Correio da Cidadania

Pacto populista aposta na fragilização das instituições

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Resultado de imagem para bolsonaro coafForças do velho e do novo patrimonialismo atuam em conjunto para impedir que os órgãos de controle do Estado continuem combatendo a corrupção e os crimes do colarinho branco.

• Sobre populismo: tem várias definições e características históricas, mas modernamente é a prática política de líder personalista carismático e midiático que tenta agradar as massas com medidas populares independente de programas de governo e de organização partidária; lideranças e governos populistas iludem os mais pobres com políticas públicas de baixa sustentabilidade.

• Sobre patrimonialismo: em seu livro “Coronelismo: enxada e voto”, Victor Nunes Leal (advogado, jurista, ministro do STF cassado pelo AI-5) esclarece que no Estado patrimonialista não existe distinção entre os limites do público e do privado, quando a maioria dos políticos ocupa cargo público como sendo propriedade privada sua e de sua família, em detrimento da coletividade.

Embora o presidente Jair Bolsonaro continue com discurso palanqueiro, com provocações para todos os lados, acirra o antipetismo e o anticomunismo, despeja impropérios para as forças que movimentam as causas politicamente progressistas (LGBT, povos indígenas, meio ambiente, violência contra pobres, produção cultural, universidades, movimentos populares etc.), o fato é que seu governo imerge nas contradições: se de um lado parece a toada do renegado que afronta autoritariamente as instituições (não negocia com o Congresso Nacional, não loteia cargos nas áreas de maior especialização, não segue rituais da civilidade política), de outro lado acumula sinais concretos de que caminha para ser mais um agrupamento de atuação na política populista tradicional, com todas as sequelas que isso representa.

O que parece assustar muita gente é a postura cotidiana ditatorial, que tem sido premiada com as mais variadas qualificações de fascista, nazista, neofascista etc. No entanto, essa faceta exposta e marqueteira do governo Bolsonaro encobre também uma tendência bem camuflada do mais típico patrimonialismo brasileiro, bem nos moldes dos vários governos da Nova República, o que explica os passos dados no desmonte dos aparatos de controle, fiscalização e repressão criminal do Estado (Receita Federal, Polícia Federal, Agências Reguladoras, Funai, Ibama, Incra, Inpe, Coaf etc.), sem os quais o Executivo perde a capacidade técnica de identificar desvios e fazer o devido processo de punição. A fragilização desses órgãos anula também o empenho de parcela do Judiciário que dá combate aos crimes mais comuns na gestão pública.

Bolsonaro agrada sua galera quando ameaça as oposições com a máscara do autoritarismo. Ao mesmo tempo destranca os cadeados da máquina pública para eventual assalto de seus exércitos. Engrossam o bolsonarismo não apenas os novatos que surfaram no tsunami de 2018, mas também astutos empresários sedentos por negócios; o capital estrangeiro sempre à espreita de alguma onda de rapinagem; os adeptos do faroeste do Brasil-Profundo (madeireiros, mineiros, grileiros etc.), assim como as velhas e sagazes oligarquias que vislumbram na “nova ordem” a sempre sonhada porta da perenidade. O que seria do poder sem os “coronéis” e suas famílias? Se eles se associaram ao lulismo no governo por que seria diferente com Bolsonaro?

Foco correto

Parte da esquerda fica muito alvoroçada com a face truculenta do capo de plantão, com os balões de ensaio e os factoides produzidos à exaustão. Tenta rebater as provocações, aumenta a voz e rebaixa o palavreado a cada besteira ou ameaça. O chefe desbocado ocupa quase todo o noticiário e bate recordes de posts compartilhados. Deixa muita gente na histeria e à beira do ataque de nervos.

No entanto, é preciso lembrar que a reação emocional toma conta de parcela da esquerda há muito tempo, pelo menos desde os protestos de junho de 2013. Desde aquela explosão de descontentamento generalizado muita gente se afastou da realidade com dopantes emocionais, o que resulta em mais alienação e desvio de foco, como aconteceu no impeachment de Dilma Rousseff e nas condenações de Lula.

Está claro que o lulismo quer polarizar com o bolsonarismo, repetir a estratégia que usou contra o malufismo e contra todos os tucanos (FHC, Serra, Aécio e Alckmin). E como o chefe da ultradireita cresceu na política e ganhou o Planalto com pauleira violenta e baixaria maior do que todos os adversários anteriores, o emocional estimula o lulismo a seguir no mesmo tom beligerante. Falta racionalidade, já que o campo de luta escolhido por Bolsonaro é exatamente o do conflito aberto, o da radicalidade, o do extremo, pois é nesse terreno que os opostos se alimentam para impedir a construção de novos consensos ou do aparecimento de outra hegemonia num campo que não seja nem uma nem outra coisa.

