Correio da Cidadania

Superar as ilusões com a socialdemocracia e a esquerda liberal

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Em entrevista publicada no portal G1, em 19 de abril, Slavoj Zizek discorre entre outros pontos sobre os motivos que têm levado a vitória eleitoral da extrema-direita em vários países do mundo. Em busca de uma resposta satisfatória, o eminente filósofo inverte a condição de entrevistado e lança uma pergunta ao entrevistador, em claro tom melancólico: “Por que Hillary Clinton perdeu? De onde veio o fiasco dessa esquerda liberal antirracista, feminista, com mais consciência social? Como ela veio a perder o contato com as pessoas comuns? Isso é que a esquerda tem que se perguntar. Inclusive no Brasil”.

A pergunta suscita questões importantes. A principal, a nosso ver, situa-se na implícita ilusão não apenas de Zizek, mas de um amplo espectro político, por aquilo que o entrevistado define por esquerda liberal. O que o termo significa exatamente? A resposta está embutida na própria pergunta e nos autoriza a concluir se tratar de um campo político cujas teses centrais seriam o antirracismo, o feminismo e consciência social.
Presume-se, portanto, que essa esquerda-liberal teria como traço fundamental a realização de certa justiça social, absorvendo as demandas étnico-raciais e de gênero. Contudo, sem abdicar da economia de mercado e da “globalização”.

Iludido com a chamada esquerda liberal, Zizek não consegue enxergar o óbvio. Seu fracasso como alternativa política ao capitalismo e mesmo ao neoliberalismo se deve a sua vã tentativa de conciliar o inconciliável. Falta a Zizek aprender as profícuas lições de um grande filósofo pátrio, o simpático Barão de Itararé, que em suas máximas e mínimas ensinava que “de onde menos se espera daí é que não sai nada”.

Afinal, não se poderia esperar de Hillary Clinton algo diferente do que ela é: uma representante do grande capital financeiro norte-americano. E como tal, ao ocupar a condição de Secretária de Estado do governo Obama, foi ela a responsável por articular os golpes de Estado em Honduras e no Paraguai. Assim como mostrou toda a sua satisfação em assistir o assassinato de Muamar Kadafi e anunciar o “início de uma nova era para a Líbia”. Bem como não se pejou em dar seu apoio, e o de Obama, à guerra travada pelos fundamentalistas islâmicos na Síria através de um anúncio triunfal: “a comunidade internacional deve ir se preparando para uma Síria sem o presidente Bashar al Assad”.

Aliás, de passagem é importante salientar aqui as crenças pueris da esquerda liberal brasileira, de que os democratas norte-americanos seriam melhores do que os republicanos. Ambos, com diferenças insignificantes, não passam de instrumentos políticos do capital financeiro e dos monopólios norte-americanos em sua guerra de classe contra os trabalhadores do seu próprio país, e contra os povos do mundo insubmissos aos seus interesses. Atualmente, dois expoentes do Partido Democrata, Ocasio-Cortez e Bernie Sanders, autodeclarados socialistas, são os novos queridinhos da esquerda liberal brasileira, condição obtida por se apresentarem com um verniz mais progressista.

Porém, ambos tergiversam naquilo que realmente interessa a nós, povos latino-americanos, que é como se posicionam frente ao intervencionismo da política externa norte-americana em nosso continente. Dissimularam vergonhosamente a nova tentativa de golpe de Estado patrocinada pela
Casa Branca contra a Venezuela. Em palavras e ações reproduzem aquilo que o movimento comunista antigamente chamava de social-chauvinismo.

Vejamos como ambos se comportaram no auge da crise detonada com o patético Juan Guaidó se autodeclarando presidente da Venezuela com apoio explícito de Trump. Ocasio-Cortez opinou em seu Instagram que a crise na Venezuela era “um problema de autoritarismo contra a democracia em muitos sentidos”. Já Bernie Sanders afirmou que “o governo Maduro deve por em primeiro lugar as necessidades de seu povo, permitir a entrada de ajuda humanitária no país e abster-se da violência contra os manifestantes”.

Mas voltemos à entrevista.

