São ou se fazem? “Esquerda” institucional e a contrarreforma previdenciária (1)
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- Henrique Júdice
- 10/05/2019
A discussão da contrarreforma previdenciária é um torneio de inépcia e hipocrisia entre o governo e a oposição institucional. Esta mostra, dia após dia, por que é parte do problema, não da solução, e por que de nada vale situar-se no flanco esquerdo de um sistema podre.
Quem deu a largada foi o PT, na Folha de S. Paulo de 18.01, com um artigo de Nelson Barbosa, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento de Dilma Rousseff (1).
Perdas sobre perdas
Barbosa propõe “aumentar a contribuição previdenciária de todos os trabalhadores”, passando de 11 para 14% o desconto máximo dos assalariados para o INSS.
Para “compensar” esse aumento, sugere diminuir o valor mensal do FGTS de 8 para 5% da remuneração – o que não tem sentido, pois quem paga o FGTS é o patrão e o aumento que o ex-ministro propõe é no desconto sobre o salário.
Paulo Guedes gostou da ideia e a incluiu, atenuada, no projeto que Bolsonaro enviou ao Congresso: poupou do aumento quem ganha até R$ 1.700, tentou tirar o FGTS apenas de quem já está aposentado (depois desistiu) e escalonou as novas alíquotas de modo que a máxima nominal de 14% implique um desconto efetivo de 11,68%. Às vezes, a direita é mais amena que o PT.
O aumento da contribuição previdenciária não é, em si, tão ruim. A já excessiva taxação dos salários, obra dos governos petistas, é que o piora bastante.
Até 1998 – ou 2000, para trabalhadores com dois ou mais dependentes – , começava-se a pagar imposto de renda (IRPF) a partir de um valor maior que o teto de contribuição ao INSS. O desconto previdenciário, em 1997, incidia sobre valores até R$ 957,56 (x 11% = R$ 852,23); o IRPF, sobre o que, após o desconto previdenciário, superasse R$ 900.
Ao não atualizar sequer pela inflação oficial a linha de isenção do IR, Luiz Inácio e Dilma causaram a bitributação da renda do trabalho (assalariado ou não) situada entre essas linhas que não deveriam se tocar: a de isenção do IR (hoje R$ 1.903,98) e o teto do INSS (hoje R$ 5.839,45). Um assalariado sem dependentes que ganhe R$ 3.500 brutos paga, hoje, R$ 385 ao INSS. Aumentar isso para R$ 490 seria aceitável se eliminado o desconto de R$ 112,45 para a Receita. Mas nisso, nem a ala esquerda do sistema, nem sua ala direita tocam.
Trabalhadores dos serviços públicos x burocratas do Estado
Para o funcionalismo civil, Barbosa defende um desconto de 14% do salário. Invoca como exemplo o que o governo petista da Bahia fez em 2018.
Tigrão com os trabalhadores em serviços públicos e tchutchuca da alta burocracia estatal, o governador Rui Costa taxou professores da educação básica e técnicos da saúde muito acima do que o RGPS lhes descontaria, mas eximiu promotores, juízes, coronéis da PM, auditores de tribunais de contas e outras corporações maçônicas de pagar algo condizente com seus salários e aposentadorias de R$ 20 mil, 30 mil ou 40 mil.
A alíquota única é um problema tão mais grave quanto maiores as disparidades salariais e o percentual descontado. Um funcionário público baiano com salário de R$ 1.500 (bem superior à remuneração inicial máxima de um técnico em enfermagem, radiologia ou análises clínicas (2)), paga 14% do que ganha por uma aposentadoria pela qual o INSS lhe cobraria 8%. Outro que ganhe R$ 30 mil, se admitido antes da criação do regime estadual complementar de capitalização (2015), paga os mesmos 14% por uma aposentadoria integral superior ao quíntuplo do teto do INSS.
Os que entraram depois não têm tal garantia, mas seus proventos têm o teto do RGPS como piso, ao qual se soma – caso eles optem por isso – o resultado da aplicação dos valores descontados sobre a parcela de seus salários que o excede. Sobre ela, não se descontam 14, mas 8,5%. Um servidor baiano que ganha R$ 30 mil e aderiu ao regime complementar paga 9,6% disso por uma aposentadoria não integral, mas bem superior ao máximo que poderia receber do INSS.
Psolecismos
Para tornar mais picante a tragicomédia, o projeto de Guedes e Bolsonaro prevê 8 alíquotas (de 7,5 a 22%), a incidir de forma escalonada segundo a remuneração do servidor.
Se ao PT jamais ocorreu isso, o exemplar menor e idêntico que saiu dele qual matriosca (PSoL) é firmemente contra a progressividade.
No fim de 2017, pediu e obteve do STF a suspensão do art. 37 da Medida Provisória 805 (3), com que o governo Temer tentava diferenciar os descontos previdenciário dos servidores federais. Em fevereiro, seu deputado Ivan Valente (SP) disse à Rádio Câmara que altos burocratas com salários de R$ 40 mil são “pessoas que trabalham” e não devem pagar alíquota maior que a de quem ganha R$ 1 mil (4). E em março, o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN), cuja direção o PSoL compartilha com o PCB, deu guarida aos ataques da referência previdenciária desse campo político, Sara Granemann (UFRJ), à progressividade (5).
Às vezes, se torna difícil discernir qual é a ala esquerda do sistema e qual a ala direita – e fácil entender porque Guilherme Boulos teve metade dos votos do cabo Daciolo. Granemann mistura sua defesa da injustiça tributária com alusões à solidariedade entre trabalhadores e às raízes do sistema previdenciário de repartição na comuna de Paris – omitindo que esta reduziu os vencimentos da burocracia estatal ao nível do salário operário, atraindo elogios de Marx e Lenin (6).
Ela se mostra alarmada com a alíquota de 22%, que incidiria sobre valores acima de R$ 39 mil. Já a seção do Andes no Rio Grande do Sul (Sindoif) usa um contracheque de R$ 16.790,46 para bradar contra o “confisco da renda docente”, como chama o aumento de 11 para 14,33% na contribuição de quem ganha isso (7) - 1/3 dele compensado pela consequente queda do IRPF).
Com sua opção preferencial pela burocracia rica, a “esquerda” institucional dá a Paulo Guedes argumentos para acusar os opositores da contrarreforma de defender privilégios.
Enquanto isso, idosos em situação de miséria ameaçados pela redução do BPC de 1 salário mínimo para R$ 400, ou trabalhadores que ganham entre 1 e 2 salários mínimos e perderiam o abono anual do PIS, até têm quem os defenda. Mas não no parlamento, nem na burocracia sindical.
Notas:
1) http://dilma.com.br/carta-ao-povo-petista/
2) https://www.pciconcursos.com.br/concurso/secretaria-da-saude-do-estado-ba-854-vagas
3) http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5305850
5) Aproximadamente aos 46m do vídeo disponível em https://www.facebook.com/andessn/videos/635301213564999/
6) https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap3.htm
7) https://www.andes.sindoif.org.br/2019/03/17/aumento-de-aliquotas-ira-confiscar-renda-docente
Henrique Judice é jornalista e advogado.
Publicado originalmente em A Nova Democracia e cedido ao Correio pelo autor.