A corrente mais influente no campo das oposições ao mesmo tempo em que tenta escapar da defensiva (onde se enfiou desde o início da Operação Lava Jato) com agressividade exacerbada, centra todos os seus ataques na tentativa de desqualificar e desmoralizar os instrumentos que o Estado dispõe (estabelecidos pela Constituição de 1988 e aperfeiçoados ao longo dos anos, inclusive nos governos do PT) para inibir não apenas a sangria dos cofres públicos, mas inúmeros crimes contra os direitos sociais, o meio ambiente, a reiterada violência praticada pelo Estado e a soberania nacional.

Motivado pela crença de que o “Lula Livre” vai salvar a história do ex-presidente, consagrar o mito e fazer ressurgir a glória do partido, o lulismo, ao centrar fogo contra os integrantes de ações da anticorrupção (Polícia Federal, Ministério Público, Judiciário, Receita Federal etc,) atinge exatamente os instrumentos do Estado que poderão conter, agora e no futuro próximo, os deslizes perpetrados no governo Bolsonaro. Ou alguém acha que o atual grupo no Planalto não vai meter o pé na jaca para as próximas eleições?

Desastre anunciado

Embora se apresente como o “novo”, o bolsonarismo está demonstrando, a cada dia, que, apesar de carregar no seu ventre o germe totalitário, tende mesmo a se consolidar como mais uma vertente do velho populismo brasileiro, nos moldes de Collor de Mello, Jânio Quadros e Adhemar de Barros. Da mesma forma já dá para antever que tende a desnudar a sua natureza patrimonialista e adentrar pelos mesmos caminhos dos agrupamentos tradicionais da direita.

Se for mesmo assim, em algum momento o Estado e a Operação Lava Jato (ou algo semelhante) terão de colocar seus focos sobre os negócios escusos e não republicanos do grupo que chegou ao Planalto nas eleições de 2018. Parece bem realista avaliar que a mesma tentação que atingiu governos anteriores vai também abraçar o bolsonarismo.

As pistas estão dadas: Bolsonaro atua para desmontar a função do Coaf depois que seu filho Flávio e seu assessor Queiroz foram pegos em movimentação financeira atípica; tenta interferir na Polícia Federal; aplaude a decisão do presidente do STF, Dias Toffoli, que suspendeu o compartilhamento de informações dos órgãos de fiscalização financeira (Coaf, Receita Federal, TCU etc.) com o Ministério Público; neste caso, o próprio Toffoli e o ministro Gilmar Mendes têm interesse em barrar as investigações sobre movimentações financeiras de suas respectivas mulheres.

Enquanto membros do Executivo e do Judiciário protegem seus esquemas familiares, a Câmara dos Deputados aprova no toque-de-caixa projeto de lei (inspirado em proposta do senador Renan Calheiros, do MDB) que visa punir não apenas o Abuso de Poder das autoridades, mas também várias ações de órgãos públicos que combatem os crimes do colarinho branco. O desenho do pacto se completa com a convergência dos vários grupos que apostam na volta da antiga prática do patrimonialismo, o que abrange boa parte do leque político-partidário e do Congresso Nacional.

Os passos dados na direção do pacto podem ser facilmente identificados. A radicalização de posições e os ataques emocionais apenas servem para o alinhamento das respectivas galeras e para a distração da sociedade. Os agrupamentos populistas estão em plena campanha para ampliar a sua apropriação do Estado e do dinheiro público. Os polos do patrimonialismo se atraem. A desregulação e o descontrole generalizados servem como uma luva para a farra do neoliberalismo desenfreado.

A questão que se coloca é uma só: na atual conjuntura interessa mais para o povo brasileiro fragilizar ou fortalecer e aperfeiçoar os órgãos do Estado (Polícia Federal, Ministério Público, Judiciário, Receita Federal etc) e todas as suas ações de combate à corrupção, ao crime organizado (milícias), aos desvios das funções públicas e à impunidade dos ricos e poderosos?

Está na cara que a fragilização dessas instituições favorece particularmente e tão somente os que sempre se apropriaram dos recursos públicos para fins privados, seja para abiscoitar o poder político (financiamento eleitoral) e seja para o enriquecimento pessoal e familiar ilícito. A consolidação do pacto populista avança na domesticação e submissão do Executivo, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.

Mesmo dividida e atordoada pelo desastre de 2018, esquerda democrática e socialista precisa reagir com racionalidade e com os pés na realidade visando construir – com o povo nas ruas, nos locais de trabalho, nas escolas, nas lutais coletivas e sociais – novo projeto de organização e novo caminho de luta política, sem entrar no jogo da direita e sem reproduzir os erros do populismo. Não dá para enfrentar o monstro que está aí com os mesmos vícios do passado.

Hamilton Octavio de Souza é jornalista.

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