigos continuam brincando, imperturbáveis.
O Morro da Baiana tem uma vista estupenda de todo o Complexo do Alemão, mas também das favelas vizinhas, como a Maré, mais povoada e extensa. A Baiana é um dos 16 bairros desse complexo de favelas sulcadas por cinco morros unidos por um teleférico que não funciona mais. Com 100 mil habitantes, é o segundo conjunto de favelas mais importante da região norte da cidade. Segundo dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o Alemão é a região mais pobre do Rio. E a mais violenta.
Quem nos acompanha é Leo, um jovem de tez escura que faz parte do coletivo Ocupa Alemão, em sintonia com o Occupy Wall Street, mas em versão pobre e afro. Explica que a região é muito tranquila e só se alvoroça quando há guerra entre as quadrilhas de narcotraficantes que disputam o território. Caminhando entre excrementos de cachorros e monturos onde ciscam as pombas, num ambiente de abandono e cinzenta tristeza, comenta a história do teleférico, que parece uma narrativa extraída do realismo fantástico.
O teleférico foi um dos projetos-estrela dos governos do PT e faz parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do estado do Rio de Janeiro promovido por Dilma Rousseff, o que lhe valeu a alcunha de “mãe do PAC”. Para construir cada uma das seis estações, um edifício de um quarteirão no alto dos morros, foi preciso demolir centenas de moradias em cada lugar, deixando várias centenas de famílias desalojadas.
O teleférico foi inaugurado em julho de 2011. Os Jogos Olímpicos terminaram em agosto de 2016, e, em outubro, o teleférico deixou de funcionar. As instalações estão se deteriorando e o material de rodagem se converte rapidamente em sucata: mais de 200 milhões de reais (uns 80 milhões de dólares) jogados no lixo. Quando Dilma Rousseff o inaugurou em 2011, junto ao governador Sérgio Cabral, do MDB, hoje preso no âmbito da operação Lava Jato, disse que o sistema transportaria 30 mil pessoas por dia. Nunca passou de 10 mil, apenas 10% da população do Alemão.
Foi tão mal planejado que não pode funcionar sem subvenções. Cada viagem tem um custo de R$ 6,70 (mais de dois dólares), o dobro do metrô e dos ônibus, que percorrem trajetos muito mais longos que os três quilômetros do teleférico. Leo se pergunta se não teria sido melhor investir em saneamento ou em obras de urbanização, apontando para as montanhas de lixo onde se alimentam hordas de pombos.
“Aqui, estava previsto investir em moradia, em saneamento integrado com redes de abastecimento de água potável, espaços esportivos, escolas e creches que nunca foram construídas”, diz o militante do Ocupa Alemão. O que continua funcionando ao lado da estação Baiana é uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), o fracassado projeto de levar os fardados para dar “segurança” aos favelados.
Até os edifícios abandonados do teleférico foram ocupados pela Polícia Militar, para “evitar que sejam ocupados por outras pessoas”, diz Leo, se referindo aos milhares de moradores que sobrevivem em habitações muito precárias.
O outro teleférico, o do Morro da Providência, a primeira favela da cidade maravilhosa, formada por ex-combatentes da guerra de Canudos (no final no século 19), fechou no mesmo ano, apenas dois meses após o do Alemão. Foi construído para os turistas, para ligar o Porto Maravilha e o Sambódromo à Estação Central. Deixaram em pé uma das vigas de sustentação, que invadiu completamente o único espaço público com que contava o morro.
As obras como os teleféricos produziram desalojados urbanos, assim como todas as realizadas para a infraestrutura do Mundial de 2014 e das Olimpíadas de 2016, ou as faraônicas, como as usinas hidroelétricas concebidas para alimentar o desenvolvimento. Um estudo do Instituto Igarapé sobre os desalojados à força entre 2000 e 2017 chega à alucinante conclusão de que, no Brasil progressista, houve quase 9 milhões de pobres forçados a mudar seus locais de residência.
O estudo, intitulado “Migrantes invisíveis. A crise do deslocamento forçado no Brasil”, revelou a existência de pelo menos 8,8 milhões de pessoas que foram obrigadas a se mudar. A enorme maioria delas, cerca de 6,4 milhões, tiveram que deixar seus lares por desastres naturais provocados por outros seres humanos, incêndios ou rompimento de barragens. Os projetos de desenvolvimento, como as estradas e represas, deslocaram mais de 1,2 milhão de pessoas, e a violência rural nos marcos da expansão do agronegócio, 1,1 milhão [1]. Ninguém menciona estas cifras quando se avaliam os impactos do progressismo nos governos. O Brasil é líder, na América Latina, em quantidade de desalojados dentro de seu território, e supera inclusive a Colômbia, que sofreu uma guerra de seis décadas.
Acelerar a corrupção
Na verdade, a construção de teleféricos inúteis não deve surpreender, já que boa parte das obras do PAC foram desastrosas e os empresários e políticos que tomaram parte nelas estão envolvidos em tramas de corrupção.
O relatório “Modernização Fracassada”, publicado como livro, aponta que as dez maiores obras desse programa desenvolvimentista adotado em 2007 foram um rotundo fracasso. Apenas uma está em funcionamento, duas foram abandonadas ou interrompidas e as demais funcionam com restrições ou de forma irregular [2].
