Valores sociais, crimes e prioridades na luta política
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- Hamilton Octavio de Souza
- 23/07/2019
Ilustração: Rodrigo Bento/The Intercept Brasil
Durante anos procurei transmitir aos meus alunos do curso de jornalismo da PUC-SP que a apuração de informações para o trabalho jornalístico costuma utilizar as mais variadas técnicas, desde a simples observação, a pesquisa documental, os depoimentos das testemunhas, até o relato e a declaração das pessoas diretamente envolvidas, sempre dentro dos limites da racionalidade, da ética e da legalidade.
Costumava citar como exemplo o caso de apuração por jornalistas de um crime grave: ao profissional cabe entrevistar as pessoas de maneira inteligente, checar pistas de forma detalhada e pesquisar a mais ampla gama de informações sobre os envolvidos, assim como verificar com método todas as lacunas e contradições, mas jamais fazer isso mediante o uso da violência, do ardil, da chantagem e da vantagem financeira.
O jornalista deve buscar a verdade, sempre, mas sem torturar, sem invadir a vida íntima e a privacidade, sem fazer ameaças, sem oferecer vantagens ou pagar pela informação. Métodos alheios ao trabalho intelectual devem ser descartados. O jornalismo não pode ser equiparado a esquemas totalitários, mafiosos e criminosos. A busca da verdade fora das técnicas de apuração e da lisura ética rebaixa a atividade jornalística. O jornalismo é ação social que visa elevar o nível de consciência das pessoas.
Privacidade
Sempre considerei duvidosos e polêmicos os métodos utilizados por algumas correntes do chamado “jornalismo de emboscada”, quando repórteres ou equipes de reportagem atacam de surpresa e produzem o material jornalístico em situação de enorme desvantagem para o “alvo” ou a “vítima”, que é pega na armadilha de uma câmera oculta ou de uma gravação disfarçada. Perguntas fundamentais para o (a) jornalista: o material jornalístico deve ser tratado com sobriedade ou com sensacionalismo? O público deve ser conquistado pela racionalidade ou pela emoção? O que contribui mais para o desenvolvimento da cidadania?
Da mesma forma que a liberdade de expressão e a visão crítica são fundamentais para o exercício do Jornalismo com independência (não confundir com imparcialidade), o Jornalismo deixa de existir quando se subordina a esquemas ardilosos e espúrios, quando abre mão da independência e da visão crítica para a veiculação de material centrado na manipulação de interesses inconfessáveis. O jornalismo só tem a ganhar com a transparência das fontes e do processo de apuração.
Faz jornalismo quem prepara o flagrante de uma relação sexual entre duas pessoas que não querem tornar pública essa relação? Faz jornalismo quem invade sorrateiramente uma propriedade privada para revelar algo de cunho reservado ou restrito? Faz jornalismo quem se vale de tecnologia sofisticada para acessar conversas particulares de uma família, de colegas de uma empresa ou de funcionários de uma repartição pública?
Todo material informativo obtido de forma clandestina deve e merece ser divulgado pelos meios de comunicação? Mesmo que tenha relativa relevância para a sociedade? Assim mesmo, o material a ser divulgado deve ser mantido no anonimato? O material veiculado pela mídia com o anonimato das fontes e sem revelação do processo de apuração não ratifica o acobertamento de interesses escusos nessas matérias?
Tempos atrás o jornal “Washington Post” baixou orientação interna para que todas as fontes sejam devidamente identificadas nas matérias em nome da mais ampla transparência. O jornal acabou com a prática do “off”, fartamente utilizada pelo jornalismo brasileiro e por fontes que falam o que bem entendem sem assumir qualquer responsabilidade perante a sociedade. Não está na hora de se acabar com o anonimato?
Valores
Os jornalistas devem publicar todo material escandaloso, sensacional e revelador sem uma checagem criteriosa? E sem ouvir todas as partes envolvidas como manda o manual de todos os veículos sérios do mundo? Além disso, não compete ao jornalista avaliar corretamente, conforme seus próprios valores, se informações obtidas ilegalmente, por mais espetaculares que sejam não devem ser ponderadas numa escala de prioridades sociais e políticas?
