O Podemos mostra que precisamos de outra esquerda no Brasil
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- Leonardo Santos
- 02/10/2019
Olhando para o que veio depois de 2012 na Espanha, de um lado, e de 2013 no Brasil, de outro, que diferença abismal entre as esquerdas desses dois países! Como todos sabem, os espanhóis naquele ano tomaram o país inteiro com protestos e manifestações de rua, cobrando das autoridades respostas diante da crise social e econômica que assolava a nação. Um movimento que começou reivindicando uma política com menos corrupção, mas ao mesmo tempo cobrava presença mais efetiva do Estado na resolução dos impasses sociais.
Foi um movimento de massas, o grito dos “indignados”. Movimento esse cheio de contradições, como qualquer movimento. Chegado ao fim, ele não engendrou uma Espanha sem conflitos e sem mazelas. Muito pelo contrário. Os índices de desemprego são elevadíssimos ainda hoje. Só comparáveis com os da Grécia. O nível de desigualdade e concentração de renda é também elevado para os padrões europeus. E o cenário político ainda é hegemonizado pelos dois partidos tradicionais. O PP, de centro-direita, e o PSOE, de centro-esquerda. Mas é aqui que começa o abismo – retomo esse ponto mais adiante.
Cerca de um ano depois seria a vez do Brasil ser bafejado pela versão tropical do “levante dos indignados”. Ao contrário da Espanha, o país não enfrentava - ainda – uma crise tanto de ordem social quanto econômica: ostentava na época invejáveis índices de crescimento (de tipo “chinês”) e convivia com taxas próximas de pleno emprego; os jovens tinham a seu dispor uma oferta crescente de vagas no ensino superior (público e privado), o consumo ia de vento e popa, o crédito farto e barato possibilitava viagens de avião antes impensáveis para membros das classes C e até D.
Que os fundamentos desse tipo de “crescimento” e nível de consumo fossem para lá de questionáveis é outra história, mas para um estrangeiro que aterrissasse no Brasil em junho de 2013 e testemunhasse os seguidos protestos de rua por centenas de cidades, seria custoso entender o que levava a população de um país - que parecia ser realmente o foguete espacial estampado pela The Economist - a se lançar com fúria e indignação clamando por mudanças e um “país melhor”. E se fosse um espanhol, então, ficaria perplexo.
Mas é bem simples de entender. Os “levantes de junho” também foram bastante heterogêneos no seu início. Começaram em São Paulo com a demanda contra o aumento da tarifa do transporte público, se espraiaram pelo Rio de Janeiro, que acrescentava a essa demanda o protesto pela dura repressão que a Polícia Militar de São Paulo desencadeara contra os manifestantes dias antes. E outras bandeiras foram sendo acrescidas no decorrer de pouco tempo: melhores serviços públicos, por maior autonomia do Ministério Público, repúdio pelos grandes gastos da Copa do Mundo a ser realizada em 2014 etc.
Claro estava desde o início que pautas mais “à direita” se faziam expressar no bojo das manifestações. E estas apelavam em grande medida a um sentimento (ainda bem confuso) contra partidos, o sistema político (tudo associado ao grande mar de corrupção) e aos desmandos do governo petista, personificado pela então presidente Dilma Rousseff.
Ao fim de tudo (os movimentos seguiram atuando com certa força até novembro daquele ano), essas últimas pautas é que se tornaram hegemônicas, não apenas porque a “direita foi mais eficiente”, mas principalmente por conta da forte e violenta repressão desencadeada pelas polícias locais (com uma contribuição formidável dos órgãos de informação e espionagem do governo Dilma) e pela propaganda criminalizante da mídia tradicional, em especial a praticada pela maior rede de telecomunicações do país (desde a Ditadura Militar).
Essa hegemonia da direita sobre os movimentos de junho já foi em si uma importante diferença em relação ao que se passou na Espanha. Lá os duros ataques ao sistema político tradicional tiveram que ser amortecidos pelos dois maiores partidos, tanto o de direita quanto o de esquerda do espectro político. Ali também – pode-se argumentar – tanto o Judiciário (como a Lava Jato da República de Curitiba) quanto os movimentos da sociedade civil em geral não visaram exclusivamente apenas a desconstrução ou a punição de um lado. Essa é outra importante diferença.
No entanto, o que quero chamar a atenção é para os impactos que tais movimentos tiveram sobre as esquerdas dos dois países. Enquanto na Espanha novas forças como Podemos impulsionaram uma certa renovação no cenário das esquerdas, só com muita boa vontade é possível afirmar o mesmo em relação ao Brasil. Talvez o único partido que avançou um pouco no âmbito da política institucional foi o PSOL – muito pouco, é preciso lembrar, mas este surgiu ainda no primeiro mandato de Lula da Silva...
