“Momentos de crise demandam mais proteção a áreas como a educação”
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- Gabriel Brito, da Redação
- 19/05/2019
As grandes manifestações em repúdio aos cortes orçamentários e ataques ideológicos do governo Bolsonaro ao setor da educação estabeleceram um novo momento na conjuntura política brasileira. Incapaz de comandar o país em qualquer setor, a base governista sentiu o golpe e especulações em torno de uma hemorragia precoce do presidente e seu círculo tomaram conta dos debates. Sobre os protestos e seus possíveis desdobramentos, além da própria educação, o Correio entrevistou o professor Marco Antonio Perruso, professor de sociologia e sindicalista.
Sobre os cortes, ressalta que as políticas de precarização do setor estão lastreadas nos últimos anos de governos. “O efeito é visível no cotidiano da universidade pública, por exemplo, com estrutura e serviços insuficientes – há instituições sem verbas para o pagamento do aluguel dos containers onde são ministradas aulas (em si, já uma situação absurda)”.
No entanto, é evidente que o novo governo pode colocar tal processo de sucateamento em novo patamar, “com pitadas de obscurantismo e militarismo”. “É até difícil analisar as propostas do bolsonarismo para a educação. Elas são poucas, inconsistentes, contraditórias mesmo em perspectiva burguesa, pois o reacionarismo do Escola sem Partido, da educação domiciliar, entre outras, não condiz com propostas mais sofisticadas ou mesmo progressistas de outros formuladores do campo da educação na lógica capitalista”.
De todo modo, faz uma provocação que costuma estar ausente dos debates. Não há quem se diga contrário a investimentos em educação. Mas falaria elaborar a serviço de quê. “Sem a educação, crítica e emancipadora, andaremos exclusivamente nos círculos viciosos de sempre do capitalismo nacional, o qual dobra sua aposta com Bolsonaro: há necessidade de mais educação para uma sociedade sustentada no agronegócio e no neoextrativismo?”, questionou Perruso.
Sobre o governo em sua totalidade, é implacável na crítica e bate na imagem de inimigos do sistema que sua propaganda incessante financiada por um empresariado de segundo escalão colocou no imaginário popular.
“Trata-se de um governo caótico, composto por um bando de incompetentes: políticos profissionais inexpressivos que vagabundam há anos no cenário público, aventureiros que buscam na ‘nova política’ a projeção que suas mediocridades profissionais não permitiam, aloprados ideológicos que vendiam no mercado de ideais simulacros de engajamento transgressor, empreendedores à procura de empregos e favores públicos, militares que se oferecem como substitutos da intelligentsia universitária dedicada às políticas públicas lulistas. Mas o governo não quer governar, é eminentemente antitecnocrático. Deseja apenas continuar seu agitprop reacionário”.
A entrevista completa com Marco Antonio Perruso pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Que avaliação você faz dos atos contra os cortes orçamentários na educação, realizados em várias cidades do Brasil neste dia 15?
Marco Antonio Perruso: Foram atos gigantescos. Contaram com grande participação popular, estudantes e juventude à frente, mas também professores, trabalhadores da educação, pessoas de vários perfis sociais. Na convocação e organização do 15M (referência à data dos protestos, 15 de maio), percebeu-se o protagonismo de entidades sindicais e populares do mundo da educação, ao mesmo tempo em que houve grande afluência espontânea de jovens e cidadãos em geral. Coexistiram os tradicionais carros de som, as bandeiras diversas e os cartazes de anônimos tão característicos de junho de 2013.
A mobilização foi pacífica, mas onde houve repressão (como no Rio de Janeiro), houve também resposta com ação direta (ônibus foram queimados). Do ponto de vista da afiliação político-ideológica, verificou-se toda a amplitude do espectro progressista: da esquerda mais ou menos radical ao lulismo, do autonomismo e anarquismo às burocracias sindicais da CUT e CTB. Além de muita gente simplesmente posicionada em defesa da educação.
