Ascensão e queda do bolsonarismo: a antipolítica contra o país e contra o povo
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- Potiguara Lima
- 07/05/2019
O bolsonarismo costuma aparecer como expressão de pensamentos, desejos ou ações de indivíduos agregados a partir de diferentes graus de frustração e medo. O grande êxito de seu principal representante foi ter aglutinado e organizado (em alguma medida) uma série de frustrações e ressentimentos sob a promessa de dar-lhes potência. As operações que visam dar potência à frustração e ao medo, tornar esses afetos referências fundamentais de comportamento e pensamento, exigem que o bolsonarismo lance mão continuamente de estratégias de propaganda violentas e incentive fundamentalmente a coerção ao invés do convencimento como método de convivência e de estabelecimento de relações políticas. Por isso tudo, o centro dessa política não pode deixar de ser a busca incessante de inimigos a serem perseguidos e combatidos.
O bolsonarismo foi gestado no interior do regime democrático brasileiro através de uma campanha sistemática ao longo de quase três décadas contra referências democráticas e de direitos sociais, civis e ambientais. Isso expressa muito dos limites da “transição lenta, gradual e segura” da Ditadura para a democracia da Nova República.
Entendida a negação dos direitos humanos como eixo norteador da trajetória política do presidente Bolsonaro, não é por acaso que o expoente do bolsonarismo tenha cultivado ignorância (admitida por ele mesmo) em relação a aspectos centrais de organização da economia e da sociedade brasileira e aos seus problemas historicamente decorrentes.
A antipolítica de Bolsonaro não tem o sentido de ser contrária ao tradicional jogo político conduzido por oligarquias a serviço do grande poder econômico. A antipolítica de Bolsonaro é sobretudo expressão de sua ignorância em relação a referências elementares de direito e respeito que devem balizar a convivência dos seres humanos entre si e com a natureza.
Mas longe de reconhecer suas limitações e procurar superá-las, a ignorância é elevada ao perigoso papel de virtude pelo bolsonarismo, fazendo coro a movimentos anti-intelectuais que nunca trouxeram consequências boas ao desenvolvimento de qualquer sociedade. Outra consequência dessa velha “nova forma” de fazer política é tratar “os inimigos a serem combatidos” não como portadores de projetos políticos alternativos, mas como fonte de depravação moral, como cânceres a serem extirpados para que uma sociedade brasileira idealizada possa se desenvolver como um “organismo saudável”.
O bolsonarismo não tem nenhuma condição de responder aos problemas do país (desigualdade, miséria, trabalho, moradia, saúde, educação, violência, meio ambiente...). Pelo contrário, seu governo agrava ainda mais todos os nossos problemas sociais. Uma primeira justificativa para isso é seu conhecimento tacanho da história do país (e do mundo). Se um movimento político não se propõe nem mesmo a entender com rigor os problemas do país, em sua dimensão histórico-estrutural, não é razoável se esperar que esse movimento tenha um projeto de desenvolvimento nacional para enfrentar tais problemas e construir um país mais justo e soberano.
Por outro lado, não podemos desconsiderar que a ascensão de Bolsonaro é sintomática da incapacidade das opções políticas tradicionais da Nova República (PSDB, PMDB e PT e seus arranjos e satélites), que foram pilares do regime político brasileiro nas últimas décadas, em não apresentarem um projeto para o país que enfrentasse as “camisas-de-força” da especulação financeira e da concentração de riquezas, essas sim verdadeiras mazelas a serem eliminadas da sociedade brasileira para que o país possa atender às necessidades de seu povo.
O nacionalismo de Bolsonaro é uma completa farsa, pois sem defender a economia brasileira da especulação e sem lutar junto com o povo contra a miséria e a exploração, faz a soberania do país se corroer ainda mais. A proposta de Reforma da Previdência de Bolsonaro é a expressão mais acabada de sua política antinacional, como procuraremos mostrar na segunda parte desse texto. A proposta, em suma, beneficia a especulação financeira e grandes empresários (com a prometida diminuição de “encargos” trabalhistas), às custas de mais sofrimento para o povo.
A corrosão acelerada da economia brasileira, com um processo intenso e profundo de perda de indústrias e de eliminação da já escassa margem de decisão do povo sobre a política econômica, agrava a dependência do país de alguns poucos produtos primários de exportação, limitando e concentrando a produção de riquezas e essa lógica, dependente e subdesenvolvida. Assim, escoa os principais esforços do país para o capital especulativo e os interesses imperialistas, contrários ao desenvolvimento do Brasil.