Por exemplo, a construção do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), uma obra de importância estratégica para ampliar a capacidade de refino e processar o extraído das ricas jazidas de petróleo e gás das bacias de Santos e Campos, foi interrompida apesar de já ter recebido a astronômica cifra de 13 bilhões de dólares. Outras obras grandiosas e desnecessárias, como a usina hidroelétrica de Belo Monte, nunca produzirão o estimado, apesar do brutal dano ambiental e social que provocaram.
Seria preciso ouvir os “refugiados de Belo Monte”, como os denomina a jornalista Eliane Brum, as pessoas desalojadas de suas casas e deslocadas para a periferia da cidade de Altamira em condições precárias, que valeram à usina o nome de “Belo Monstro” (El País, edição brasileira, 16-5-18). A quarta hidroelétrica do mundo só beneficiou o ego dos governantes e os bolsos das grandes construtoras (Camargo Correa, Odebrecht, Andrade Gutiérrez, entre as mais conhecidas).
“O que o governo não diz é que, na temporada de seca do rio Xingu, a produção de energia cai drasticamente”, aponta Brum. Nesses momentos, produzirá menos da metade de seu potencial, “o que a coloca como uma das hidroelétricas menos produtivas em relação à capacidade instalada”.
Favela-crime
Uma reportagem da Folha de São Paulo revela que o mesmo crime, cometido por um habitante de uma favela, implica uma pena muito mais dura que se for cometido por alguém que vive num bairro de classe média. O jornal fez uma investigação baseada em dados do Banco Nacional de Ordens de Prisão, criado pelo Conselho Nacional de Justiça.
No Rio de Janeiro, em 41% das 82 mil ordens de prisão por tráfico de drogas, “o réu foi acusado ou condenado também por associação para o tráfico”, enquanto a média nacional é de 12% e, em São Paulo, de 10% (Folha de São Paulo, 27-4-18).
Desse modo, quatro de cada dez pessoas flagradas com drogas receberam uma pena mais alta pelo “crime” de viver em favelas. O coordenador da defesa criminal do Rio, Emanuel Queiroz, disse ao jornal paulista que “o Ministério Público pergunta à polícia: - Essa área é dominada pelo tráfico? ‘Sim’. Isso já é suficiente para impor três anos a mais de pena, por considerar o réu associado para o tráfico. É rotina”.
Segundo Queiroz, a dupla acusação é uma estratégia da Polícia Civil e do Ministério Público para “inviabilizar pedidos de liberdade provisória, já que as penas superiores a oito anos se cumprem em regime fechado”.
Um estudo da Defensoria Pública do Rio analisou 3.475 acusações por tráfico de drogas entre 2014 e 2015 e concluiu que, em 75% deles, se aplicou uma dupla pena pelo lugar onde a pessoa foi detida.
O mais grave é que, para a justiça, o depoimento de um policial é suficiente para condenar alguém. Em vários casos analisados pela Folha, os policiais ouvidos no processo deram “declarações idênticas, usando as mesmas palavras”. Para alguns advogados, a lei de drogas aprovada em 2006 “criou um salvo-conduto para a arbitrariedade na periferia, começando pela distinção entre usuários e traficantes”. Os primeiros são de classe média, os segundos são pobres.
E voltando aos evangélicos: “O que incomoda de parte dos gays e lésbicas é a ostentação pública de identidade. Não sua condição, porque na favela, sempre houve muita tolerância”, explica Leo, tentando decifrar as razões pelas quais seus vizinhos se inclinaram pelos pentecostais e evangélicos.
Não é tão difícil entender. Tendo nas mãos a Folha Universal, o semanário em cores da Igreja Universal, do qual se distribuem quase 2 milhões de exemplares, as coisas acabam se encaixando. Na capa, meninos e meninas sorrindo. Nas páginas internas, se sucedem os assuntos: família, alimentação saudável, atraso escolar, esporte infantil, uma seção dedicada ao mioma uterino e outra a combater os ciúmes como sinal de fraqueza.
Para além dos discursos, quem se ocupa dos mais pobres? Os empresários e os governos fizeram seus negócios, como mostra o desastre do teleférico, dando prioridade ao turismo acima de necessidades tão urgentes como a saúde e o saneamento, que não estão atendidas em nenhuma favela. Os evangélicos estão perto do povo. São parte da favela.
Não pude ver nenhum comitê de partidos de esquerda nas favelas que visitei, em várias ocasiões, nos últimos anos. As igrejas pentecostais continuam crescendo e continuarão até que as esquerdas deixem de lado os discursos e voltem a pisar na lama.
Notas
[1] As informações constam de “Migrantes Invisíveis”, do Instituto Igarapé, março de 2018.
[2] Jacob Binsztok e Jorge Luiz Barbosa, “Modernização Fracassada”, Consequência. Rio de Janeiro, 2018.
Raul Zibechi é cientista político e jornalista uruguaio.
Tradução de Henrique Júdice Magalhães
O original encontra-se em https://brecha.com.uy/palomas-en-el-basural/
Raul Zibechi