Mais do que isso, o PT segue sendo a força hegemônica. Na Espanha o PSOE segue sendo também, alguém poderia objetar. Só que mesmo essa aparente semelhança guarda importantes nuances. Na verdade, temos diante de nós, ao compararmos a situação das esquerdas no Brasil e Espanha, duas formas distintas de exercício de hegemonia. Na última, mesmo ainda dominante, o PSOE nunca mais teve vida fácil por parte dos setores mais críticos e radicais do campo socialista. E isso não apenas no que se refere aos grupos mais ligados a movimentos sociais, mas também a siglas partidárias com assento no legislativo espanhol.
Em nenhum momento desde então, em especial nos últimos três anos, assistimos a um alinhamento automático do Podemos às propostas de coalização por parte do PSOE. O primeiro vende caro os seus conjunturais apoios. Bate firme em seus princípios, apresenta condições, exige compromissos com certas posições. Exemplo dessa postura foi a última tentativa do "socialista" Sanchez em formar uma maioria para ser confirmado como primeiro-ministro. O Podemos não se curvou para dar carta branca a Sanchez, e o impasse entre as duas lideranças irá obrigar a uma nova eleição legislativa no país, a quarta em 4 anos. Ali não teve jeito: não há espaço para piruetas programáticas do tipo "voto crítico", "agora a luta é contra o fascismo", "não é hora de criticar o PSOE" ou "criticar o PSOE é fazer o jogo da direita".
Já no Brasil estamos muito longe de conseguirmos imaginar – ao menos imaginar - um cenário como esse: do PSOL vender caro qualquer apoio que seja ao PT. Muito pelo contrário: o que temos assistido nos últimos tempos é alinhamento automático, apoio sem custos. A última eleição presidencial se aproximou de um escárnio: o candidato do partido do Socialismo passava praticamente a maior parte do tempo falando (e elogiando) mais sobre o líder do PT do que das propostas do seu partido. E ainda tinha a coragem de insistir na bravata de que ele e seu partido “faziam oposição ao PT”.
Tanto assim que mal havia se definido o confronto do 2º turno daquela eleição, o PSOL e seu “candidato” declararam voto no candidato petista Haddad mesmo antes de este ter pedido, e sem que o “partido do socialismo” apresentasse qualquer condição, qualquer demanda, um pedido qualquer, uma exigência que fosse de declaração de compromisso com qualquer causa. Nada. O que importava era levantar a frente contra a ameaça fascista. Pouco importava aproveitar o ensejo para discutir realmente o que era esse “fascismo” e como o partido que ficou 13 anos no poder poderia ter contribuído para a sua suposta ascensão.
Por sua vez, diante de tal apoio que mais parecia uma “carta branca”, sem nenhum tipo de exigência ou necessidade de contrapartida, Haddad se preocupou mais em agradar parcelas do campo conservador e de direita, indicando que não apoiaria a descriminalização da maconha e que prosseguiria com a criminalização do aborto, com exceção de casos especiais.
O que se viu, portanto, não foi apoio ou aliança entre duas forças políticas, com suas diferenças, inclusive de tamanho, mas a manter a consciência de tais diferenças e das distâncias que fazem deles dois adversários (não inimigos). O que se exige é respeito recíproco de cada um, nunca obediência e alinhamento automático. Trata-se de adversários, oras. E que devem continuar sendo, mesmo numa conjuntura de formação de frentes de luta. Aliar-se não significa aderir ao outro, anular-se. Nada e nem ninguém obriga uma das partes a ter uma postura tão submissa.
E não, o que se viu foi subordinação voluntária, beija-mão descarado. Como se o grupo a ser apoiado não fosse um adversário que passou 13 anos defendendo uma plataforma econômica e mesmo política escandalosamente distinta do que prega o chamado campo socialista.
Seria interessante que antes da próxima eleição presidencial as esquerdas, antes de definir um projeto eleitoral ou plano de governo, definissem o que elas entendem por “apoio político”. Pois sinceramente não sei se isso está definitivamente claro. Às vezes tem-se a impressão que apoio é visto como sinônimo de bajulação, ou de rendição.
Logicamente, há muitos outros fatores a pesar e a analisar, e que explicam a imensa diferença de postura entre o Podemos e o PSoL. E eles podem ter um papel muito grande. Mas por que não refletir um pouco sobre algumas lições do Podemos? O qual, aliás, só cresceu, inclusive eleitoralmente, mantendo uma distância crítica – crítica de fato – em relação ao PSOE.
Pensar um outro Brasil, um Brasil com outra esquerda, inclusive uma esquerda que não seja submissa, não é apenas possível – é desejável e saudável.
Nota:
Teresa Rodríguez: “Gobernar con el PSOE es peligroso” - entrevista ao El País com a líder do Podemos na Andaluzia.
Leonardo Santos é professor de história.