O desenrolar político brasileiro coloca cada vez mais a escolha pela soberania nacional como inevitável. Esperar autocrítica ou qualquer movimentação progressista de uma classe dominante egoísta e autocrática não será capaz de abafar os anseios por transformações profundas e para uma saída real à profunda crise social que vivemos. A tentativa de um novo período de conciliação de classes, dada a deterioração social e econômica do país, é uma saída inviável, além de um profundo erro político.
Precisamos ser “contra tudo o que está aí” de forma profunda, sincera e consequente a fim de construirmos um futuro digno para o nosso povo. A farsa política que é o bolsonarismo enxergou na possibilidade de se maquiar como “radicalmente contra a ordem” o meio de chegar à presidência da República. Mas o caráter leviano, falacioso e inconsequente já se mostrou, rapidamente, como a verdadeira marca do Governo Bolsonaro. E cada vez mais também esse governo deixa claro que está a serviço dos que rapinam as riquezas do país às custas da piora da vida da imensa maioria de brasileiras e brasileiros.
Defesa da Previdência como defesa da Soberania Nacional
No final de abril de 2019, a sociedade brasileira foi surpreendida com a notícia de que o governo Bolsonaro havia decretado sigilo sobre estudos que embasam sua Reforma da Previdência. Por ser tão absurdo restringir o acesso público a informações sobre um tema tão sensível, a indignação contribuiu para o crescimento do descrédito de setores da sociedade zelosos pelo debate público e transparente de ideias no governo federal.
Além disso, a medida despertou ainda mais nossa atenção e preocupação para a defesa da previdência e do sistema de seguridade brasileiros. O que está em jogo é uma proposta de alteração na Constituição Federal que tornará mais difícil (ou impossível em muitos casos) para milhões de trabalhadoras e trabalhadores brasileiros se aposentarem antes de morrerem.
Todos, de alguma forma, sabem que haverá muita gente prejudicada com isso. Com mais estudos e debates é possível compreender melhor a gravidade da proposta de Bolsonaro. Mas essa não é a intenção do governo. Além de querer destruir os direitos do povo, o governo não quer que as pessoas tenham consciência ou mesmo informações básicas sobre o que está acontecendo. É preciso difundir e aprofundar o debate de ideias para que a sociedade brasileira decida sobre seu futuro.
A Seguridade Social é a mais abrangente política pública brasileira. Foi com muita luta e sofrimento que o povo brasileiro tornou escrito na Constituição Federal de 1988 que:
Art.194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Parágrafo único. Compete ao poder público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos:
I - universalidade da cobertura e do atendimento;
II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais;
III - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços;
IV - irredutibilidade do valor dos benefícios;
V - equidade na forma de participação no custeio;
VI - diversidade da base de financiamento;
VII - caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados.
A proposta de Reforma da Previdência de Bolsonaro desconfigura o sistema de seguridade social brasileiro. Isso é apresentado pelo governo como “melhor para o Brasil”.
Mas nos perguntamos: Como algo que afronta os objetivos fundamentais do país pode ser “melhor para o Brasil”? A obrigação de um presidente da República e seu governo é zelar pela Constituição do país.
Lembremos do terceiro artigo de nossa constituição:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A Reforma da Previdência de Bolsonaro é proposta com a promessa de “ampliar crescimento e melhorar grau de investimento do Brasil”. É apresentada como “essencial para o equilíbrio das contas públicas”, mas para considerar essa reforma como essencial, não houve qualquer discussão mais profunda sobre a forma de financiamento e dispêndio de recursos do Estado Brasileiro.
Há outros caminhos para equilibrar as contas públicas. Um caminho seria a mudança na forma de arrecadação do Imposto de Renda. Por que não são estabelecidas alíquotas mais altas para quem ganha mais? Por exemplo, para alguém que ganha mais de 40 mil reais, poderia ser aumentada a alíquota de 27,5% para 35% e quem ganha acima de 60 mil reais poderia contribuir com 40% ao invés dos atuais 27,5%.
Essa medida teria o potencial de levantar a quantidade de recursos esperados pelo governo com a Reforma da Previdência. Seria uma reforma de equacionar o equilíbrio das contas públicas, com a vantagem de não penalizar os mais pobres como propõe a Reforma da Previdência de Bolsonaro.
Por que a sociedade não tem o direito de decidir se ao invés de penalizar as cidadãs e os cidadãos que ganham 1 ou 2 salários mínimos, não seja cobrada uma contribuição maior de quem tem mais condições de contribuir? Pois, diferentemente do que poderia escolher o bom senso ou a maioria, a escolha é prejudicar milhões de brasileiros que mal conseguem sobreviver.
