Correio da Cidadania

“A transformação da justiça só será possível se toda a Operação Lava Jato for passada a limpo”

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Os vazamentos das conversas privadas entre membros da força tarefa da Operação Lava Jato e o juiz Sergio Moro pelo jornal digital Intercept continuam no centro da cena política. Assim, o outrora incontestável ministro da Justiça parece entrar na mesma espiral de desgaste do presidente mais mal avaliado em início de mandato após a ditadura. Sobre os significados políticos e jurídicos do caso, entrevistamos Patrick Mariano, integrante da Rede Nacional de Advogados Populares e mestre em Direito pela UnB.

“O sistema de justiça precisa fazer uma auditoria da Operação Lava Jato, com as implicações que se mostrarem necessárias, como repetição de atos jurídicos, oitivas, novos julgamentos... Repassar tudo. Não dá pra aceitar tal forma de atuação estatal. E, claro, a liberdade do ex-presidente Lula é fundamental, pedra angular. Toda a Operação Lava Jato, de acordo com os áudios, visava tão somente sua prisão”.

Na conversa, Mariano analisa a transformação na figura de Moro, em especial entre suas presenças em audiência no Senado e na Câmara, as ameaças, inclusive estatais, contra o chefe do Intercept Glenn Grennwald e a desmoralização que as revelações colocam sobre a Operação policial que galvanizou esperanças da maioria da população. A seu ver, só uma profunda revisão de seus atos pode salvar a imagem do sistema judiciário.

“Sem essa revisão da Operação, entraremos em um período ainda mais tenebroso da história. Se tudo for aceito como normal, atingiremos um novo nível de barbárie. Ou se faz uma profunda mudança no sistema de justiça brasileiro, ou iremos além do abismo, porque no abismo já estávamos”, afirmou.

A entrevista completa com Patrick Mariano pode ser lida a seguir.


Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, o que comenta dos vazamentos de conversas do ex-juiz de primeira instância da Vara Federal de Curitiba, Sergio Moro, e a equipe de promotores que conduzia as acusações contra Lula na Operação Lava Jato, que culminaram na prisão do ex-presidente?

Patrick Mariano: As matérias publicadas pelo Intercept têm confirmado uma série de denúncias sobre o conluio entre as partes e o afastamento de seus integrantes, principalmente do juiz Moro, dos aspectos legais de um processo criminal. Via-se, desde antes, uma forma extralegal, extrajurídica, paralegal na verdade, de atuação estatal.

Portanto, as conversas só confirmam o que já se falava. Preocupante é o que será feito com todo o material vazado, o que o sistema de justiça fará para responsabilizar seus participantes e evitar que ocorra de novo. Não é possível não haver responsabilização e ainda voltar a acontecer.

Correio da Cidadania: O que pensa das alegações sobre interferência de hacker, desmentida pela empresa dona do aplicativo de celular Telegram?

Patrick Mariano: Pelo que falam o ministro Moro e o procurador Dallagnol fica tudo muito confuso. Uma hora dizem que não é verídico, confirmam, desconfirmam, outra hora dizem que se confirmada a veracidade os procuradores não entregarão seus celulares, como fez Moro em audiência na Câmara ao negar seu sigilo telefônico...

Parece que estamos diante do uso de algo frequente neste governo, isto é, teorias da conspiração e histórias bem ao gosto de uma narrativa comum nos EUA e mais ainda no governo Trump: a tática de desviar o foco ou descredibilizar inimigos políticos e denúncias contundentes que questionam uma determinada forma de atuação.

Correio da Cidadania: E o que pensa da defesa até agora proferida pelo atual ministro da Justiça em audiências públicas?

Patrick Mariano: O comportamento de Moro na audiência pública mostrou-o bem acuado, principalmente no Senado. Na Câmara, vimos muito cinismo e arrogância, como se aceitasse o jogo sujo, bem ao estilo do chefe, Bolsonaro.

Portanto, entre seus depoimentos no Senado e na Câmara vi uma transformação do ator político. No começo ele tentava proteger sua versão magistrado. Agora, simplesmente diminui a faceta de um personagem heroico, praticamente destruído, e usa da arrogância e do cinismo como principal estratégia de defesa.

Correio da Cidadania: O que você comenta das reações contra o jornalista Glenn Greenwald e a possível investigação a seu respeito pessoal?

Patrick Mariano: As reações contrárias ao trabalho do Intercept partem da premissa de negar os fatos. Em vez de responder o que os áudios apresentam, prefere-se atacar a lisura do jornalista, suas relações pessoais, aspectos de preconceito por orientação sexual etc.

