“Quebramos todos os preceitos do Estado Democrático de Direito e de uma sociedade civilizada”
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- Gabriel Brito, da Redação
- 01/10/2019
A morte da menina Ágatha Félix, de 8 anos, no Rio de Janeiro é daqueles raros acontecimentos que comove a sociedade de alto a baixo e faz pensar sobre o tipo de lugar que estamos nos tornando. Se a perícia ainda não apontou se o tiro que a matou veio da polícia, não restam dúvidas de que o governo de Wilson Witzel tem o discurso mais belicista já visto e praticado contra a população pobre. É sobre o cenário de miséria, violência, morte e racismo que conversamos com a pastora evangélica, cientista social e deputada estadual Mônica Francisco (PSOL-RJ).
“O Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro, e todos os especialistas do país, já constataram que as armas que vão parar nas favelas e periferias chegam por meio da polícia. Não se rastreia quem financia a barbárie. Acharam 117 fuzis num apartamento da Barra da Tijuca, em condomínio onde inclusive mora o presidente da República, a maior apreensão da história do Rio, mas ainda não se aponta quem as faz chegar!”, afirmou.
Na conversa com o Correio, a deputada ataca por todos os lados os discursos e ações do atual governo, a seu ver superados no tempo e repletos de mentiras. Nada mais do que um reavivamento dantesco do caráter racista e segregacionista que moldou o Brasil, condição ignorada por diversos baluartes da “nova política”.
É impossível não encontrar o racismo como elemento central do processo de mortes violentas e encarceramento em massa, tanto no Rio como no Brasil. Quando se tem a terceira população carcerária do mundo; 64% das mulheres presas sendo negras; 70 mil mortos em um ano, maioria de jovens negros, como em 2017; 153 mortes de jovens negros por dia; pesquisas científicas a determinar que um jovem negro tem 11 vezes mais chance de morrer que um branco, só podemos chegar a uma fonte de produção de violação frontal dos direitos dessa população. O racismo estrutural, institucional, o racismo que estabelece o elemento negro como o elemento do medo, o corpo da violência. É essa construção que produz um número tão exagerado de mortes e, pior, a naturalização das mortes de tais pessoas”, explicou.
Em termos analíticos mais abrangentes, enxerga um momento de transição de nossas sociedades de mercado, a partir da radicalização das mesmas políticas econômicas que levaram a uma crise global há mais de 10 anos irresoluta. É a denominação “necropolítica” que parece ter vindo para ficar nos debates.
“É o que chamamos de ‘capitalismo de barbárie’. Não é mais o capitalismo selvagem dos anos 80 e 90. É o capitalismo de barbárie, que precisa organizar esse excedente populacional de alguma maneira. Ele organiza encarcerando; os que não consegue encarcerar, mata. É a economia política deste capitalismo de barbárie, traduzida em políticas públicas de segurança de estados como o RJ. Não só o Rio, mas nosso estado é a vanguarda do processo”, falou.
A entrevista completa com Mônica Francisco pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: O que comentar da morte da menina Ágatha Félix, de 8 anos, a décima-sexta criança baleada no Rio de Janeiro neste ano, sexta a morrer?
Mônica Francisco: Mais um caso dramático sobre o resultado da política de segurança pública desacertada da atual gestão estadual do Rio. Soma-se a outras quatro mortes, todas evitáveis, no que podemos entender como total quebra da possibilidade de sermos uma sociedade civilizada.
Quando se tem um número sistemático de crianças “abatidas” vemos na prática o discurso do governo, que tem palavras fortes e contundentes, e dão a tônica da atuação das tropas na rua, com ironias do tipo “abater”, “atirar na cabecinha”, “se sair de fuzil na rua vai morrer”... Todo um discurso que suscita e apoia tais ações descontroladas, de uma tropa que já vinha num processo de descontrole da gestão anterior e se acirra sob Witzel.
É lastimável ter 16 crianças vítimas da violência por atuação do Estado e suas forças de segurança pública, mais especificamente a Polícia Militar, e cinco crianças mortas, uma com tiro nas costas. É inadmissível em qualquer lugar do mundo. É dramático, pois mostra que quebramos todos os preceitos do Estado Democrático de Direito e de uma sociedade civilizada.
Correio da Cidadania: O que pensa da reação do governo estadual, em especial após a publicação de decreto que retira a diminuição de mortes como prerrogativa de concessão de gratificação a policiais militares?
Mônica Francisco: Olhamos para a política de segurança dos últimos 30 anos e vemos a ascensão de ações extremamente equivocadas. Essa é mais uma, em tentativa de encobrir o processo de produção de mortes evitáveis, coisa que estamos conceituando há um bom tempo, no caso, o genocídio da população negra no Brasil. Um processo que mata e violenta em escala muito maior a juventude favelada e periférica e agora vem matando cada vez mais adolescentes, crianças e também mulheres.