Também temos a possibilidade de aumentar a taxação de heranças. Há um limite de 8% no Brasil atualmente por Resolução n. 9 de 1992 do Senado Federal. Ao invés de reforçarmos privilégios hereditários, se utilizaria tais recursos para dar oportunidade para todos através de políticas públicas para melhorar a educação, saúde e qualidade de vida do povo como um todo.
Outra forma de equilibrar as contas seria a redução de juros e a auditoria da dívida pública, que é o maior dreno de recursos do orçamento público brasileiro e que privilegia muito poucos que ganham centenas de bilhões de reais através de juros todos os anos. Diminuir alguns pontos percentuais nos juros pagos pelo governo para quem já tem muito dinheiro e segue obtendo altos lucros, tirando do orçamento público, poderia direcionar recursos à construção de uma sociedade com maior qualidade de vida e mais justa.
Ao invés de seguir patrocinando os altos lucros do capital financeiro, por que o governo não direciona a riqueza produzida pelo povo brasileiro para a qualidade de vida do próprio povo?
Outra maneira ainda de equilibrar as contas públicas seria revendo as isenções tributárias concedidas pelos governos e que representam um impacto projetado de 667 bilhões de reais até 2020. E por que se fala em equilibrar as contas públicas através de uma Reforma da Previdência sem antes serem cobrados os grandes devedores da previdência, que em relatório do Senado de 2017 deviam 450 bilhões?
A sociedade brasileira tem que ter o direito de escolher se a forma de equilibrar as contas públicas vai ser através da retirada da aposentadoria de dezenas de milhões de brasileiras e brasileiros que ganham em geral 1 ou 2 salários mínimos.
A proposta de economia de 1,1 trilhão de reais para os próximos 10 anos feita na última página da proposta do governo (PEC06/2019) prevê que 83% (897,2 bilhões) desse montante venham do Regime Geral de Previdência Social (715 bilhões) e da “reorganização” (corte) de benefícios assistenciais e de abono salarial (182,2 bilhões).
Precisamos, portanto, olhar para a característica dos benefícios concedidos pelo RGPS e pela Assistência Social. Referenciamo-nos aqui em um relatório relativo a outubro de 2018. Mas em outros relatórios dos últimos meses encontraremos dados muito parecidos.
É possível perceber que a maioria das aposentadorias (64,39%) e 100% dos benefícios assistenciais correspondem a 1(um) salário mínimo. “O benefício do Abono Salarial assegura o valor de um salário mínimo anual aos trabalhadores brasileiros que recebem em média até dois salários mínimos de remuneração mensal de empregadores que contribuem para o Programa de Integração Social (PIS) ou para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP)”, conforme informações do próprio governo.
No Regime Geral de Previdência Social (RGPS) podemos reparar que mais que 90% da quantidade de benefícios e praticamente 80% do valor dos benefícios são concedidos para quem ganha até três salários mínimos (77%):
E 99,84% dos valores pagos são para benefícios abaixo de seis salários mínimos, ou seja, praticamente todo o valor destinado ao pagamento de aposentadorias está abaixo do teto do INSS estabelecido em janeiro de 2019, de R$ 5.839,45 no Regime Geral de Previdência Social (RGPS). E relembramos novamente que a grande maioria dos benefícios pagos são para quem ganha até um (66,64%) ou dois salários mínimos (83,49%).
A Reforma da Previdência do governo Bolsonaro viola a Constituição Federal e fere a soberania do país. Acaba com nosso sistema de seguridade social, faz a sociedade brasileira mais injusta, menos solidária, com crescente pobreza e desigualdade social.
Precisamos resistir a esse ataque. Só nossa luta será capaz de garantir dignidade para as atuais e futuras gerações. E só com grandes lutas construiremos o país que queremos e precisamos.
Referências:
https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_194_.asp
https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_3_.asp
http://www.brasil.gov.br/novaprevidencia
https://nacoesunidas.org/brasil-e-paraiso-tributario-para-super-ricos-diz-estudo-de-centro-da-onu/
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1712459&filename=PEC+6/2019
http://sa.previdencia.gov.br/site/2018/12/Beps102018_trabfinal.pdf
https://empregabrasil.mte.gov.br/379/informacoes-sobre-o-abono-salarial/
https://legis.senado.leg.br/norma/590017/publicacao/15785996
Potiguara Lima é sociólogo e professor de educação básica.