A investigação, caso exista, é absurda, ainda mais por parte da Polícia Federal, um departamento do Ministério da Justiça chefiado pelo ator político mais entranhado no escândalo. Só por este aspecto já podemos antever o absurdo. Seria ilegal a investigação, diante do evidente interesse público nos diálogos revelados. E o trabalho do jornalista tampouco teve algo de ilegal, pelo contrário: divulgar as conversas é um dever ético.

Correio da Cidadania: Diante das revelações, o que deveria acontecer em relação ao processo de Lula e também os demais que tiveram o martelo batido por Sergio Moro? E o que deveria acontecer com o próprio ministro da Justiça, em sua visão?

Patrick Mariano: Volto a falar da responsabilização. Se houvesse seriedade no sistema de justiça, era para o Supremo, CNJ etc. realizarem uma força-tarefa para de fato analisar todas as denúncias, refazer e até anular atos processuais. Enfim, passar um pente-fino em tudo que foi feito.

O sistema de justiça precisa fazer uma auditoria da Operação Lava Jato, com as implicações que se mostrarem necessárias, como repetição de atos jurídicos, oitivas, novos julgamentos... Repassar tudo. Não dá pra aceitar tal forma de atuação estatal.

E, claro, a liberdade do ex-presidente Lula é fundamental, pedra angular. Toda a Operação Lava Jato, de acordo com os áudios, visava tão somente sua prisão. De fato, só será possível a transformação da justiça do país se aceitarem passar a limpo toda a Operação Lava Jato.

Correio da Cidadania: Como analisa os atos em sua defesa realizados no dia 30 de junho? Como definir o perfil do público que se mantém fiel à figura de Moro?

Patrick Mariano: Os atos de rua reforçam o que comentei sobre Moro na audiência da Câmara: vivemos o tempo da insensatez, da falsidade, da mentira. Existe uma minoria social que aceita as teorias conspiratórias, o cinismo, a mentira como forma de atuação política. Mas pelo que vimos esse setor diminuiu muito.

Parece que Moro tem se tornado ícone da extrema-direita, do lixo político brasileiro, que defende mais mortes, mais armas... Como ministro, Moro até agora só deliberou sobre maior facilidade de acesso a armamento e pela redução de impostos para cigarros, depois de uma ampla e profunda aplicação de uma política antitabagista no mundo todo.

Antes dos vazamentos, a única coisa que Moro fez foi tentar apresentar estudos que visassem diminuir os impostos da indústria do fumo no Brasil, sem nenhuma responsabilidade diante da saúde pública e dos brasileiros.

Correio da Cidadania: No fim das contas, o movimento do judiciário paranaense não pode ser resumido a motivações derivadas de filiações ideológicas e de classe social? A Operação Lava Jato ainda teria um papel a cumprir?

Patrick Mariano: Sem dúvida. A Operação Lava Jato hoje é quase uma organização criminosa, uma ação de grupos que envolvia juízes, procuradores, delegados e funcionários para praticar arbitrariedades e ilegalidades. Os áudios revelam que ela cumpriu o que se propunha politicamente a cumprir.

Sobrou o juiz Marcelo Bretas cometendo o mesmo tipo de ilegalidades no Rio de Janeiro, com a mesma metodologia. Mas a Lava Jato no Paraná acabou. E acabou mesmo antes da posse do Bolsonaro.

Agora, a Lava Jato merece ser vista como uma operação dominada por um grupo que praticava crimes em nome do combate à corrupção; acredito que esta será a tônica do relato histórico.

Correio da Cidadania: O que falar de ideias como Estado democrático de direito, republicanismo e institucionalidade a esta altura? Podem estar sendo comprometidas a perder de vista, com fortes riscos de esgarçamento do já conturbado tecido social brasileiro?

Patrick Mariano: É difícil falar dessas coisas diante do que vivemos. Parece tudo piada. E tem algo de humorístico mesmo. O futuro de tais instituições e sua respeitabilidade – me refiro a órgãos como Supremo e CNJ – dependem de uma forte reação ao que aconteceu na Lava Jato.

Sem essa revisão, entraremos em um período ainda mais tenebroso da história. Se tudo for aceito como normal, atingiremos um novo nível de barbárie. Ou se faz uma profunda mudança no sistema de justiça brasileiro, ou iremos além do abismo, porque no abismo já estávamos.


Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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