Correio da Cidadania

Os incêndios e os indígenas

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Resistência e Ataque - Foto: Andressa Zumpano/CPT

Ainda que pouco se fale, dentro da mata que queima há dias existem comunidades indígenas, comunidades ribeirinhas e tradicionais. Gente que vive há milhares de anos na relação equilibrada com a floresta. Gente que coleta da mata aquilo que a mata dá, que pesca nos rios, que cultiva a mandioca e outras culturas milenares sem prejudicar o ambiente. Esse povo convive com os assassinos e os destruidores desde a invasão portuguesa e espanhola. Tem sido um sistemático massacre, igualmente combatido numa resistência tenaz.

É fato que ao longo desses mais de 500 anos de invasão, muitas etnias foram extintas. Mas há as que sobrevivem e seguem buscando existir de acordo com sua cultura ancestral, convivendo com o ambiente, manejando-o sem destruir, inventando novas formas de não sucumbir ao sistema capitalista que tudo arrasa ao transformar tudo em mercadoria. E são essas pessoas que conseguem manter esse rico patrimônio ambiental que, por sua grandeza, acaba sendo importante para todo o planeta.

Mas é justamente essa parcela da população que enfrenta hoje no Brasil o pior dos ataques. Desde o primeiro dia do governo de Jair Bolsonaro, as comunidades indígenas, ribeirinhas e tradicionais passaram a viver com a faca estatal sob suas cabeças. É fato que o Estado brasileiro nunca foi lá muito bom para os povos originários, mas, com Bolsonaro, assumiu uma posição de ofensiva agressão contra os indígenas. A aliança com o agronegócio feita para ganhar a eleição teve como objeto principal da negociação as terras indígenas. Os fazendeiros querem avançar sobre a Amazônia para explorar a madeira e depois plantar soja. E os mineradores, parte da mesma fatia de gente, querem as terras para fuçar o chão e extrair as riquezas minerais.

Por isso que ao longo desses meses o governo atuou com bastante agilidade no campo do Meio Ambiente, contra o meio ambiente. Multas de agressores da natureza foram anuladas, servidores dos órgãos ambientais que tinham atuação séria contra as violações foram exonerados, há registros de perseguição e censura aos funcionários e a suspensão das multas por desmatamento. Situações como agressões por fazendeiros aos trabalhadores do Ibama são toleradas e as falas presidenciais são uma clara permissão para que os criminosos atuem sem medo. Não bastasse isso, o governo cortou de maneira significativa as verbas destinadas aos órgãos ambientais.

Há pouco tempo, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais já havia alertado para um aumento exacerbado de desmatamento na Amazônia, situação que provocou a demissão do dirigente máximo do instituto, praticamente escorraçado pelo presidente do país, que segue negando os dados e a realidade para não comprometer seus aliados.

Os incêndios que se propagam pela região nessa época do ano são comuns, mas nunca chegaram a essa magnitude, o que mostra que eles extrapolaram as causas naturais. Essa semana foi divulgada uma informação de que um grupo de fazendeiros no norte do país, através de um grupo de uatizapi, coordenou ações de queimada visando criar um “dia de fogo” na região. A intenção era justamente queimar os espaços já desmatados para destruir provas da retirada das madeiras e, de quebra, preparar a terra para o plantio.

As etnias que vivem na região amazônica seguem fazendo o que fazem há séculos: resistindo. Protegem suas aldeias e enfrentam com seus corpos os ataques que não param. O fogo, o desmatamento, os jagunços, os homens do estado, a invasão dos grileiros, tudo isso é coisa cotidiana para quem vive na região. Mas, agora, com o sinal verde do governo federal para a invasão das terras indígenas, a situação piorou muito, o que demanda nova postura da comunidade. À resistência precisa se somar uma ofensiva, coisa que já está sendo gestada nas profundezas da floresta, no interior das comunidades, nas estradas secundárias onde circulam as gentes ribeirinhas e tradicionais.

A Amazônia não está queimando. Ela está sendo deliberadamente queimada. E a nós, que não vivemos na região e não enfrentamos essa realidade no dia a dia, cabe juntar-se à denúncia e ao protesto. Mas, esse protesto não pode se limitar a passeatas e atos públicos pontuais, que são importantes e necessários. Ele deve se ampliar na ação sistemática de parceria com os povos originários. Parceria real, que significa conhecer seu modo de vida, compreendê-los e realizar com eles atividades conjuntas de luta. Porque, ao fim e ao cabo, tanto os indígenas quanto os não indígenas que são trabalhadores estão vivendo sob o ataque do mesmo inimigo: o capitalismo.

Se na Amazônia os capitalistas – consubstanciados em fazendeiros, mineradores e empresários transnacionais - querem usurpar as terras que ainda sobrevivem sob mãos originárias, nas cidades e nos campos eles se apropriam da vida dos trabalhadores sugando toda sua força de trabalho. Essa é, portanto, uma batalha que há que ser travada na comunhão dos oprimidos.

É uma guerra de classes que está em curso e aí, não dá para contemporizar: ou estamos contra o capital ou não estamos. Já é mais do que sabido que acender vela para deus e o diabo ao mesmo tempo resulta em tragédia.

A Amazônia precisa ser preservada não porque é a natureza necessária ao mundo. Precisa ser preservada porque é morada da vida de milhares de seres – gente, bicho e planta - responsáveis por sua existência e permanência. Se o trator e o machado vencerem, morre a vida da nossa gente. Por isso, estar com as populações originárias nesse momento é estar contra esse governo de morte e contra o capital.

Elaine Tavares é jornalista e colaborada do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC, onde este texto foi originalmente publicado.

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