Por exemplo, numa escala de valores é mais relevante denunciar o grande empresário que sonega milhões e pratica evasão de divisas ou o pequeno comerciante que evita a emissão de notas fiscais? É mais relevante denunciar a violência praticada pela polícia contra pobres e jovens negros ou o motorista que desrespeita o dia de rodízio no trânsito? É mais relevante denunciar os principais delitos que fazem do Brasil um país desigual ou os delitos típicos da pobreza e da inadimplência financeira?
Na nossa escala de valores, qual crime deve ter prioridade de punição, os desvios de dinheiro público ou deslizes no processo de punição dos que roubaram o dinheiro público? Na nossa escala de valores, quais crimes são mais danosos e quais crimes são menos danosos? É fácil defender a denúncia de todos os crimes, sem exceção, independentemente de seus efeitos na sociedade. Mas, quando existe conflito de valores entre crimes com pesos diferentes, não é obrigação do jornalista priorizar a denúncia do crime mais grave e danoso para a sociedade?
Credibilidade
Vejamos o que acontece no caso das revelações do site The Intercept Brasil sobre a suposta troca de mensagens entre o juiz Sérgio Moro e os procuradores da Operação Lava Jato. O material divulgado foi supostamente obtido por invasão clandestina de hackers dos telefones celulares de autoridades. Não se sabe se houve mesmo a invasão da privacidade e subtração; e não se sabe se as mensagens são integralmente verdadeiras. Todo mundo concorda que as conversas de grupos privados devam ser devassadas?
O suposto roubo de informações privadas foi feito por pessoas não identificadas pelo site. Os autores da ilegalidade se escondem e se protegem no anonimato. Além disso, antes de se analisar o conteúdo do que foi subtraído é preciso saber se o material é autêntico ou foi inventado, se foi criado ou não a partir do levantamento de determinados fatos reais. Afinal, qual a garantia de credibilidade para a divulgação de tais mensagens? Não é aconselhável que todos os cidadãos tenham visão crítica sobre o que circula nas redes sociais?
É possível assegurar que os supostos diálogos tenham mesmo ocorrido e não se trata de material forjado? Vale lembrar que temos, na história e no jornalismo, inúmeros casos de documentos falsos e de matérias inventadas com objetivos escusos. Como comprovar a autenticidade das informações veiculadas pelo site se as fontes não estão identificadas? Enfim, sabemos de longa data que na luta política existe um vale-tudo da mais sórdida baixaria, especialmente nas redes sociais e nos meios de comunicação. Existe medida de comparação entre veiculações não devidamente identificadas e processos formais devidamente atestados pela sociedade?
Se o furto de informações privadas passa a ser considerado algo “normal” ou aceito pela grande mídia e pelas instituições da sociedade, o que dizer de alguém que tenha roubado os cofres particulares de algum banco para tornar público documentos reveladores de crimes praticados por cidadãos ricos e poderosos? Está valendo invadir a casa de um deputado ou senador ou de ministro do STF para dar busca em documentos que possam interessar para a sociedade? Com certeza muita coisa comprometedora poderá ser encontrada nos espaços da privacidade.
Encomenda
No caso do material divulgado pelo site The Intercept Brasil está claríssimo que os alvos foram exclusivamente autoridades ligadas à Operação Lava Jato. Por que não foram os ministros do Supremo Tribunal Federal? Por que não foram os maiores empresários que sonegam impostos? Por que não foram os deputados e senadores vinculados aos lobbies do agronegócio e da indústria de armas? Por que não foram os advogados que ganham fortunas para livrar da prisão os mais perigosos criminosos, desde traficantes de drogas, quadrilhas de roubo de cargas, milicianos e especialmente os criminosos do “colarinho branco”?
Evidentemente os supostos hackers de programas de celulares conseguiriam matérias reveladoras, sensacionalistas e de grande repercussão nos mais diferentes nichos da sociedade. Mas os competentes hackers da The Intercept Brasil decidiram que os alvos seriam tão somente os membros da Operação Lava Jato no Paraná, e dos quais vasculharam apenas (ou passaram para a imprensa) os conteúdos (mensagens) relacionados com os processos do ex-presidente Lula.
Por que não interessaram aos invasores as mensagens relativas aos demais 150 condenados pela Operação Lava Jato, entre eles os dirigentes de grandes empreiteiras (Odebrecht, Camargo Corrêa, OAS, Andrade Gutierrez), os astutos doleiros do país, os altos executivos da Petrobras e os gananciosos políticos do PP, do MDB e do PT, entre eles Cunha Bueno, Sérgio Cabral etc.? Todo o trabalho de furto das supostas mensagens da Operação Lava Jato teve um único objetivo: demonstrar, pela suposta troca de mensagens entre juiz e procuradores, que o processo de condenação do ex-presidente Lula teve irregularidades jurídicas que colocam em dúvida a legitimidade do julgamento em primeira instância. Não aconteceu o mesmo para demais réus e condenados?