Tenta-se colocar uma sombra sobre uma atuação violenta e mesmo terrorista do Estado. Voltamos ao período de 1995-98, durante a gestão de Marcelo Alencar, quando ficou conhecida a “gratificação faroeste”, na qual se introduziu um novo sistema de atuação das polícias que pagava melhor quem matasse mais em serviço.
É o apoio à barbárie, uma infâmia, uma das atuações mais desastrosas e, na verdade, criminosas da chefia do estado do Rio.
Correio da Cidadania: O que falar do discurso de Witzel contra o uso de substâncias ilícitas como responsável pelo assassinato da criança?
Mônica Francisco: Mais uma vez ele reitera o discurso de culpabilizar defensores de direitos humanos, aqueles que se colocam frontalmente contra a política de barbárie posta em prática no Rio. Não impressiona, pois vem sendo a tônica tanto do governo federal como estadual: culpabilizar aqueles que se colocam frontalmente contra a “economia de morte”, essa economia política da pobreza, pois só afeta diretamente gente pobre e negra em maioria, jovens de baixa escolaridade, mulheres e crianças deste contexto social.
Criminaliza o que deve ser visto como questão de saúde, pois não se faz uma discussão sobre a descriminalização das drogas, principalmente da maconha; não se faz uma discussão profunda do que isso vem produzindo, ficando-se com uma narrativa de guerra às drogas que não prioriza a inteligência e investigação, não evita a entrada de armas em regiões de fronteira...
O Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro, e todos os especialistas do país, já constataram que as armas que vão parar nas favelas e periferias chegam por meio da polícia. Não se rastreia quem financia a barbárie. Acharam 117 fuzis num apartamento da Barra da Tijuca, em condomínio onde inclusive mora o presidente da República, a maior apreensão da história do Rio, mas ainda não se aponta quem as faz chegar!
O discurso é a tentativa de responsabilizar a população - seja a que se insurge, sejam os militantes de direitos humanos, parlamentares, movimentos sociais e até familiares - pela barbárie e terrorismo de Estado. Só em 2018 as mortes pela polícia aumentaram 16%, dados do ISP.
É fundamental fazermos o contraponto e disputar a narrativa mentirosa de Witzel e da cúpula da Segurança Pública, que produzem descarte de corpos jovens e infantis.
Correio da Cidadania: O que pensa do conceito de guerra às drogas a esta altura dos acontecimentos?
Mônica Francisco: É o discurso produzido nos anos 90. A socióloga Marcia Pereira Leite, da UERJ, criou o conceito da metáfora da guerra, a produtora da continuidade da política de confronto que já queimou 15 bilhões de reais do Estado do Rio de Janeiro com o que se diz política de segurança pública. Isso enquanto saúde e educação no estado agonizam, temos um sistema de transporte extremamente deficiente e alvo de várias investigações, inclusive CPI aqui na Alerj...
O ISP já elenca, por exemplo, três bairros na região metropolitana com níveis alarmantes de aumento de delinquência. As mortes pela polícia no centro do Rio tiveram aumento de 450%. A Tijuca, bairro de classe média, teve aumento de 360%. Bangu, área da zona oeste notadamente ocupada pelas narcomilícias, nunca atacadas pelo governo, teve aumento de 268%.
Esses são os resultados do discurso de guerra às drogas, furado, vazio, que não se sustenta mais, pois é mentiroso e falacioso. Assim, governador e sua cúpula constroem uma política desvairada de insegurança pública, de violência desmedida, usando helicóptero como plataforma de tiro em cima de barracos e casas de alvenaria.
Correio da Cidadania: Como entra a questão do racismo nesta discussão que fazemos aqui a respeito da violência do Estado brasileiro?
Mônica Francisco: É impossível não encontrar esse elemento como central do processo de mortes violentas e encarceramento em massa, tanto no Rio como no Brasil. Quando se tem a terceira população carcerária do mundo; 64% das mulheres presas sendo negras; 70 mil mortos em um ano, maioria de jovens negros, como em 2017 (e nada muito diferente em 2018); 153 mortes de jovens negros por dia; pesquisas científicas a determinar que um jovem negro tem 11 vezes mais chance de morrer que um branco, só podemos chegar a uma fonte de produção de violação frontal dos direitos dessa população: o racismo.
O racismo estrutural, institucional, o racismo que estabelece o elemento negro como o elemento do medo, sinistro, como o corpo da violência. É essa construção que produz um número tão exagerado de mortes e, pior, a naturalização das mortes de tais pessoas.
Portanto, colocamos o racismo não sozinho, mas como central numa sociedade com mais de 300 anos de escravagismo, que teve uma abolição inconclusa, na qual tais pessoas não foram socialmente incluídas de forma adequada e são tratadas como cidadãs de segunda classe.
Correio da Cidadania: Essa violência estaria se agravando e tornando política pública razoavelmente assumida, em meio à enorme crise social e econômica que aflige o Brasil?