Trata-se de uma proeza do bolsonarismo, quer no Estado quer na sociedade civil: o desprezo à educação e à cultura incomodam variados segmentos, desde os setores populares que nelas veem possibilidades de empoderamento social, até as camadas dominantes que se ancoram no capital intelectual enquanto distinção de classe.
É necessário registrar que esta vitoriosa greve nacional da educação foi o resultado de um rápido acúmulo de insatisfações e lutas de estudantes e professores, evidenciado, por exemplo, pela greve das universidades estaduais baianas (que foi reprimida com corte de ponto pelo governo petista local) e pela passeata dos estudantes do Colégio Pedro II (em resposta ao militarismo de Bolsonaro – configurado pela visita presidencial ao Colégio Militar do Rio de Janeiro – e ao reacionarismo do Escola sem Partido, movimento político que assedia os espaços públicos da educação).
Correio da Cidadania: Como professor e acadêmico, o que você viu nos últimos meses? Os cortes, considerando o teto de gastos aprovado em governo anterior, já fizeram efeito?
Marco Antonio Perruso: Os cortes agravam o quadro da educação e dos serviços públicos em geral, expandidos de maneira precarizante quando o lulismo ascendia, atacados pelo mesmo lulismo em sua crise com Dilma. Atacados mais fortemente por Temer e agora Bolsonaro.
O efeito é visível no cotidiano da universidade pública, por exemplo, com estrutura e serviços insuficientes – há instituições sem verbas para o pagamento do aluguel dos contêineres onde são ministradas aulas (em si, já uma situação absurda).
São constantes desafios ao protagonismo sóciopedagogico dos estudantes, à dedicação de professores e técnicos-administrativos, uma mão-de-obra muito qualificada e ciente dos papéis possíveis que a educação pode desempenhar na mudança social que todos desejamos.
Correio da Cidadania: O que esperar do ensino público brasileiro – em todos os patamares – caso as propostas do atual governo prosperem?
Marco Antonio Perruso: É até difícil analisar as propostas do bolsonarismo para a educação. Elas são poucas, inconsistentes, contraditórias mesmo em perspectiva burguesa, pois o reacionarismo do Escola sem Partido, da educação domiciliar, entre outras, não condiz com propostas mais sofisticadas ou mesmo progressistas de outros formuladores do campo da educação na lógica capitalista.
O que há de novo é o ataque deliberado e espetacularizado à educação, à ciência, à arte, aos intelectuais, aos estudantes. Mas, fora isso, o desgoverno Bolsonaro, em seu deserto de ideias concretas e em sua incerteza quanto aos meios de encaminhá-las como políticas públicas, poderá repetir diretrizes estruturais mais conservadoras do governo Temer, talvez experimentar algumas políticas mais radicais em certos nichos.
De qualquer forma, há muitas interrogações sobre o que acontecerá com a educação pública. Cabe a nós lutar em sua defesa.
Correio da Cidadania: O que comenta do Ministério da Educação nestes poucos meses de governo Bolsonaro?
Marco Antonio Perruso: Primeiro colocaram um ministro incapaz de qualquer visão ou gestão, por ter sido um professor sem nenhuma relevância no campo científico ou mesmo administrativo. Brincaram de empregar no Ministério parceiros de modismo ideológico sem nenhuma vocação pública ou burocrática. Promoveram uma balbúrdia (para usar um termo da moda) que durou poucos meses.
Depois da queda vexatória do primeiro, o segundo assume seguindo na mesma linha. Carreira acadêmica até agora modestíssima, casada com histrionismo nas redes sociais e provocações aos seus colegas e antigos superiores da universidade pública. Acabou estimulando a grande reação que foi a greve nacional da educação.
Não se consegue vislumbrar que projeto há para a educação superior ou básica, que prioridades serão efetivadas, a não ser a contínua precarização e privatização do ensino público, já em vigor – bem como o incremento dos ataques à autonomia e democracia universitárias. Talvez com algumas pitadas de militarismo e obscurantismo.
Correio da Cidadania: Como responder aos argumentos do governo em favor dos cortes? O país está realmente sem condições de investir na educação?
