O caso MABE e a mutação da burguesia brasileira
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- Renato Nucci Jr.
- 24/04/2019
Para os liberaizinhos brasileiros a empresa privada é a fonte de todas as virtudes morais e de eficiência econômica. O Estado, ao contrário, seria a sede de todos os nossos males, dotado de um defeito congênito onde vicejaria a corrupção e a ineficiência. Em decorrência dessa ideologia, sofreriam os pobres empresários brasileiros com o gigantismo estatal e uma legislação trabalhista que tornaria suas vidas muito duras.
O caso da falência da empresa de eletrodomésticos Mabe, cujas plantas principais se localizavam em Campinas e Hortolândia, desmonta essas falácias. A empresa entrou com pedido de recuperação judicial em 2013, mas teve sua falência decretada em 2016. Alguns podem pensar que na raiz dessa situação estaria a crise econômica. Nada mais falso.
Mesmo com as vendas de produtos da linha branca bombando no Brasil, os balanços apresentavam prejuízos gigantescos. Essa “façanha” foi alcançada por uma decisão conscientemente tomada pelos seus controladores no México e no Brasil. Por um ardil contábil os produtos destinados à exportação, e consequentemente os lucros deles originados, eram contabilizados como se tivessem sido fabricados no México.
A trama foi descoberta pela administradora judicial da massa falida, que apoiada em investigações feitas por empresas de consultoria dos Estados Unidos especializadas em fraudes empresariais, recuperou em computadores da Mabe e-mails apagados entre 2013 e 2016, cujas mensagens sugerem a existência de tais manobras.
Um dos resultados dessa falência programada foi a de deixar no desalento milhares de famílias sofrendo as agruras do desemprego. Muitos trabalhadores sequer receberam todos os seus direitos. Sofrimento aumentado pela dificuldade de alguns operários em arrumar emprego por causa das lesões provocadas pelo ritmo intenso da produção.
O caso Mabe desmistifica esse suposto virtuosismo das forças de mercado e sobre o quanto sofrem os empresários brasileiros. Para garantir seus lucros, os acionistas da empresa não pensaram duas vezes em premeditar uma situação cujo custo social tem sido pago pelos trabalhadores e pelo Estado. A dívida trabalhista alcança 120 milhões de reais e a dívida com o Estado, pela falta de pagamento de impostos, chega a 524,6 milhões. Juntas, representam quase 60% de toda a dívida da empresa, cujo volume atinge a impressionante soma de 1,1 bilhão de reais. Em razão disso, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou o bloqueio de bens dos ex-sócios num total de 1 bilhão de reais.
Mas o caso Mabe tem outro aspecto importante que merece ser analisado e do qual podemos extrair importantes lições para a luta política dos trabalhadores. Trata-se do desaparecimento de uma burguesia brasileira disposta a esboçar um projeto mínimo de desenvolvimento e de industrialização do país. Como burguesia de um país capitalista dependente, ela tem optado crescentemente por uma via de acumulação de capital cada vez mais ancorada na especulação e no parasitismo financeiro.
De uma burguesia cujo eixo principal da acumulação girava em torno das atividades funcionantes, conceito utilizado por Marx para definir o capital investido na produção direta de mais-valia, assiste-se a uma migração para atividades rentísticas. Temos, portanto, uma profunda mutação no seio da burguesia brasileira.
Por isso o caso da Mabe também é ilustrativo. A empresa originariamente se chamava Dako, situava-se em São Paulo e estava quase inativa. Em 1935, um burguês campineiro chamado Joaquim Gabriel Penteado, que em 1926 já havia criado em Campinas a primeira fábrica de lápis do país, adquire a Dako e em 1947 transfere sua planta da capital paulista para o interior.
Na década de 1980, a empresa se tornou a maior produtora de fogões a gás da América Latina. Essa iniciativa empresarial espelhava um período histórico em que se nutria a ideia de um projeto nacional-burguês de industrialização e de desenvolvimento, não obstante estar ancorado em uma profunda exploração dos trabalhadores.
Já em 2003, em um contexto histórico distinto, desaparecida boa parte dos velhos grupos empresariais nacionais, principalmente os paulistas, todos tragados pela onda de desnacionalização da economia brasileira iniciada na década de 1990, a família Penteado vende boa parte de sua participação na Dako para a mexicana Mabe.
Esta tinha uma trajetória empresarial muito similar a da Dako. Fora criada em 1946, na Cidade do México, por dois espanhóis refugiados da Guerra Civil. Tornou-se em 1960 a maior exportadora de eletrodomésticos do México. Em 1986, associou-se em uma joint-venture com a General Eletric. Em 1994, beneficia-se com o Tratado de Livre Comércio da América do Norte e expande seus negócios para o mercado norte-americano.
Nas investigações concluiu-se que os membros da família Penteado, Gabriel Penteado e José Roberto Moura Penteado, sabiam do propósito dos acionistas majoritários de levarem a empresa à situação falimentar, mas nada fizeram. Muito pelo contrário, trataram de proteger seu patrimônio abrindo offshores na Flórida, Estados Unidos, para evitar um eventual confisco de seus bens.
O caso ilustra bem a profunda mutação no caráter da burguesia brasileira, especialmente as frações localizadas no eixo Rio-São Paulo. Estas têm esposado uma lógica abertamente rentista. Suas profundas conexões com o circuito financeiro internacional induzem-nas a manter com o espaço territorial de origem um completo descompromisso com o seu futuro. Crescentemente apátrida, o destino do Brasil só lhe interessa na medida em que dele pode acumular capital pela via da espoliação do povo e do saque de suas riquezas, enviando-o em segurança para o exterior.
Para as grandes massas trabalhadoras, essa mutação no caráter da burguesia brasileira tem trazido consequências cada vez mais trágicas. Desemprego em massa, precarização do trabalho, sucateamento dos serviços públicos, desmonte do Estado nacional, degeneração do tecido social. Como vivem longe do Brasil, grandes frações burguesas e parcelas significativas das altas camadas médias estão longe dos efeitos devastadores causados por essa lógica parasitária e predatória.
É o projeto de país dessa gente. Já o povo, se não quiser ver o Brasil submergido numa situação ainda mais caótica num futuro não muito distante, precisa com urgência construir o seu projeto revolucionário de país.
Renato Nucci Jr. é ativista da organização comunista Arma da Crítica.