Mônica Francisco: Sem dúvida. Ao se fazer uma abolição inconclusa, sem inclusão desta população, seus descendentes acabaram sofrendo com uma herança de total desestrutura. Questões como educação e leis sempre atuaram neste sentido no Brasil. Antes, negros e negras não podiam estudar, só depois puderam ser incluídos no processo de cidadania, que ainda não se tornou plena – como dizia Milton Santos, uma cidadania mutilada. Só a partir de 1988 analfabetos puderam votar. E quem eram os analfabetos em maioria? Os descendentes dos escravizados.
Não houve política habitacional, não houve redistribuição de renda, não houve tributação progressiva, logo, penalizou-se essa população, a maior do Brasil. Segundo o IBGE, mais de 50% da população é negra e parda. Isso porque o número depende de autodeclaração. E pra se reconhecer como negro é preciso fazer enfrentamentos, inclusive simbólicos, lutar diariamente pela própria sobrevivência. Os maiores problemas estruturais do SUS vitimam mulheres negras. A cor da pobreza no Brasil, a cor de quem sofre mais com as crises, é negra.
Tudo isso é fruto de políticas públicas que negligenciaram tal população, seja com a lei de terras que proibiu que negros e negras tivessem acesso a terra, ou as políticas públicas de educação que não permitiram sua inclusão, ou ainda as políticas públicas de saúde. Por exemplo, apenas na primeira década do século 21 o SUS começou a tratar anemia falciforme, uma doença que eminentemente afeta a população negra.
O racismo estruturou e cimentou políticas públicas no Brasil. E a economia brasileira é estruturada para manter a população negra sob a égide da miserabilidade.
Correio da Cidadania: O que pensa do conceito que versa sobre a “necropolítica” e sua relação de lucrar a partir da repressão contra os corpos de pessoas que não possuem grande padrão de consumo, isto é, pessoas que devido à sua condição de pobreza só podem gerar valor para o mercado a partir da ativação da indústria bélica usada para reprimi-las em territórios de miséria e exclusão social?
Mônica Francisco: O conceito foi cunhado por Achille Mbembe, e muitos intelectuais e movimentos sociais vêm assimilando sua fala, pois é um conceito muito apropriado para a realidade brasileira. Guardadas as devidas proporções, pode-se traduzi-lo em uma espécie de economia política da pobreza, que no Brasil é majoritariamente negra, jovem e feminina.
É o que chamamos também de “capitalismo de barbárie”. Não é mais o capitalismo selvagem dos anos 80 e 90. É o capitalismo de barbárie, que precisa organizar esse excedente populacional de alguma maneira. Ele organiza encarcerando; os que não consegue encarcerar, mata. É a economia política deste capitalismo de barbárie, traduzida em políticas públicas de segurança de estados como o RJ. Não só o Rio, mas nosso estado é a vanguarda do processo.
O conceito de Mbembe, portanto, se adéqua muito à forma que a política pública de segurança carioca e brasileira se estruturou: como necropolítica, como política de morte. Antes, com discursos eufemistas. Hoje com declarações frontais de matar, “atirar na cabecinha”. E age-se dessa forma, não se fica só no discurso. É a forma encontrada para organizar a miséria e a pobreza.
O excedente populacional, o lumpesinato, o precariado, não tem mais lugar no capitalismo de barbárie. Precisa ser controlado e encarcerado; quando não for possível, descartado.
Correio da Cidadania: Qual a política de segurança pública você considera apropriada para uma democracia?
Mônica Francisco: Primeiro, deve-se construir tal política com a sociedade. A sociedade precisa participar dos seus processos. A participação radical da população é condição sine qua non para marcá-la em sua trajetória. Que se tenha transparência, controle, que se privilegie a inteligência. Não a inteligência que mata, mas a que investiga, atua com prevenção. No Brasil se prioriza o confronto e a morte.
Não se trata só de polícia. Segurança pública se trata de saúde, educação, sistema de iluminação nas cidades, sistema viário que funcione, diminuição das diferenças e violências de gênero, respeito às diversidades, enfim, trata-se da construção de um novo marco civilizatório.
Há uma discussão forte sobre a reforma e desmilitarização das polícias, que não se redemocratizaram. E numa democracia forças armadas já são suficientes para a segurança armada. Só neste ano, no estado do Rio, tivemos aumento de 3000 pessoas mortas em relação ao último ano. Mais de 1000 vítimas de violência policial. Sem contar mulheres vítimas de feminicídio e outras violências.
Que se entenda a prioridade de qualificação de profissionais, investimento na inteligência, a fim de se compreender a segurança pública como o funcionamento completo de uma sociedade. Isso tudo com ampla participação da própria sociedade.
Não é utopia, é possível construir. Para nós, vai levar muito tempo, mas é premente e necessário mudar os marcos que nos trouxeram a uma situação tão alarmante.
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.