Correio da Cidadania

Bolsonaro e Macron

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Enquanto o mundo pega fogo, às vezes literalmente, Macron e Bolsonaro armaram seu circo. Mais do que a política como espetáculo, esta fogueira de vaidades mostra o político como celebridade, versão contemporânea da história feita por heróis. Discute-se a rinha entre os dois, enquanto a Amazônia queima.

O enredo é conhecido: em julho, Macron ameaçou anular o tratado Mercosul-União Europeia caso o Brasil se retirasse do acordo de Paris sobre o meio ambiente, como fez Trump. Semanas depois, o francês solicitou ao G-7 que discutisse a queimada na Amazónia. Neste contexto, Bolsonaro posou de anticolonialista, ao mesmo tempo em que ofendeu nas redes sociais o casal Macron. O francês acusou o brasileiro de mentiroso em temas ambientais, enquanto Bolsonaro apagou o comentário sexista que fez. Insinuou que só aceitaria os 20 milhões de dólares oferecidos pelo G-7 caso Macron lhe pedisse desculpas, enquanto seu ministro da Educação chamava o francês de ‘calhorda oportunista’ e ‘sem caráter’, e o próprio presidente taxava seu colega como ‘de esquerda’.

Bolsonaro os brasileiros sabem quem é. Macron é um jovem quadro da elite que deixou o Partido Socialista para se projetar como alternativa à direita aos políticos tradicionais, propondo fazer da França uma nação ‘start-up’: uma espécie de João Dória francês.

Dois aspectos do entrevero chamam a atenção. Em primeiro lugar, Bolsonaro aplica sua fórmula de inverter posições entre acusados e acusadores – de modo que Macron lhe deve desculpas e não o contrário. Ao mesmo tempo, desloca o eixo do debate público para si mesmo: o noticiário discute ele, e não suas políticas. Enquanto isso, a caravana passa.

Um segundo aspecto merece análise: face à impotência que nos confronta, muitos brasileiros sentem-se justiçados, ou quando menos consolados, quando alguém lá fora coloca o presidente nos trilhos do bom senso. Então, Bolsonaro se vê obrigado a retirar seu insulto das redes sociais, considerada até por um comentarista conservador como “cafajeste”.

Porém, é preciso questionar este bom senso de que Macron aparece como portador. Bolsonaro incomoda por seus modos, não pelo que pensa. O seu modo é escrachado, mas franco. E a política burguesa é feita de hipocrisia.

Por exemplo, poucos questionam a diplomacia secreta, aceita como um imperativo da ‘razão de Estado’. Raros diplomatas concordariam com o dito chinês: ‘se não quer que alguém saiba, não faça’. E quando um Assange ou um Snowden trazem à tona a sujeira oculta, são eles os criminosos – e não quem fez a sujeira. É a ‘razão de Estado’ que define o que devemos saber, punindo como um Prometeu que roubou o fogo, quem milita para que saibamos mais. O hacker de Araraquara é preso, enquanto o ministro da Justiça segue ministro.

Quando Macron diz que os brasileiros “esperam, quando se é presidente, que nos comportemos bem em relação aos outros”, está se referindo a este código de conduta que informa a política burguesa.

A alta política exige hipocrisia para funcionar. Isso não surpreende, uma vez que a própria sociabilidade burguesa é fundada na dissociação entre o que se sente e o que se faz. Sua premissa é a repressão dos instintos, interpretada por alguns como a linha mestra do processo civilizatório - se identificarmos civilização com sociedade burguesa. Em última análise, uma separação entre razão e emoção, em que a segunda é domesticada pela primeira, preside a civilidade burguesa, enchendo prostíbulos e divãs - onde espera-se que, enfim, sejamos francos com nós mesmos.

Claro que, a essas alturas, difícil é saber quem somos, para além do personagem. Mas o que acontece quando esta sociabilidade está profundamente corroída? Quando nem a polidez – dizer ‘bom dia’, mesmo quando o dia não está bom - nos salva? Será que o problema está na franqueza, ou está em ver a cara feia do que emerge com franqueza?

Bolsonaro é a cara feia, mas real, da crise da sociabilidade burguesa. E a crise desta sociabilidade é também a crise da sua hipocrisia.

Bolsonaro fez da franqueza uma carreira. Foi assim que superou Lula e vendeu-se (hipocritamente, é claro), como novidade. Neste sentido, Lula é do mundo de Macron: o ex-presidente criticou Ciro Gomes dizendo que é daqueles que pergunta ‘como vai’, e nem escuta a resposta, porque acha que já sabe. Lula ensina que é preciso escutar a resposta - não porque ela seja importante, mas porque, então, a pessoa se sente escutada. Não estaríamos diante de outra forma de hipocrisia?

Bolsonaro é a cara feia da política em um mundo em que as mediações entre cultura e barbárie se borram. Ele não é o contrário desta cultura, mas o seu produto, superficialmente rebelde.

Em uma sociedade fundada em mentiras não reconhecidas como tais – ao contrário, vistas como necessárias, como é o caso da publicidade, das campanhas eleitorais, da Guerra do Iraque etc. – a franqueza e o escracho surgem como a nova forma do embuste. A mentira, mas por outros meios.

Mais importante: em uma sociedade em que o Estado tira os freios do capital e emula o empreendedorismo de si, esvaziam-se as mediações entre a concorrência e a sociabilidade. Na selva da concorrência, salva-se quem puder: intensifica-se uma dinâmica autofágica, de todos contra todos.

Se a forma burguesa de transmutar instinto em cultura – de civilizar o animal humano - tem na hipocrisia e na polidez duas faces da mesma moeda, então a crise da hipocrisia é também a corrosão da polidez: o que emerge como o oposto de Macron não são relações mais verdadeiras, mas o escracho de Bolsonaro.

Claro que os franceses, em missão civilizatória permanente desde a enciclopédia, acham que isso é uma aberração dos trópicos. Como disse Marine Le Pen ao se diferenciar de Bolsonaro, as posições do militar “não são de modo algum transferíveis para o nosso país, é uma cultura diferente”. Na França, é insustentável um discurso sexista, ou a defesa da cura gay: ao menos a direita é mais ‘civilizada’.

No entanto, a corrosão das mediações entre economia e sociedade, entre política e cultura, é um fenômeno mundial. Neste contexto, a franqueza rude de Bolsonaro é o amanhã – isto é, se amanhã ainda houver planeta.

Se foi preciso silenciar Bolsonaro (apagar sua mensagem do perfil pessoal), é porque o mundo que ele confronta está tão frágil que exige censura. O que Macron defende é a casca liberal de um mundo cada vez menos liberal. Bolsonaro, a seu modo, escancara a casca vazia.

Parte do drama da esquerda é que também a franqueza não é mais nossa. Por muito tempo, aceitou-se a polidez, mas também a hipocrisia. Enquanto isso, Amazônias queimavam.

Os que se sentiram vingados por Macron, daqui a pouco elegerão um Macron brasileiro e respirarão aliviados. Seguiremos rumo à barbárie, mas com elegância e sem fazer papelão lá fora.

Será que o problema é a franqueza de Bolsonaro, ou que ela revela um mundo de indiferença, ódio e medo a nos cercar? Seria a repressão do que se pensa e sente a única via da civilidade?

Talvez parte do desafio da esquerda seja desafiar Bolsonaro e Macron, a obscuridade e a razão iluminista, tudo junto e misturado, em uma espécie de Macunaíma às avessas.

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