Marco Antonio Perruso: Os cortes obviamente constituem uma questão de prioridade política. No quadro de crise econômica que o Brasil vive desde o segundo governo Dilma, os investimentos escasseiam para os serviços sociais voltados para os trabalhadores e mais pobres. Sem a movimentação das camadas populares, a tendência é piorar.
Podemos ser mais otimistas agora, porém. Deve-se dialogar com todos no sentido de que os momentos de crise demandam justamente maior proteção em termos de assistência social, saúde e educação. No caso específico da educação, o discurso burguês da empregabilidade e das supostas baixas qualidade e produtividade da nossa força de trabalho é contradito pelos cortes ora realizados: como fazer nossa economia reagir sem a capacitação de nossa mão-de-obra?
Sem a educação, crítica e emancipadora, andaremos exclusivamente nos círculos viciosos de sempre do capitalismo nacional, o qual dobra sua aposta com Bolsonaro: há necessidade de mais educação para uma sociedade sustentada no agronegócio e no neoextrativismo?
Correio da Cidadania: Como analisa o atual momento político e social, de forma mais ampla? O que esperar dos próximos tempos?
Marco Antonio Perruso: De certa maneira, o governo Bolsonaro desaponta amplos setores progressistas, do lulismo à esquerda que embarcou nas narrativas em torno do fascismo, do golpe, do avanço conservador. Bolsonaro divide, enfraquece e desmoraliza a burguesia e a direita. Os liberais tradicionais o odeiam. A grande mídia o combate ferozmente. Apenas a reforma da previdência os unifica.
Trata-se de um governo caótico, composto por um bando de incompetentes: políticos profissionais inexpressivos que vagabundam há anos no cenário público, aventureiros que buscam na “nova política” a projeção que suas mediocridades profissionais não permitiam, aloprados ideológicos que vendiam no mercado de ideais simulacros de engajamento transgressor, empreendedores à procura de empregos e favores públicos, militares que se oferecem como substitutos da intelligentsia universitária dedicada às políticas públicas lulistas.
Mas o governo não quer governar, é eminentemente antitecnocrático. Deseja apenas continuar seu agitprop reacionário, o que leva ao desalento os grupos burgueses mais consequentes. Findo o período de conciliação de classes, a extrema-direita foi uma opção desesperada de certos setores marginais do empresariado, mas que não se mostra orgânica na construção de uma nova hegemonia burguesa no país.
Correio da Cidadania: Uma crise que reserva uma quantidade imprevisível de novos capítulos, portanto.
Marco Antonio Perruso: O quadro é de crise contínua, conflitos interinstitucionais entre Executivo, Legislativo e Judiciário persistem e se agravam. Mais uma vez se mostrou falso o imaginário lulista (e em parte psolista) em torno de um “grande acordo nacional” contra o PT, de um retrocesso homogêneo e inevitável. Esta verdadeira política do pânico – deliberadamente propagada – trouxe desesperança aos movimentos populares e incutiu derrotismo em muita gente. Fez Bolsonaro ser maior do que é. Não vivemos numa ditadura, mas numa formação social historicamente muito desigual e violenta, notadamente contra pobres, negros, mulheres e outros.
A sociedade civil teve subestimada sua capacidade de mobilização nos últimos anos. As forças sociais vinculadas ao campo dos trabalhadores e subalternizados em geral necessitam aprofundar as lutas e construir alternativas para além do que o neoliberalismo e o neodesenvolvimentismo conseguem formular.
A esquerda política precisa retomar seu programa mais avançado, a auto-organização dos de baixo, deixando para trás o nacionalismo que voltou a adotar após a queda de Dilma. “Soberania”, “projeto de país” e outros chavões só denunciam a insistência no que já fracassou, a subordinação das lutas sociais ao “desenvolvimento nacional”, algo inevitavelmente contraditório na periferia do capitalismo onde nossa sociedade se insere. O próximo passo rumo à transformação do quadro atual será a greve geral dos trabalhadores, em 14 de junho.
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.