Judiciário
Nunca confiei na Justiça brasileira. Ao longo de toda a minha vida, especialmente em mais de 45 anos de jornalismo, sempre testemunhei o Judiciário brasileiro a serviço dos ricos e dos poderosos, na defesa dos empresários e do patronato, sempre servil aos ditadores, ao latifúndio e aos oligarcas, sempre do lado do grande capital e contra os trabalhadores, contra os movimentos sociais populares. Nunca louvei o Judiciário brasileiro porque sempre considerei o Judiciário como instrumento das classes dominantes. Nada mais do que isso.
• “Show do mensalão é pura distração” (2013): https://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/Show-do-mensalao-e-pura-distracao/29082
• “Lava Jato faz avançar a luta contra a impunidade” (2015): http://www.correiocidadania.com.br/politica/10997-30-07-2015-lava-jato-faz-avancar-a-luta-contra-a-impunidade
No entanto, é preciso reconhecer que todo o processo de condenação de Lula seguiu o mais detalhado e transparente ritual dos processos criminais. Teve a denúncia, coleta de provas, ampla defesa dos denunciados, apuração criteriosa dos fatos, aceitação da denúncia, abertura do processo, falas das testemunhas – foram mais de dois anos de tramitação até a condenação em segunda instância, com a consequente prisão. Milhões de recursos e apelações. Meses depois ocorreu a condenação em terceira instância. O processo foi apreciado e julgado por oito juízes nas três instâncias, sempre por unanimidade. Todos os julgamentos foram públicos e com ampla cobertura da imprensa. Como anular a 1ª instância se a defesa entrou com recurso e a sentença foi substituída pelo julgamento da 2ª instância (TRF-4), cuja sentença também foi substituída pela 3ª instância (STJ). O que está em vigor não é a última sentença?
Lula jamais explicou de maneira convincente a situação dele e da família dele com o apartamento do Guarujá e com o sítio de Atibaia. Quem cuidou do apartamento foi o Leo Pinheiro; quem fez a negociação e o contrato do sítio foi o “compadre” Roberto Teixeira. Lula jamais explicou de forma convincente os 27 milhões de reais de “palestras” encontrados nas contas da LILS nem os 9 milhões de reais em previdência privada nem os mais de 30 milhões de reais “doados” para o Instituto Lula em período de três anos. Se o pessoal da seita acha que isso não é nada, a militância da base do PT deveria no mínimo pedir esclarecimento.
A operação que visa a anulação do processo criminal contra Lula, depois de perder a batalha da mobilização social, procura concentrar o ataque contra juízes, procuradores da República, três instâncias do Judiciário e contra o próprio Supremo Tribunal Federal, que acompanha desde 2014 todos os passos da Operação Lava Jato. Todo esse aparato, que pela primeira vez na história do Brasil conseguiu levar ricos e poderosos à condenação por corrupção, será também jogado ao descrédito? O que acontecerá com todos os processos e condenações? A quem interessa acabar com a Lava Jato? A Lava Jato será anulada e arquivada junto com as operações Banestado, Castelo de Areia, Satiagraha? Se isso acontecer, a vitória será de quem: dos pobres, pretos, trabalhadores, operários, sem teto, sem terra e militantes da esquerda – ou dos grandes empreiteiros, banqueiros, oligarquias e políticos corruptos?
A esquerda brasileira, que, historicamente, sempre levantou a bandeira da luta contra a corrupção junto com outras bandeiras importantes para conter, derrotar e superar as mazelas do capitalismo precisa retomar a escala de valores fundamentais de luta por uma sociedade igualitária, justa, livre e democrática. É possível construir um novo Brasil sem opressão e sem exploração se o povo não avançar na luta contra a corrupção? Como vamos vencer o populismo e a direita se não conseguimos fazer autocrítica e superar os males que nos trouxeram ao drama atual? A esquerda precisa resgatar os valores reconhecidos pelos trabalhadores, pelo povo e pela sociedade.
Fora populismo! A luta continua!
Hamilton Octavio de Souza é jornalista e professor.