É muita ilusão a de Zizek, catalogado pelo mainstream acadêmico e intelectual como um filósofo radical, esperar do liberalismo de esquerda e até mesmo da sua irmã gêmea, a socialdemocracia, algo diferente do que realmente são. Ambas gerem, com um tantinho mais de “consciência social”, a guerra de classe desencadeada pelo capital contra os trabalhadores em todo o mundo. E se a extrema-direita tem conseguido se apresentar como alternativa política antissistêmica, apesar de não sê-la, o motivo reside justamente na impossibilidade atávica demonstrada por ambas, esquerda liberal e socialdemocracia, em defenderem os interesses das grandes massas populares.

No caso da socialdemocracia, desde a débâcle do socialismo no leste europeu ela girou em massa à direita no espectro político. Tornou-se por esse motivo capaz de gerenciar, “com um pouquinho mais de consciência social”, a política de ajuste econômico propugnada pelos neoliberais e pelo capital financeiro. E tentam enganar as massas trabalhadoras de que a “classe operária pode ir ao paraíso” sustentado num reformismo sem reformas.

É muito simples, a nosso juízo, a resposta sobre o motivo dos recentes fiascos da esquerda liberal pelo mundo, e por extensão da socialdemocracia, “inclusive no Brasil”. A causa das suas derrotas eleitorais reside em sua completa adesão, desde a débâcle do socialismo, à ordem econômica neoliberal imposta pelo grande capital financeiro transnacionalizado. E inclui-se aqui sua adesão irrestrita e acrítica a um sistema político completamente manietado pelos interesses desse grande capital.

Mas a ilusão não é apenas de Zizek. O filósofo manifesta como advertimos acima o profundo giro da socialdemocracia europeia ao centro do espectro político. A débâcle do socialismo combinada à crise do movimento operário fez a socialdemocracia não ver mais alternativa sequer ao neoliberalismo. O que dirá ao capitalismo.

Uma consequência dessa completa conversão ao centro é que a socialdemocracia aprofundou seus traços mais característicos identificados por Lênin há cem anos: a colaboração de classe, a renúncia à revolução, o reconhecimento da legalidade burguesa como único campo de luta, a falta de confiança nas massas trabalhadoras e a confiança completa na burguesia.

A socialdemocracia esvaziou e desideologizou o conflito de classe e sua ação se reduziu miseravelmente em negociar o grau de aplicação da agenda neoliberal. Incorporaram ao seu programa um discurso feminista e antirracista temperado de maior consciência social, ao mesmo tempo em que prestam ao papel de fazer o serviço sujo de destruir o Estado de Bem-Estar social.

O resultado não poderia ser outro, senão a desmoralização tanto da socialdemocracia como do liberalismo de esquerda, com suas consequentes derrotas eleitorais. É a falta de uma alternativa política realmente radical que supere as ilusões conciliatórias de ambos a responsável pelo crescimento da extrema-direita.

Mas as alternativas mais radicais das massas trabalhadoras parecem não cativar o eminente filósofo. Possivelmente imbuído em alguma medida do vírus da conciliação de classe, Zizek ignora olimpicamente a luta de povos que enfrentam duras batalhas contra o imperialismo para superar a dependência e construir seu caminho para o socialismo.

No caso da Venezuela, o filósofo desconsidera a violenta guerra econômica movida pelo imperialismo norte-americano contra a experiência bolivariana, incluindo as constantes ameaças de invasão militar do país. E na entrevista faz uma caricaturização grotesca e engrossa o discurso dominante de ataques ao governo Maduro. Detrata-a pura e simplesmente, enquadrando-a taxativamente na condição de uma “esquerda populista”, despreocupando-se em dar maiores explicações.

Os desafios das massas trabalhadoras no atual cenário são gigantescos. Diariamente são obrigadas a enfrentar a guerra de classe declarada pelo grande capital financeiro mundial que ataca seus direitos e conquistas em todo o mundo. Já os povos insubmissos aos ditames do imperialismo têm de encarar sua agressividade cada vez maior e que os ameaça com guerras devastadoras. E além de tudo ainda são obrigados a encarar em seu seio uma dura luta política e ideológica contra as ilusões, baseadas na possibilidade de um futuro com justiça e igualdade através de uma conciliação de classe com o grande capital e o imperialismo.

Renato Nucci Jr. é ativista da organização comunista Arma da Crítica.

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